Visita às 3h00

Márcia! Gritou quando se ergueu com a mão direita estendida como se tentasse segurar alguém que estava caindo em um precipício. Suava frio. Olhou para os lados, nada pode ver com a escuridão, mas sentado na cama sabia que estava no seu quarto. Sozinho, onde por tantas vezes esteve bem acompanhado. Por dois anos namorou com a linda bancária Márcia, era linda aos seus olhos. Pedro, professor universitário, tinha ganhado o bastante para comprar o apartamento onde residia. Por um ano morou sozinho naquela aconchegante residência com banheiro, dois quartos, sala de estar, cozinha, dispensa e uma área de serviço.

As coisas tinham ficado realmente boas quando começou a namorar a Márcia. Rompeu a solidão. Nunca tinha levado nenhuma mulher ao apartamento até conhecê-la, quando em uma noite os dois não resistiram e se entregaram um ao outro. Substituiu a cama de solteiro por uma grande cama de casal, e por tantas vezes a teve entre os braços. Gostava quando ela ficava por cima. Ela deveria estar ali com ele. Dormindo, abraçados. Deveriam ter se casado há uma semana, mas três dias antes da cerimônia civil, ela se queixou de fortes dores de cabeça. Foi ao médico que recomendou internação imediata e uma bateria de exames. Márcia se queixava que as dores aumentavam. O diagnóstico de aneurisma precedeu a morte que chegou um dia depois. Impossível! O desespero o consumiu. Junto aos pais dela chorou desesperadamente. Não podia ser verdade. A felicidade seria consumada com o casamento. Aquilo não estava acontecendo.

Deitado na cama rememorava tudo. Cada minuto de sofrimento, do diagnóstico ao enterro. Não foi a universidade aquela semana e talvez não fosse no dia seguinte, nem na semana vindoura. Não queria fazer nada, apenas sentir o sofrimento. Vivenciá-lo. O telefone fixo tocou constantemente até tirá-lo de linha, o celular foi desligado logo, ante tantas condolências de conhecidos. Amigos foram ao seu apartamento, mas os impediu de passar sequer da porta. Não queria ver ninguém, nem falar com ninguém.

Enquanto pensava, permanecia deitado do lado direito da cama, onde se habituou a dormir. Ligou a luminária e se levantou, foi ao banheiro. Parou diante do espelho. Sua face parecia devastada. Os olhos muito vermelhos característicos de quem chorava copiosamente, olheiras profundas, cabelos desgrenhados, rosto mais magro que parecia tê-lo deixado mais comprido, barba por fazer. O rosto que encantou Márcia era diferente. Mas também dormira muito mal nas últimas noites, chorara muito, comera pouco e fora de hora. Jogou água no rosto com as duas mãos e antes que derramasse lágrimas diante do espelho, saiu. Apagou a luz e fechou a porta. Voltou para o quarto, deitou-se, desligou a luminária.

Como seria bom tê-la novamente, pensou. Gostaria tanto que ela estivesse entre seus braços, sobre o seu corpo. Como a amava. Repetiu isso inúmeras vezes, inclusive quando ela não podia mais ouvir. A única mulher que amou até hoje, e com certeza a única que o amara. Dado a reclusão, nunca fora um homem de muitas namoradas.

Lembrou-se do sonho que tivera quando acordou. Nele a encontrou em um campo florido. Ela estava linda, mas não sorria. Queria dizer-lhe algo com aquela face séria? Correu em sua direção, mas não a alcançava. Corria, mas não atingia. Ergueu o braço direito, os dedos querendo fechar-se, segurá-la, quando acordou gritando o nome amado.

Desde o acontecido não tinha sonhado, até aquela noite. Teria ela querido lhe dizer algo? Uma mensagem? “Besteira! Isso não existe, só o aqui e agora! E eu a perdi, e não sinto mais forças para continuar”, concluiu. “O rosto dela parecia tão triste. Será que ela era mesmo? Será que foi mais do que um sonho?”, voltou a pensar.

Pedro tinha muitos alunos com quem se relacionava bem, no entanto, teve de admitir que ficou surpreso ante as demonstrações de carinho por parte deles e também dos amigos. Ao lembrar-se disso achou que não podia continuar bancando o irresponsável, deveria lutar como todos os personagens históricos que sempre admirou. Há pessoas que se importam. Devia honrar a memória de Márcia. Aquele pensamento simplista já tinha lhe ocorrido antes, mas não com tanta intensidade como neste momento. Sentiu-se estranhamente reconfortado. Viveria pelos dois. Agora seria bom dormir, pois o dia seguinte viria com muito trabalho para tirar do atraso. Olhou para o relógio, os ponteiros brilhantes marcavam 3h00. Onde será que a Márcia está? Pensou antes de adormecer.

Ao lado da cama, Márcia pousou a mão esquerda sobre a testa de Pedro, fez um carinho, ergueu-se, esboçou um sorriso e segundos depois sumiu.

FIM.