Preguiça da Vida

Tento mexer os pés e não consigo. Sinto uma pontada na cabeça, um latejamento na parte de trás da coxa esquerda, formigamento no pé direito, seios doloridos e uma boca seca demais. Tudo isso com a trilha sonora de um estômago vazio e inquieto e de um skazinho tocando no rádio que deixamos ligado. Mix Up Girl, do The Creations. A mesma música que tocava quando começamos a beber Rum ontem a noite e você me abraçou por trás. Típica ressaca de uma noite improvável, como as que a gente costumava ter há uns sete meses, ou sei lá quanto tempo faz, desde que nos encontramos naquela pracinha perto da Estação Sacomã e tivemos uma semana inteira regada à cerveja importada e muita maconha e sexo de qualidade. Saudade da nossa improbabilidade. Saudade também de você me carregando no colo, mais bêbado do que eu, subindo a escada longa que dá num corredor estreito e tem como fim a sua minúscula kitnet. É, porque o elevador daquela espelunca estava sempre quebrado. Tudo fodido. E nós nos achando os maiores bon vivants do mundo por estarmos livres da sociedade naquelas madrugadas de todas as temperaturas e luas.

Depois, tocou Pionners, Slackers, Toots, Millie Small, Invaders, e foi por aí - nessa trilha sonora perfeita de um erro/desastre emocional - que você foi me levando de um lado pra outro pela sala desse cubículo de apartamento e me dizendo coisas bonitas ao pé do meu ouvido. Singelo, belo e muito bom. Mas infelizmente não consigo acreditar.

Não mais, embora não seja você quem me magoou e injetou esses anticorpos em mim. Os filhos da puta sempre deixam rastros da merda que fazem e as outrora vítimas, tornam-se tão filhas da puta quanto eles - ou pior. Embora você saiba que eu adoro me fazer de vítima.

Não confie em mim.

É sério.

E provavelmente é a única coisa realmente sincera que sairá dessa boca depois que ela te beijou.

Talvez porque eu não consiga sair desse estreito hiato que existe entre magoar as pessoas e ferir a minha própria liberdade me prendendo a alguém.

Sim, você já sabe bem que sempre uso a desculpa de estar confusa pra não abrir mão de nada, não ter que escolher nada, sempre achando que tenho tudo... pra continuar agarrada no vazio da solidão que é ter todo mundo.

E nego, embora suas palavras me façam bem, só o vazio e o silêncio me entendem. Só eles não julgam a minha indecisão, minha imaturidade sentimental e minha covardia mascarada de auto-suficiência e preguiça da vida. Eu preciso dessa minha confusão. Ela sou eu. Ela está em mim.

E eu não posso deixar, de jeito nenhum, que ela te afete com as minhas dezenas de oscilações de humor e pior, de sentimentos.

Tudo muito bom. Tudo muito bonito. Mas aí, quando dei por mim, você estava com o queixo no pescoço, uma mão na minha cintura e outra na minha coxa, embaixo do meu vestido. Nariz enterrado em meus cabelos, boca no ouvido, pernas encaixadas, e tudo mais. Caralho. De novo não. Porra, incrível essa nossa intimidade surgida à partir do nada. Essa cumplicidade que embora não seja recíproca nas intensões, ainda sim não deixa de ser. Eu consciente da minha total inconsciência das coisas. E você aqui me fazendo bem, ciente de todo esse meu drama.

Bebemos demais. Beijamos demais. Choramos de mais. Mas pensamos de menos no dia que seguiria toda essa coisa. E dormimos.

Hoje de manhã, quando consegui abrir os olhos e pude ver a completa zona que estava seu quarto, gostei do que vi. Um belo caos. Nosso caos. Contrastando com essa árvore e seus passarinhos que fazem morada bem perto da janela.

Dançando com o John Belushi - ou pelo menos imaginando isso - eu me levantei, me espreguicei. Logo em seguida me empreguicei e voltei pra sua cama. Inquieta, eu levanto. Tiro minha camiseta e meu short, abro a janela e deixei o sol bater no meu corpo e machucar meus olhos. Ontem foi bom. Você me faz bem, embora não seja o ideal pra mim. Embora, por vezes, eu pense que amo um outro, que muito provavelmente também descobrirei que só foi cobaia pras minhas projeções de amor - esse sentimento ainda desconhecido e quiçá existente.

Eu sei, não dá pra entender. Eu sei, é complicado.

E as linhas anteriores a essa, que achei tão verdade a segundos atrás, já não fazem mais tanto sentido assim.

Depois de fazer o café, sento na poltrona em frente à sua cama e acendo um cigarro. O sol bate no meu corpo nu e já não tão jovem assim. Você abre um dos olhos, sorri pra mim. E sorrimos pro domingo de manhã sem trabalho, onde o único esforço que se fará é o de não se esforçar pra nada. Onde a preguiça da vida freia qualquer impulso físico ou psicológico da vontade de tirar o rabo de casa. E tudo mais.

Eu paro em frente à janela e olho o centro de São Paulo.

Vejo uns moradores de rua sorrindo, e logo mais à frente dois homens brigando e um outro com uma faca.

Me jogo no seu colo, sabendo que essa pode ser a última vez.

Como também pode ser só mais uma das últimas vezes e primeiras recaídas que sempre juramos de pé junto que não acontecerão mais.

Afinal, noite passada a vida me mostrou que nem sempre é uma puta.

Não nos prometamos nada.

Mas quem sabe, nego. Quem sabe...

Música: Sweet Soul Rocking - Invaders.

nes_ste
Enviado por nes_ste em 04/06/2012
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