Imagem: Cachoeira das Andorinhas- Chapada dos Guimarães - MT)
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TRECHO DO MEU LIVRO - 13



Entretidos na conversa, nem repararam na confusão que se formava logo adiante, à porta de um bar. Um homem – que pela aparência era turista – brigava com um outro, aparentemente um mendigo e bem mais jovem que ele.
Havia algo naquele rapaz que chamou a atenção de Betina. Tinha a barba por fazer, estava sem camisa e era muito queimado de sol. Não deveria ter mais de vinte anos.
Visivelmente embriagado, foi jogado ao chão e ali ficou. Com a mão no rosto, praguejava e esfregava o local onde levara o soco – muito bem dado, aliás. Mas não reagiu.
O turista se afastou e a confusão terminou.
Raul e Betina se aproximaram.
– Você o conhece, Raul?
– Sim, é o Rudi. Vive sempre assim, bebendo e arrumando confusão. Quando não bebe é uma boa pessoa; é amigo, prestativo, gosta de fazer pequenos favores em troca de algum dinheiro ou alimento. Adora as crianças e as crianças o adoram. Mas quando fica assim, dias e dias bebendo, sempre arruma confusão e sempre apanha muito. Mas não é violento. Nunca agrediu ninguém. É como se fizesse isso para... castigar a si mesmo, não sei...
– Ele é daqui?
– Não. Ninguém sabe de onde veio.
Deixaram o local e foram dar entrada nos documentos de Leonora. 
Depois de tudo resolvido foram até um bar para tomar um suco. Betina sentiu que Raul estava um tanto inquieto.
– O que foi, Raul? – quis saber.
– Engraçado... hoje eu estou com uma tremenda vontade de escrever...
– Então vá para casa e aproveite sua inspiração, homem! Eu vou dar uma volta sozinha, fique tranqüilo!
– Não se importa mesmo?
– Não. Mas vai pensar se vai me deixar ler um dia?
Ele olhou para o céu e juntou as mãos, dizendo:
– Prometo!
– Então te encontro mais tarde. Tchau, mestre!
Betina ficou olhando-o, enquanto se afastava: era um homem estranho e ao mesmo tempo encantador. Não era bonito, nem feio. No entanto tinha algo que ela não sabia definir. Parecia... de um outro mundo, um daqueles personagens dos livros de ficção, algo assim. Sentia que a cada dia gostava mais dele...
Resolveu passear um pouco. Lembrou-se de que gostara muito de um lugar por onde passara de carro com Raul. Era uma cachoeira muito bonita. Embaixo o rio corria velozmente, fazendo uma espuma branca entre as pedras. Ao redor havia muitas árvores e também muitos pássaros, que cantavam o dia inteiro.
Não entendia direito o motivo, mas sentiu uma irresistível vontade de ir até lá.
Resolveu seguir sua intuição. Foi ao chalé, trocou de roupa e saiu novamente em direção a tal cachoeira.
Lá chegando, logo percebeu que não estava sozinha: alguém nadava entre as pedras.
Imaginou que só poderia ser um louco para nadar ali. Curiosa, sentou na margem do rio e ficou olhando. Até que alguns minutos depois a água fez um movimento bem à sua frente e logo surgiu uma cabeça: Rudi.
Betina se assustou, mas não demonstrou. Tampouco ele – que ficou imóvel olhando para ela, apenas com a cabeça fora da água por mais ou menos dois minutos.
Então, pulou para fora e sentou ao lado dela.
– Quem é você? – perguntou.
– Eu sou Betina. E você é o Rudi.
– Como sabe meu nome?
– Digamos que eu seja... uma bruxa.
– Parece mais uma fada! – disse sério.
Ela riu da ingenuidade de suas palavras.
– Não tem medo de ficar aqui sozinha comigo? Dizem que sou maluco! – perguntou, em seguida.
Betina olhou bem dentro dos seus olhos – e foi um daqueles olhares penetrantes, em que podia ver até a alma do sujeito. Disse:
– Não, Rudi. Você não é louco. Seu coração é bom. Você é do bem. Porque castiga a si mesmo?
– Porque está dizendo isso? – tentou se levantar, mas Betina impediu, segurando-o pelo braço:
– Psiu... ouça, por favor! Eu sei que é bom; não é a peste que aparenta ser, ou que quer demonstrar aos outros que é! Sei que gosta de ajudar. Sei que gosta das crianças e que elas gostam de você. E se as crianças gostam de você é porque não é mau...
– Parece mesmo uma bruxa! Como sabe tudo isso de mim?
Betina não respondeu. Insistiu:
– Vamos, responda! Porque age assim? Será que gosta de ser maltratado, de ser odiado? Será que gosta mesmo de viver bêbado pelas ruas? Não acha que poderia ao menos... tentar mudar?
Rudi também não respondeu. Tinha os olhos fixos em algumas crianças que brincavam na outra margem do rio. Ali por perto seus pais faziam um animado piquenique. Pareciam todos turistas. Riam e conversavam despreocupadamente.
– Vamos, Rudi, responda!
– O que quer comigo? Por que não me deixa em paz? Sou assim e não vou mudar! – levantou-se e começou a se afastar.
Betina correu atrás dele. Olhou mais uma vez em seus olhos, longamente e em silêncio.
Rudi – sem entender direito porque – começou a sentir que sua resistência diminuía. De repente quis ficar ali, conversando com aquela linda desconhecida que olhava dentro dos seus olhos – coisa que ninguém fazia – e o enchia de perguntas tão estranhas.
Já não havia hostilidade em seu olhar. Quando falou de novo sua voz era a de alguém que começava a confiar:
– Está bem. Vamos conversar...
Sentaram-se outra vez na relva quente do sol.
 Sentia que precisava fazer alguma coisa por Rudi. Iria ao menos tentar...
Betina disse, com imenso carinho na voz:
– Você é incrível, Rudi! Tem uma inteligência privilegiada, é sensível, generoso! Por que não usa essas qualidades para o seu próprio bem, para viver melhor? Dê um objetivo à sua vida e siga em frente... até atingi-lo! Mas, com vontade, com garra! Não se deixe destruir pela bebida, Rudi! Não siga por esse caminho! Você é uma pessoa especial, creia nisso! Eu acredito firmemente que você seja capaz disso... e de muito mais!
Um tanto perturbado, o rapaz olhou para ela.
– Um... objetivo? – balbuciou.
– Sim! Você é tão jovem, é bonito! Qualquer moça poderia se apaixonar por você! Nunca pensou nisso? Será que nunca pensou no amor, Rudi?
O rapaz continuava olhando para ela, de boca aberta.
De repente foram interrompidos por uma gritaria: um dos garotos havia caído na água!
Ali era um local de muitas pedras e a correnteza era forte, por ser muito próximo à cachoeira. Era muito perigoso – ainda mais para uma criança.
Rudi não pensou duas vezes: pulou na água.
A criança se debatia. A espuma cobria-lhe a cabeça. Agitava os bracinhos, aparecia e desaparecia. A família gritava. As outras pessoas também. Betina rezava.
Rudi finalmente o alcançou e começou a trazê-lo de volta. Mas, algo no fundo do rio – talvez uma pedra muito lisa – o fez escorregar e eles afundaram novamente.
Betina ficou ainda mais aflita. E o menino? E se ele tivesse perdido o menino? – perguntava-se, o coração aos pulos.
Cada segundo parecia um século!
Não agüentou mais: pulou também na água, nadou até o local onde haviam afundado e mergulhou.
Viu que Rudi ainda segurava o menino, mas ambos tinham os pés presos entre as pedras.
E agora? Como salvá-los sozinha? Suas forças não eram suficientes para afastar aquelas pedras, e além do mais tudo tinha que ser feito muito rápido, pois eles não agüentariam por muito tempo debaixo d’água!
Subiu à tona. Precisava de alguns segundos para respirar. Sua mente pensava freneticamente: “Vou conseguir, tenho que conseguir”!
Voltou ao fundo. Rudi e o menino continuavam na mesma posição. Fechou os olhos e concentrou toda a força de sua mente para que alguma daquelas pedras se movimentasse. Respirou fundo, reunindo todas as suas energias. Trincou os dentes, escolheu uma das pedras e começou a puxá-la.
Como se fosse um milagre, tomada de uma inexplicável força que nem ela mesma sabia que possuía, conseguiu afastar a pedra um pouquinho. Não mais que uns dois ou três centímetros, mas o bastante para que Rudi pudesse puxar o pé e retirar também o do garoto.
Nadaram rapidamente para cima.
Quando vieram à tona uma pequena multidão já havia se formado na beira do rio. Ao verem os três sãos e salvos, todos aplaudiram, assobiaram e fizeram uma tremenda algazarra, elogiando o gesto heróico de Betina e Rudi.
Depois de alguns minutos o menino já estava recuperado do susto e entregue aos pais – que estavam numa felicidade tão grande que riam e choravam ao mesmo tempo.
Mas, quando o pai da criança ia começar a agradecê-los, olhou para Rudi e ficou ainda mais pálido do que já estava: o homem que acabava de salvar seu filho era, nada mais nada menos que... o bêbado no qual batera naquela manhã!
Pegou a criança nos braços e disse, desconcertado:
– Obrigado... muito obrigado!
Rudi também o reconheceu, mas ficou quieto. Mas o pai do menino, muito emocionado, não se conteve e começou a chorar, pedindo:
– Perdoe-me, por favor! Hoje de manhã eu... te dei um soco e agora você acabou de salvar a vida do meu filho!
Mas Rudi não era, digamos assim... muito dado a certas manifestações de carinho e agradecimentos. Disse apenas, seco:
– Não fui eu sozinho. Se ela – apontou para Betina – não tivesse mergulhado e afastado aquela pedra eu não conseguiria e morreria também.
O casal abraçou-os, profundamente agradecidos. A mulher quis saber:
– O que podemos fazer para recompensá-los?
– Nada! – respondeu Betina. – Nós também estamos muito felizes por tudo ter terminado bem! Essa é a nossa recompensa, não é Rudi?
Ele balançou a cabeça, concordando.
– Vocês moram aqui? – quis saber ainda a mãe do menino.
– Não – responderam em coro.
– E vocês? – por incrível que pareça, Rudi perguntou.
– Nós somos daqui sim, mas há dez anos moramos em Nápoles, na Itália – ela explicou.
Betina sentiu algo como um estalo na cabeça. Repetiu:
– Itália... Nápoles...?
– Sim. Estamos passando nossas férias aqui. Vamos ficar até o final do mês. Mas, peçam alguma coisa, por favor! Gostaríamos tanto de retribuir a alegria que nos deram!
Rudi disse:
– Nada.
Mas Betina acabava de ter uma idéia fenomenal. A mulher percebeu e a encorajou:
– Vamos, fale!
Ela disse, finalmente:
– Sim, eu... preciso de uma coisa. Mas não é para mim. Será que poderíamos conversar... uma outra hora?
– Claro! Encontramos-nos na pracinha amanhã à tarde!
– Combinado!