Sonhos e Castelos de areia
É que tudo começa na Bahia.
O calor, manhã nascendo, feixes de luz entrecortados pelas palmas dos coqueiros eram flashs. Um vermelho intenso era tudo que ele via. O sol ardia nas suas pupilas, mas o sono insistia. Estava claro que era um sonho. Esse jogo de luz e sombra, do sol com a palha do coqueiro, só poderia ser um sonho. Desses que pregam peças, nos colocam no centro de um furacão a girar. E girando como num tango, frenético e despencado, ele acordou. Mareado do que viveu. Perdido no intrincado confuso dos lençóis e fronhas. Afogado na realidade. Bebeu água na fonte, mas a expressão que lhe ornava a fronte, era saudade.
O quarto era simples. Um ventilador sem grade sobre o criado mudo fazia som ambiente. Uma gaveta, bíblia sagrada para os aflitos e um abajur de luz amarela. As paredes azuis, pintadas de tinta cal, confundiam a noite sobre a hora de chegar. E a noite era mesmo preguiçosa naquele lugar. Num ponto qualquer entre Porto Seguro e Salvador, uma esquina de praia, onde o mar toca a brisa e tudo umedece de sal e desejo.
É lá que repousam seus dias tranquilos. Estendidos ao sol, em total intimidade com o calor das horas felizes. Os segundos de orgia e bálsamo se entrelaçavam no seu DNA. Ventos fortes exortavam as nuvens negras do temporal e o vento terral que jogava fora o telhado deixava nua sua memória perante o julgamento infame da verdade.
- Ah, a verdade.
É que tudo se transforma em São Paulo.
O cinza, estrelas se escondendo na fumaça da manhã, o dia estranho, o sorriso tímido, a moça desconcertada. Cigarro na boca e uma saia de vinil preta cobrindo apenas 1/3 da meia calça vermelha, bota retrô transada em qualquer brechó. Pisava o chão numa marcha desalinhada, os ombros muito arqueados para trás emprestavam aos braços longilíneos o motivo para uma asa. Estava para se perder no próximo cruzamento. E quando ele a encontrou, parada no meio da Paulista, olhando para o infinito que corria ao longo dos arranha céus, indagava a si mesma: - como podem ser tão altos e duros, olhando assim, de cima, um olhar concreto?
E discreto, para si mesmo, ele respondia: Como pode? Como pode uma pessoa mudar assim?
A pergunta vinha sufocante como gás carbônico. É guerra, é caos. Ele via nos livros.
Como pôde perder de vista a esquina dobrada, o fluxo da desordem beirando o meio fio, atentando contra qualquer forma de vida que se arriscasse a florescer. Uma água maligna. Mistura corrosiva de poeira e ódio e pressa e cobiça. Um veneno destilado da boca dessa imensa serpente prestes a engoli-lo, mas não sem antes apertar os ossos do seu crânio contra o concreto, anuviar suas pupilas e o jogar à margem de si mesmo.
Era no meio de pensamentos transtornados que repousava a sua calma. Era preciso dizer. Sim, era preciso se livrar dessa bola amorfa que tapava sua garganta. O silêncio lhe dava náuseas.
Ele deteve-se à sua frente. Olhou-a nos olhos. Segurou no pulso do braço esquerdo usando o polegar e o indicador como uma algema. Ela tentou se livrar, mas o grito dele a paralisou.
-Você precisa aceitar. Eles só querem teu bem. A vida que você quer não leva a lugar nenhum, nem dá camisa a ninguém. Vem viver comigo, a nossa casa te espera. A comida está no fogo, a mesa está posta. Vem meu amor, você vai ver como todos te admiram, reconhecem tua força e cuidarão da sua enfermidade.
- Não me submeto se é isso que você quer saber. Eu apenas preciso aceitar? Ah, nem tudo é passível de explicação, nem tudo carece do teu entendimento. Que vá a merda você e suas conjecturas. Essa moral falida de família feliz. Deixe-a nos portas retratos, nas verdades maquiadas na mesa de jantar. Esse peso, que carregue sozinho.
As palavras dela ecoavam no vazio entre os prédios. O trânsito parecia mudo. Era como se o mundo dependesse do desfecho daquela conversa. Era como se ambos arriscassem um jogo perigoso sobre a linha tênue que separa amor e ódio.
- Você não precisa se punir assim. Essa vida não te pertence. Eu te perdoo e todos te perdoarão. Esquece essa loucura e volta pra mim. Volta para você mesma, vai buscar quem você foi onde ficou.
Falava aquilo imaginando uma cruz nos ombros arqueados dela. Sobre as asas de anjo maculado pelas idas e vindas à Rua Augusta, ele queria por o peso do mundo.
- Só há cruz quando se há pecado. E esse teu discurso ensaiado, cheio de pedras-palavras, não faz se não me deixar mais forte. Prepara teu bucho. Lava tua cara. Penteia teus cabelos. Cuida das tuas chagas. A hora de partir é chegada. Vou-me embora sem medo. Pelo lampejo divino que iluminará minha estrada, partirei com o primeiro raio de sol. E você verá o meu ser, cheio de luz, cumprir o destino fadado. Esqueça-se dessa e enxerga a mim. A moça pela estrada a fora, alheia ao teu mundo e ao teu pecado inventado.
Era o fim do amor e o começo do desespero. Perder seu anjo para o mundo era demais pra ele. Desaprendeu a dividir. O que era seu, era seu e pronto, não cansava de repetir. Só ele podia desistir, não cabia a ela colocar ponto final em nada. Ele era o dono dessa história. Uma fábula mal contada, cheia de verdades desfocadas, permeada de desatinos e cores borradas. Era um sonho de vida nova, delírio de cidade grande.
A esperança se erguia, e ao longe parecia firme, estruturada. Causava admiração nos amigos, inveja nos inimigos e descrença nos despeitados. A esperança era um templo. E naquele lugar, toda palavra ganhava som de oração. Num altar cosmopolita, enfeitado por falsas promessas, o amor definhava.
Pagaram. Deixaram ferida nova virar chaga antiga. E na cidade grande onde tudo corrói como o ferro lambido pela maresia, como vida encharcada pelo cotidiano; Era tudo novo e mesmice. Tudo certo e confuso. Tudo seu, tudo cinza. Sem brisa pra refrescar o tempo.
E o tempo fechou. Era o céu, era cinza e choveu. O castelo desmoronou, o sonho caiu. O amor mudou. Ela mudou. E tudo ao seu redor se transformou.
- Os prédios e os castelos de areia se alimentam dos sonhos. Ela disse, olhando-o com olhos de quem vai.
Ele insistiu:
- Embora os sonhos desmoronem, é preciso vivê-los, é necessário pintá-los. É preciso lembrá-los e existí-los em sua plenitude. Mesmo quando tudo que parece sólido se desmanchar no ar, temos que acreditar.
- Me deixe. Permita que eu vá. Não olhe para trás. É sonho. E é meu. Vou levar você comigo. Porém, sonho não se compartilha e não se empresta. Fica com Deus. Cuide de você. Eu cuidarei de mim. Fica bem. Te quero bem. Tchau.
Pelo cinza do céu vazava um feixe de luz. E a prata do seu punhal ganhou tons dourados. O brilho ofuscou suas vistas, iluminou sua ira. Era sonho e era dele. E ele não admitia que fosse diferente.
Rasgou a carne dela num movimento preciso. O metal deslizava contra as fibras do útero. E em voz baixa, como quem está a contar um segredo, ele murmurou.
- Não terás vida nova, nem vida antiga. Me mostra. Me diz onde está você. Aquela menina de cabelo encaracolado, de olhar risonho, pra onde foi? Onde você a escondeu?
E mesmo dentro dela. Mesmo tendo o sangue da amada em suas mãos, ele não a reconhecia.
Um outro golpe certeiro interrompeu o gemido dela. E logo depois outro, seguido de mais um.
O anjo desfaleceu. A luz não veio. O caminho acabou.
Naquele momento, em meio aos prédios, a multidão e a fumaça dos escapamentos, a serpente deu o bote. O sangue destilava o veneno na vertigem do cotidiano. Ele sentia a areia do mar da Bahia afundar debaixo dos seus pés. As ondas iam e vinham pelo negro do asfalto. O vento nordeste encrespava o mar e acariciava os prédios. O sol, as palhas do coqueiro. A sombra, o cinza do céu.
Só podia ser um sonho. Desses que nos botam por demais confusos. Sem saber se vivemos ou se sonhamos. Sem saber o quanto da vida é sonho e quanto do sonho é seu.
Ele cavava. Todos os dias, na maré seca, ele construía um castelo de areia. Todo dia, na maré cheia, seu castelo ruía. Sonhos e castelos de areia. Vaivém da vida, vaivém da maré.
Era real. E um vermelho intenso era tudo o que ele via.