Sapatinhos Azuis
Ao som de Chico Buarque
O que mais me intrigava nela eram seus sapatinhos de camurça azul. Deixavam seus pés tão pequeninos. Eu não sabia, até então, de onde ela havia tirado aqueles sapatinhos, que usou durante todo o inverno, ainda que o azul destoasse das cores do resto da roupa. Mas boa parte do tempo eles combinavam com o casaco jeans, o laço azul nos cabelos, a cacharrel azul marinho. Os olhos azuis. Tão azuis.
Mas não quero me ater aos detalhes físicos agora, não. Até então só seus sapatos azuis me intrigavam. Eu me sentava no lado oposto da sala na faculdade, e conseguia observá-la sem ser notado. Um jeito diferente de sentar das demais. Colocava os dois pés na cadeira e apoiava as costas na parede, um jeito um tanto relaxado, mas que ficava lindo nela. Os dentes me irritavam um pouco, talvez por me causarem inveja, aqueles dentes tão brancos e tão bem alinhados que apareciam perfeitamente enfileirados, por ordem de tamanho, quando ela sorria.
Nunca tive coragem de puxar assunto, mesmo quando chegava mais cedo e ela já estava lá, debruçada sobre um livro velho. Eu me sentava sempre no lado oposto da sala. Ela levantava um pouco a cabeça, sorria timidamente e eu retribuía com um meio sorriso, provavelmente corando muito. Levou muito tempo para conversarmos, e nossa conversa se deu por causa de um episódio muito curioso.
*
Eu estava há pouco tempo na cidade e houve boatos de que um circo estava para chegar. Sempre gostei muito de circo, e havia muito tempo que visitara um pela última vez. Logo fiquei animado para ir e chamei alguns amigos. Fomos todos. Palhaços, mágicos, trapezistas, mais palhaços, globo da morte... Eu observava tudo maravilhado, extasiado pela magia do circo. De repente, as luzes diminuíram. O apresentador do circo anunciou um espetáculo exclusivo para a cidade. Disse que nenhuma outra cidade da região teve a oportunidade de contemplar esse número. Todos no circo silenciaram. Uma tênue luz azul foi acesa, e fumaça de gelo seco subiu do picadeiro. Uma única moça entrou no picadeiro e se postou bem no centro. Estava vestida com um collant azul claro, ou talvez branco, azulado pela luz. Elevou a perna esquerda à altura da cabeça e então eu vi. Ela usava sapatinhos azuis de camurça. Meu coração se agitou de um jeito estranho, mais forte quando começou a tocar uma sinfônica de Tchaikovsky. Era ela, a moça da faculdade, com seus sapatinhos azuis de camurça. De onde estava eu não conseguia vê-la direito, mas os sapatinhos não mentiam.
Ela dançava por todo o picadeiro, como uma bailarina e num crescendo repentino na sinfonia, abriu os braços e abandonou o chão com violência. Aplausos efusivos ecoaram pela tenda, enquanto ela subia a vinte ou trinta metros do chão. Os cabelos bem dourados estavam presos por um coque no alto da cabeça, os braços dançavam levemente como o resto do corpo. As pernas, lindas mesmo por baixo do collant, se balançavam e desafiavam a gravidade, que se deixava com gosto ser desafiada. Meus olhos começaram a se encher de lágrimas e um sorriso infantil tomou conta do meu rosto. Eu me imaginei com ela, subindo alto e abandonando a Terra juntos, deixando sete bilhões de pessoas perplexas e abobalhadas com nosso voo. Ela sorria com todos aqueles dentes perfeitos, que agora só me causavam ternura. Não sei bem como terminou o espetáculo, tudo fica obscuro pra mim depois dessa parte, como se ela tivesse levado toda a luz com ela para os bastidores do circo.
*
Na segunda feira cheguei mais cedo na faculdade, como de costume. Lá estava ela, com seu livro velho, sentada de qualquer jeito na cadeira, com seus sapatinhos azuis de camurça. Respirei fundo e me dirigi pra carteira atrás dela. Ela teve um sobressalto quando percebeu que me sentei tão perto e levantou a cabeça. Eu disse um oi, e a cumprimentei com um beijo no rosto. Foi a primeira vez que vi seus olhos de perto. Quase me afoguei naquele imenso azul de seus olhos e fiquei assim, perdido entre o mar e o céu daquele olhar durante nem sei quantos segundos. Ela sustentou meu olhar durante um tempo, depois abaixou a cabeça e prosseguiu sua leitura. No rastro do gesto senti seu perfume, um cheiro doce de jasmim, com um fundo acre, não sei do que, mas que só me cercou ainda mais. Tomei coragem. Respirei fundo.
– Eu vi você no circo, sábado.
Sua mão tremeu um pouco. Ela deu um suspiro, corou, parecia estar medindo as palavras. Então se levantou, olhou para mim e sorriu.
– Eu achei sensacional.
– Olha – ela disse – Eu não gosto muito de falar sobre a minha vida.
– Desculpe. - Me calei.
Não entendi o porquê daquela reação, mas abri minha mochila e comecei a arrumar minhas coisas em cima da mesa. Ela me olhou de canto, pareceu um pouco constrangida. Eu peguei meu Drummond na mochila e comecei a folhear, despretensiosamente. ‘Bem’, pensei, ‘ela pode não gostar de falar sobre sua vida, mas não quer dizer que ela não goste de falar, certo?’.
– O que você está lendo? – arrisquei.
– Um livro. – ela disse, seca.
– Fala sobre o quê? – insisti.
– Olha aqui, Kelvin. – ‘Caramba! Ela sabe o meu nome. Ela sabe a droga do meu nome. E eu não sei o dela. Como ela sabe o meu nome? Seria melhor se não soubesse, esse nome ridículo’.
–... mas eu não gosto de falar. – ‘Droga, o que ela disse?’, fiquei olhando pra ela, ainda chocado com o fato de ela saber meu nome. Ela me olhou inquieta, eu percebi e baixei os olhos. Ela voltou ao livro.
Minha vontade de falar mais alguma coisa era enorme. Eu precisava saber de onde ela sabia o meu nome, por que ela estava no circo, de onde vinham aqueles sapatos azuis, que cheiro era aquele em seus cabelos e pele, onde quer trabalhar depois que se formar. Mas fiquei receoso em levar outro fora. As pessoas começaram a chegar, logo a professora entrou e começou a aula. Não teria outra chance de tentar.
*
No fim de semana o circo já tinha partido. Fiquei pensando se ela não teria ido embora junto com ele, e me deu uma tristeza grande de ficar pensando nela com seus sapatinhos azuis, dormindo no trailer do trapezista, talvez. Passei o final de semana entre copos de conhaque com gelo, poemas inacabados, frases soltas. Fiz alguns trabalhos de faculdade assisti a um filme, mas, de fato, não consegui me livrar da lembrança daqueles sapatos azuis de camurça, voando acima de todas as cabeças e de todas as minhas possibilidades. Sonhei com aqueles olhos azuis e acordei com gosto de ressaca. Na segunda feira fui para a faculdade.
Cheguei tão cedo quanto o habitual e fui direto para a sala. Ela não estava lá. Era isso. Tinha acabado, sem nem ao menos começar. Ela foi embora com o circo e, muito provavelmente, estava na rede, dentro do trailer do trapezista... Sentei-me, melancólico, no lugar que ela costumeiramente ocupava. Tentei sentir algum cheiro, ou encontrar algum resquício que desse a entender que ela, um dia, sentara ali. Me senti um tanto idiota e logo parei. Coloquei caderno e estojo sobre a mesa e me debrucei sobre Drummond. Fiquei preso em um poema, no qual pensei ter encontrado a chave de um outro, quando senti uma mão sobre o meu ombro. Me virei e lá estava ela, a moça dos sapatinhos azuis de camurça, com sua mão branca, suas unhas pintadas de vinho, sobre o meu ombro. Fiquei desconcertado, sem reação.
– Esse lugar aí é meu, né, Kelvin? – ela disse, sorrindo.
Eu estava, realmente, atônito. Comecei a recolher meus pertences, de forma confusa, derrubei tudo no chão. Ela deu uma risada comportada, linda, que eu jamais ouvira antes. Ela se abaixou e começou a me ajudar com os livros e cadernos. Coloquei tudo meio socado dentro da mochila e me virei para sentar do outro lado da sala.
– Senta aqui atrás. – Ela me convidou, apontando a carteira com um aceno de cabeça.
– Como você sabe o meu nome? – consegui perguntar.
– Eu vi na lista.
– Ah, sim. – Fiquei desapontado. Eu nunca havia procurado o nome dela na lista. – Mas eu não sei como você se chama.
– E isso importa?
– Bom, se o teu nome for tão ridículo quanto o meu, eu não te culpo por não querer dizer.
Ela riu, de leve. Então começamos a conversar. Sobre a matéria da faculdade, sobre o clima, o inverno rigoroso. Ela se desculpou pelo outro dia, disse que estava nervosa. Eu não fiz menção de perguntar sobre o circo novamente. Trocamos mais algumas palavras, sobre o Drummond que eu nunca terminava. ‘Ando sempre com ele’, eu disse. ‘E você com o teu, não é?’. Era. Ela disse que eu falava engraçado, empregando ‘te’ depois de ‘você’. Disse que era bonito, meu jeito de falar, diferente dos outros da sala. ‘Você não é daqui’, ela sabia. Eu senti como se ela soubesse muito mais sobre mim, não só o meu nome ridículo, nem minhas origens urbanas, mas muito mais...
Depois de um tempo a conversa desvaneceu. Passamos um tempo somente olhando nos olhos do outro. Eu nos azuis dela, que pareciam refletir os sapatos; ela nos meus castanhos, escuros, que tentam ocultar a alma. Não resisti, desviei os olhos. Ela mexeu um pouco os sapatos azuis. Outra vez me lembrei deles acima das cabeças de todos no circo, aquela noite. Ela pareceu ler os meus pensamentos, mordeu o lábio e me contou sua história.
*
Ela nascera numa família circense. O pai era malabarista. A mãe, contorcionista. Desde pequena foi incorporada no número do pai, ora no da mãe, como é de costume nas famílias de circo. Já um pouco mais velha, interessou-se pelo número de balé. Contou que ficara deslumbrada ao ver, pela primeira vez, as moças de collant preto, equilibrando-se na ponta dos pés. Na época não havia estrutura no circo para executar o número que eu vira no final de semana anterior. A mãe conseguiu, a muito custo, um collant para a menina e uma vaga no número de balé. Por falta de recursos (a vida circense é bem pobre), o collant da menina acabou sendo branco diferente dos demais. E não sobraram recursos para investir numa sapatilha.
Alguns anos passaram, ela foi desenvolvendo seu talento nato, acabou se tornando a mascote do grupo de bailarinas. Foi nessa época, quando tinha cerca de 14 anos, que sua mãe adoeceu gravemente. Além da impossibilidade financeira para pagar o tratamento, a vida no circo não permitia passar mais de um final de semana, ou dois, por vez em cada cidade. Não havia outra saída, senão abandonar o circo. E assim foi. Ficaram nessa cidade mesmo. Alugaram uma casa simples, a ideia era ficar até a mãe estar boa de novo e voltar pro circo, assim que ele passasse novamente pela cidade. Por sorte, o dono do circo era um homem bom, ajudou a família com uma quantidade de dinheiro suficiente para conseguir um lugar e se estabelecer durante um mês.
Eles se instalaram, a menina passou a frequentar a escola regular, que jamais frequentara antes. O pai arrumou um emprego como servente de pedreiro, era o que podia fazer, sem instrução nenhuma. E mãe costurava para fora, quando podia, o que não era sempre. Nesse ponto da história, a moça dos sapatos azuis começou a ficar comovida. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos. Eu disse a ela que não precisava terminar, se não quisesse. Ela insistiu, disse que faria bem, depois de tanto tempo, desabafar, dividir essa história com mais alguém.
Ela contou que foi difícil se adaptar à nova escola. Sentia falta dos números de balé, e não deixou de treinar por um dia sequer. Sonhava com o circo, com as pessoas, com a liberdade. As outras meninas na escola se recusavam a andar com ela, e os garotos a chateavam. O estado da mãe piorou. Os médicos da rede pública não podiam fazer muito, os remédios eram caros e o pai ganhava muito pouco. Um ano se passou, o circo não voltou à cidade. ‘Demoram dois anos’, ela disse, ‘às vezes mais, dependendo se vai dar a volta no estado, na região ou no país. ’ A mãe continuou no mesmo estado e começou a desistir dos médicos. Queria ficar em casa, costurando, ajudando a família, cuidando do marido e vendo a filha crescer, enquanto pudesse. Antes ia ao médico duas vezes por semana. Diminuiu para uma vez por semana, então duas vezes ao mês, até que finalmente não foi mais. A menina foi se acostumando à escola, conseguiu uma ou duas amigas, o pai conseguiu um emprego de estoquista no mercado do bairro, e assim foram ficando, a situação financeira não era das melhores, mas já não passavam fome.
Naquele ano, montaram uma árvore de natal no canto da pequena sala da casa de dois cômodos. Não era uma árvore muito bonita, nem cheia de enfeites. Era magra e com poucos galhos, parecendo até meio seca. Mas era uma árvore de natal. A primeira que a família pôde ter. Na manhã natalina, a menina encontrou um embrulho debaixo da árvore. Era uma caixa simples, dessas que a gente vê nos filmes, com um laço tosco de fita azul. Ela abriu a caixa, excitada com a ideia de ganhar um presente, depois de tanto tempo. O último que ganhara, até onde podia recordar, era um novo collant branco, pois o outro já estava ficando pequeno. Tirou o papel crepom de dentro da caixa e encontrou, no fundo, o mais inesperado presente. Seus olhos brilharam, pareceram refletir a cor das lindas sapatilhas de camurça azul que acabara de ganhar. Encantada com o presente, correu ao quarto dos pais para agradecer.
Ao adentrar o quarto, iluminado apenas pela luz difusa do sol, filtrada pelas cortinas finas, viu o pai ajoelhado ao lado da mãe. Ele estava de cabeça baixa, e ela imaginou que orava, como costumava fazer, fervorosamente. Percebeu que ele tremia um pouco. Gemia, também. Quando chegou dois passos mais perto, sentiu um frio percorrer a espinha e pressentiu quem por ali passara há pouco. Pode respirar o hálito pesado e cinza, e por um momento pareceu atravessar um espectro. Subiu na cama e, com os sapatinhos nos pés, deu um beijo no rosto da mãe, sussurrou um obrigado e se aninhou em seus braços, agora frios e sem vida.
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As lágrimas saíam de seus olhos azuis, corriam por sua face, tão branca, e caíam em direção ao chão. Coincidentemente, encontravam a camurça azul dos sapatinhos, deixando alguns pontos escuros. Eu segurei seu rosto entre minhas mãos e tentei acalmá-la, confortá-la de alguma forma. O número de balé que eu vira na semana anterior fora uma homenagem, uma última homenagem, depois de tantos anos. O circo levou quase cinco anos para voltar à cidade e a promessa que ela fizera (ao túmulo da mãe e a si mesma) de dançar com seus sapatinhos azuis no circo nunca foi abandonada. E agora, cumprida. Ela parou de chorar, respirou fundo, parecia aliviada. ‘Por que não foi embora com o circo?’, indaguei. Por causa do pai. O homem sofreu muito depois da morte da esposa, passou a beber, se isolar. Ele teve que segurar as pontas, trabalhando e estudando a noite para sustentar a casa. O velho se livrara da bebida há dois anos, reencontrara-se, mas um princípio de cirrose já havia se estabelecido. Ela precisava cuidar do pai.
*
Fiquei emocionado com a história da moça dos sapatos azuis. As pessoas da sala já haviam começado a chegar, a professora se instalou à frente da sala e ia começar a aula. Assistimos à aula normalmente e, antes de ir embora, senti uma vontade enorme de abraçar aquela menina, que parecia tão frágil, como aquelas bonequinhas de porcelana, com sapatos coloridos. Ela se levantou. Ficamos de frente, um com o outro. Ela se aproximou com cautela, e eu fui abrindo meus braços à medida que ela se aproximava. Abracei-a contra o meu peito, dei um beijo sobre seus cabelos louros e disse ‘Calma, menina. Tudo está bem agora. Ela está muito feliz com você’. Ela sabia. Deu-me um beijo rápido nos lábios e partiu, deixando em minhas mãos um bilhete, escrito “Meu nome é Cândida”, e um número de celular abaixo. Cândida... De repente Kelvin não me pareceu mais um nome tão ridículo. Mas que importa o nome? Afinal, o que mais me intrigava nela eram seus sapatinhos de camurça azul. E, agora, sua historia, que, de tão linda, tenho vontade de juntar à minha, para trilharmos um só caminho, um par de sapatos azuis e outro de nomes estranhos. Os personagens perfeitos para uma intensa história de amor.
William G. Sampaio [27/04/2012]