Mais perto de uma constelação qualquer

Ela não queria pensar em nada. Só queria sentir o cheiro de terra molhada que ficou no ar depois da forte chuva que acabara de cair. Levantou-se para preparar um café, já que a geladeira vazia não dava margem a um cardápio mais variado. A noite seria longa, e Ela sabia disso desde o momento em que foi dormir.

Andou seus usuais três quilômetros para chegar ao trabalho, que, em sua opinião, figurava entre os mais desgraçados da humanidade. Para Ela, que ficava nos “bastidores” do processo, tudo era ainda mais melancólico. Odiava trabalhar no frigorífico porque considerava loucura matar um animal enfiando uma lâmina fria na sua jugular. Em Seu modo de ver, o certo seria fazê-lo ingerir uma pílula que lhe conferisse um sono eterno a fim de que morresse sem dor, sem lágrimas, sem sofrimento.

Entretanto, Ela adorava o jeito que Ele fazia o seu trabalho. Sempre tão rápido e eficiente. Calado como se tivesse sua boca costurada com linhas de crochê. Ele exercia as mesmas funções que Ela, mas fazia tudo parecer fácil, e nada cruel. Ela O amava em segredo, e nem desconfiava que Ele A amava também.

Percebeu que a noite estava acabando quando sentiu a dor nas costas que sempre sentia no final do expediente. Mas dessa vez ela parecia diferente, era mais forte e intensa, e se espalhava pelo corpo como um grito agudo e desafinado. Talvez por não se tratar de uma dor ocasionada pelo cansaço e sim pela ação cortante do ferro.

Colocou a mão nas costas e sentiu o sangue se esvaindo do corpo de forma rápida e ingrata daquele para com este, que por tantos anos foi seu fiel receptáculo. Olhou para trás, mas não conseguiu ver. Na verdade, Ela viu, mas não foi capaz de diferenciar o delírio da realidade. Imaginou que se salvaria daquele terrível pesadelo, e em vão tentou correr (para braços Dele). E em vão tentou gritar (que O amava). E em vão lutou ferozmente para viver (ao Seu lado).

A última coisa que viu claramente foram as estrelas. Lindas. Brilhantes. E cada vez mais próximas.