Anice

Molestado pelo carcarejar dos galos que, naquela manhã estava estranhamente agudo, acordei. Melhor, recobri os sentidos. Acordar soa benévolo demais para o esmorecimento em que eu me encontrava.

Com o rosto ainda amarrotado, caminhei até o banheiro na velocidade que aquela ressaca com nome de Anice me impusera. Olhei para o espelho. Não consigo mais dar o ar da graça, não tenho mais aquele sorriso petulante e provocador. Minha expressão é imutável. Fria. Me sinto fraco, levar o cigarro à boca tem sido um esforço e não levá-lo também. Hoje eu sou livro sem dedicatória. Liguei o chuveiro. Finalmente espertei, a água estava realmente fria. Fria?

-Fria é Anice.

Pensava alto. Frio são meus impulsos. Fria é minha inércia. Fria. Palavra esquisita essa. O som de "efe" com "erre", sem intensidade, totalmente fria.

Cerrei os punhos.

Melhor seria se pudéssemos externar a dor. Cederia à pele, sem titubear, esse impulso violento que sufocava o peito, para que o furor ardesse o quanto desejasse. Porque doer não é sofrer. Doer é tolerar e remediar, sofrer é angustiar e retroceder. É suplicar à dúvida que surge da fragilidade. É precisar de um carinho, não por carência, mas por distração.

Fechei os olhos. O tempo passava devagar, podia sentir cada gota de água.

Amor... Porque tinha de ser esse o pretexto vertiginoso para a procriação humana? Um sentimento mórbido com intensos lampejos de encanto e adoração. Mas, justifica? Lágrimas que derramei, amigos que afastei, amigos que deixei de fazer, encontros que eu adiei, lábios que deixei de beijar, sonhos que desisti. Deixei de ser, hesitei falar e temi fazer. Fiz o que não queria, o que não devia e o que não podia. Perdoei sem querer perdoar e não esqueci o que queria esquecer. Digeri desveros e suportei perfídias. Descobri o ódio, a cólera, raiva, martírios, decepções e rancores. Ensimesmei. Dediquei tempo, inspiração, agrados e afagos. Fui amigo de Deus e do Diabo. Justifica?

E para não soar um tanto egoísta, sou a principal testemunha da situação inversa, o personagem primário de toda a recíproca.

Não que esse amor em que Anice cravou as unhas seja de todo inútil e desprezível, mas bem que poderia ser mais abstrato.

Abri os olhos, estava ali havia 20 minutos. A água fria tinha a força de uma comporta. Talvez devesse tomar um café, um ar. Ou tomar alguém nos braços que não seja aquela fragilidade dissimulada na forma de mulher, na forma de Anice.

Felipe Abreu
Enviado por Felipe Abreu em 04/05/2012
Reeditado em 20/07/2015
Código do texto: T3649147
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