O Drama de Norma

Num desses dias em que a alma vibra na sensação do bem estar, vale a pena fazer qualquer coisa. Vale a pena caminhar, respirar fundo, sentir-se vivo, enfim. Este bem estar inundava o peito de Norma naquela tarde de sábado na estação de trem. Uma energia benéfica percorria-lhe o todo do seu ser. Sentia-se de bem com vida, como nunca antes; voltava a sorrir. Quando tal sensação invade, vão-se as tristezas, o horizonte do futuro surge claro e promissor. A mente, ansiosa por vida, pinta as imagens do sonho, prestes a sair da escuridão da dúvida e mergulhar de cabeça no mar da esperança e do amor. O coração, com seus dotes mil, seus arcanos insondáveis e cheio de recusas passadas, ou rejeições, espera de novo a chegada do seu salvador.

Inundada por tal onda benfazeja, não percebeu a aproximação da máquina locomotiva senão quando esta surgiu à sua frente, abrindo as portas. Ergueu-se do banco e, apressada, embarcou. As pessoas quase que se espremiam umas às outras e o murmúrio de vozes reinava absoluto no ambiente limitado da composição.

– Permita que segure sua bolsa?

– Pois não – respondeu Norma ao rapaz, entregando-lhe, aliviada, sua pequena sacola e mais outro volume que portava. Durante os primeiros minutos daquela viagem um frio paralisante percorreu-lhe todo o corpo, causando incômodo nervosismo. Havia uma razão para isso: Ele não afastava os olhos de Norma; fixava-a de uma forma anormal, indiscreta até. Duas estações à frente vagou um assento; Norma sentou-se ao lado do rapaz. – Muito obrigada – agradeceu mais uma vez, recolhendo a bolsa e o volume. Porém, antes mesmo de acomodar-se no banco, ouviu dele:

– Poxa!, mas que surpresa agradável!

– Eu o conheço? – perguntou.

Por ser bonita e atraente, Norma via-se, não raro, assediada por quase todos que cruzavam o seu caminho. Aquela poderia ser mais uma situação idêntica às tantas que ela vivia diariamente; portanto não deu maior atenção. Apenas sorriu com sua malícia característica de mulher vaidosa. No entanto, deixando um pouco de lado a vaidade e o orgulho de mulher bonita, fixou melhor o rapaz e reconheceu naquela fisionomia um antigo namorado da faculdade. Este rápido vislumbre trouxe-lhe à memória deliciosos momentos que vivera tempos atrás, ainda moça, freqüentadora assídua dos bancos escolares, mas, muito mais das rodas vespertinas de troças e folguedos de sua rica e confusa adolescência. E, acima de tudo, reacendeu-lhe uma esperança.

Chamava-se Afonso; e a grande transformação que sofrera no decorrer dos anos surpreendeu demais a moça, que comentou: – Como você está diferente! – E assim reataram um relacionamento já quase perdido no tempo; e aqui começa essa história.

Vale dizer que Afonso, como namorado de Norma durante bom número de meses, viveu o privilégio de povoar-lhe os sonhos de menina moça, fazendo parte de sua vida afetiva. Contudo, não a amava; Norma era para ele um passatempo, nada mais. Mas o primeiro amor é para o coração feminino o que o colírio é para a vista enferma: Alívio da opressão, aumento da esperança de um futuro claro e sem manchas. As transformações inerentes àquela fase eram acentuadas no comportamento da jovem apaixonada. Mas o corpo, este denunciava a felicidade interior que ela vivia. A fisionomia não consegue esconder o estado d’alma. Da mais profunda tristeza a mais contagiante das alegrias, somos surpreendidos nos ínfimos meneios de cada músculo ou nervo de nossa face externa. Porém, no corpo, como um todo, a mudança era singular. Dos quatorze aos dezesseis anos tornou-se irreconhecivelmente linda, um querubim de carne e osso.

A beleza de Norma, seus contornos físicos, seu sorriso alvo e a tez morena, enriquecida pelos tratos que lhe davam, menos os cosméticos do que a luz natural do sol benfeitor do Rio de Janeiro sobre as praias mudas e disponíveis; esta beleza chamava atenção, e como! Outras como ela até que havia, e até mais bonitas. Mas Norma sabia unir suas qualidades físicas ao charme de sua personalidade e à inteligência de sua mente; aí tornava-se imbatível. Descartava os mais disputados rapazes de sua roda, fazendo outras meninas morderem-se de inveja e despeito.

Mas, o que via em Afonso? Talvez nada demais; talvez simplesmente o encanto do primeiro amor. É certo que ele mal percebia este encanto de Norma. Diz o poeta que isso é próprio do amor: Um amando perdidamente e o outro, negligentemente, deixando-se amar. A diferença de idade podia ser a causa da indiferença de Afonso. Tinha vinte e quatro anos quando Norma tinha apenas dezesseis. Conhecera o sexo aos dezessete e já tivera várias experiências. A mais marcante foi aos vinte e um quando engravidou uma moça. Este fato desnorteou-o; foi a primeira grande frustração com as mulheres. Achou que fora enganado, pois não haviam combinado nada daquilo. Abandonou a mãe com o filho que nem chegou a conhecer; não sem uma chama de remorso a queimar-lhe o peito, mas abandonou-os. Depois, conheceu Norma, com quem retomou suas atividades de namoro, mas sem se arriscar.

O fato de Afonso não amá-la poderia estar ligado ao seu primeiro fracasso amoroso. O espírito ainda não havia se recuperado. Mas, prosseguindo sua união com ela poderia superar o passado e ser feliz sem ressentimentos. Para isso teria que se contentar com beijinhos e abraços para não estragar tudo; ou casar-se de uma vez. Mas aí já seria outra história. Ultimamente conversavam bastante sobre o futuro. – Você me ama? – dizia Norma.

– É claro, meu amor; mas que jeito estranho de perguntar! Você não acredita?

– Não é que eu não acredite; apenas sinto você um tanto frio às vezes.

– E as outras vezes? – brincou Afonso.

– Não estou brincando. Já namoramos há vários meses e você nunca avançou o sinal; sabia que todo namorado avança o sinal de vez em quando?

Afonso ficou meio pálido nessa hora. Olhou para os seios dela, os seus contornos e a firmeza do seu porte traduziram-lhe francamente as últimas palavras. À vontade que tinha naquele momento de incontido desejo, arrebatado pelo oferecimento explícito da namorada, era tomá-la nos braços ali mesmo e mostrar-lhe sua masculinidade. Por momentos, congelou o olhar sobre ela, seduzido que estava; ficou sem palavras. Norma usava um peitilho cor de rosa, sendo a única peça que lhe cobria os seios. A barriga era nua e um shortinho branco e sandálias também brancas completavam-lhe o charme juvenil. Os olhos castanhos e muito expressivos eram fixos nos dele, seguindo-lhes os movimentos. Quando, como quem perscruta uma obra de arte, Afonso terminou sua deliciosa viagem, ela perguntou:

– Você me acha bonita?

– Você é linda! – respondeu.

– Então, por que não me deseja? – outra pergunta que deixou o rapaz novamente embasbacado.

O que teria dado naquela menina? O que vinha matutando ultimamente naquela cabeça? Já vamos saber.

Afonso exercia a profissão de representante comercial e possuía um pequeno escritório no centro do Rio. Tinha um sócio, Osvaldo. Era casado, com uma família bem constituída, filhos, sogra e tudo mais. Amava a esposa, mas de uns tempos para cá vinha desconfiando de sua conduta; fez de tudo pra ver se descobria. Seguiu ele mesmo os passos dela, colocou detetive, nada. Como não tinha provas para a sua desconfiança, desistiu por uns tempos. Chegou a pensar que as mudanças em alguns pontos do comportamento da mulher se devesse ao amor que já não sentia por ele; conformou-se. Como as angústias retornassem após alguns meses, retomou as investigações. Mas onde entra Afonso nesta história? Vejamos.

Entrara para a sociedade com Osvaldo quando este já, mais uma vez, desistia de achar razões que justificassem a frialdade do seu relacionamento com a mulher, antes tão rico e amorável. Na condição de jovem bonitão e afortunado com o sexo oposto, Afonso seria a salvação do seu casamento ou a ruína total do mesmo. No dia a dia da rotina do escritório, Osvaldo a debuxar sua falta de sorte, passava para o amigo e sócio uma certa insegurança. Contudo este não descartava a hipótese de ajudá-lo, embora achasse a idéia um tanto arriscada.

– Ela não conhece você, não tem porque dar errado. – Uma soma em dinheiro entrou no negócio, o que dissipou de vez as dúvidas de Afonso.

– Está bem; marquemos então dia e local. E não deixe de me passar todos os detalhes; quero fazer tudo certo – disse.

O plano era o seguinte: Afonso devia passar por amante de Vilma, a mulher de Osvaldo, porém, sem consumar o ato. O flagrante seria dado a tempo e todas as dúvidas do marido traído seriam, de uma vez por todas, esclarecidas.

Mas saiu tudo errado. Por uma falha de sincronização, Osvaldo não chegou no local aprazado. Ou melhor, chegou, mas não viu o que precisava. A mulher era mais esperta do que ele imaginava e conseguiu sair dali minutos antes do que qualquer flagrante. Se ficou sabendo da trama, a incógnita será eterna. O fato é que Afonso, levado pela dedução de quem entende do assunto e já um tanto alto pelas doses também sedutoras, foi arrastado do local a tira-colo para longe dos olhos de qualquer mortal, até mesmo deste que redige estas linhas. As provas continuaram inexistentes. O rapaz jurou inocência. As dúvidas de Osvaldo persistiam, agora ainda mais atrozes. Mas Afonso perdeu o emprego; e o amigo. Este... bem, continuou com a mulher, com as angústias de sempre mas sem coragem de fazer o que achava certo.

Se houve ou não algo entre os dois, isto não vem ao caso aqui nesta história, mas fica a lição de quanto o coração feminino é enigmático e insondável. A mulher sabe realmente agir quando se trata de conseguir o que quer para a sua felicidade; e na maioria das vezes acaba conseguindo. Mal sabiam aqueles dois que Vilma fazia parte das inúmeras amizades de Norma; não propriamente Vilma mas uma de suas filhas, Valéria. Freqüentava os mesmos bancos escolares que a adolescente. E as conversas entre meninas nesta fase áurea pairam, na sua grande maioria, sobre temas masculinos. Belos rapazes e suas aventuras amorosas habitam os pensamentos da chusma estudantil que deixou de ser, há muito, aquele sexo frágil e mantém esquecidas ou ignoradas as inocentes bonecas num canto qualquer para cingir-se de outros jogos, menos monótonos e muito mais excitantes.

Valéria sabia que Afonso e Norma eram namorados. E foi através dela que Norma ficou sabendo onde trabalhava o rapaz; isso foi no começo do relacionamento. Ele nunca entrava em detalhes sobre sua vida particular, pois não queria, ou não imaginava que o caso fosse alongar-se por mais do que umas poucas semanas, que é como vinha se dando com todas as garotas que conhecia desde o seu malfadado romance responsável pela frustração amorosa que vinha amargando desde então. Norma, julgando-se apaixonada, passou a acompanhar furtivamente os passos do namorado. Como estudava à noite, sempre que surgia uma oportunidade, não hesitava em cabular uma ou mais aulas a fim de conhecer-lhe o destino ao deixar o escritório.

Numa noite, por volta das dezenove horas, tomava sorvete encostada ao balcão de uma lanchonete no bairro de Botafogo; havia descido do metrô a uns cem metros dali. Esperara por mais de meia hora a saída de Afonso do escritório no centro e no mesmo local onde ele costumava passar diariamente para pegar o ônibus que, ela sabia, o levaria para o bairro de São Cristóvão onde morava. Raramente se viam durante os dias úteis da semana. Ele alegava cansaço do trabalho e a urgência em completar o estudo que fazia, em casa mesmo, a fim de prestar exame para o vestibular que se aproximava. Como ele não aparecia, ela decidiu ir embora. Estava agora há meio caminho entre a estação e o colégio onde estudava e, enquanto saboreava o sorvete, pensava se ia ou não aos estudos.

Quando tirava da bolsa o dinheiro para pagar, avistou, parado ao sinal luminoso, belo automóvel guiado por uma mulher ainda mais bela. Tudo muito natural se não fosse aquela mulher Vilma, a esposa de Osvaldo e, ainda para desagradável surpresa de Norma, não estivesse ela acompanhada de Afonso. A menina não se deixou avistar; os dois sequer olhavam para os lados de tão entretidos que estavam um com o outro. Norma não se abalou. Sentiu, sim, grande tristeza interior. Saiu de onde estava e tomou o caminho de casa, não sem antes perambular por algumas ruas do bairro, cabisbaixa e de alma dorida. Ao dar por si já eram perto de dez horas das noite. A desilusão que a invadia igualava-se à espessidão da noite. Nesse estado, embarcou novamente numa composição do metro e seguiu para o Flamengo, onde morava.

Contudo, a despeito do ocorrido, no dia seguinte Norma já era outra pessoa, ou melhor, a mesma que sempre fora. Era tão cheia de vida que um fato como este não iria abalar seu ser. Mas ficou pensativa. A intuição feminina parece ter-lhe dado a visão do problema. Afonso, saindo com uma mulher casada, só podia estar em busca daquilo que ela não podia lhe dar: sexo. “Então, se é esse o caso, posso tentar resolvê-lo”. A menina passou aquele dia, e os seguintes, pensando muito a respeito do ocorrido, ruminando as possibilidades para uma solução feliz. E se se entregasse ao rapaz? Será que o amava? Não era apenas o orgulho que, ferido tentava sobressair-se? Valeria a pena perder a virgindade para alguém de cujo amor ela não tinha certeza? Norma refletiu muito mas não chegou a uma solução definitiva.

Com quem conversar? Com a mãe? Tinha medo; achava que não entenderia ou que conseguiria no máximo alguns conselhos baseados no amor de mãe, conservador, protecionista, que é, de fato, o que pensam quase todos os adolescentes; então se livrou da idéia. Quanto ao pai, pior ainda; morria de medo só em comentar que namorava e estava apaixonada por alguém com quase dez anos a mais do que ela. Já conhecia de cor e salteado a opinião dele, as quais gravitavam invariavelmente na direção dos seus conceitos machistas e intransigentes. Imagina o que um cérebro como o seu poderia inferir da situação da filha; não, nem pensar.

Resolveu então nada fazer em relação a conselhos, pelo menos de pessoas que os pudessem confundir com sentimentos de afinidade ou experiências penosas e pessoais que influíssem em suas opiniões. Limitou-se à publicações que sempre gostava de ler e que tratavam desta área e conversas com amigas de que gostava e tinha na conta de sinceras e sabedoras do que queriam. Por fim, entregou mesmo o caso à luz da intuição feminina que quase nunca falha nessas horas.

Esperou chegar o fim de semana. Afonso costumava ligar de quando em vez para um breve namoro ao telefone; ela fazia o mesmo mas desta vez foi diferente, embora o tenha tratado com naturalidade nas vezes em que ele telefonou. Ao se encontrarem não tocou no assunto para não demonstrar ciúmes nem ficar em desvantagem; pelo contrário. Recebeu-o com carinho e um pouco mais de atenção.

Norma o recebeu na varanda como geralmente o fazia; ofereceu-lhe café e ele aceitou. Desligou a iluminação principal, deixando o ambiente à meia-luz e sentou-se ao seu lado. Entre beijos e afagos, começaram a conversar sobre assuntos corriqueiros. A mãe, nas tardes de sexta-feira, freqüentava uma igreja evangélica. O pai nunca voltava do trabalho antes das 22:00 ou 22:30. Sendo Norma filha única, não era difícil esconder o namoro. Dentro de casa a mãe mantinha com ele esse segredo. O casal geralmente ficava na varanda até por volta das dezenove horas, quando ela retornava, preparava-lhes um lanche e, em seguida, os dois saiam a passear, retornando sempre antes das vinte e duas horas. Despediam-se a uns dois quarteirões dali. Aos sábados e domingos viam-se na presença da mãe de Norma quando iam à diversões como um shopping center ou um cinema.

Enquanto a mulher não aparecia, aproveitavam aquela quase hora para matarem a saudade, conversando entre carinhos. Norma estava ardente aquela noite. Para ela a ocasião teria de ser especial; queria testar até onde ia a susceptibilidade de Afonso. Além do mais, trajava-se de maneira provocante com saia curta e blusa excitantemente decotada. Com incontido transporte, no pescoço e nos lábios beijava-o, roçagando entre as pernas dele as suas. Ele, à princípio, tomado pelo arrebatamento de Norma, comprazía-se na medida do possível, tendo em vista a impropriedade do local e a promessa que fizera a si mesmo de conter seus arroubos sexuais. O perfume da menina inebriava-o. A respiração resfolegante de fêmea incontida que conhece os pontos fracos de um homem impregnava o ambiente com desejo e suspense. A vestal inocente e comedida dando lugar à mulher dominante e audaz.

Afonso pouco a pouco se deixava conduzir por aquele ímpeto tão ousado de Norma. Como reprimir aqueles beijos? Como impedir o progresso de tais sensações mais do que excitantes? Na medida do possível, porém, conseguia conter-lhe os avanços com bem humoradas frases como: “Poxa!, você assim me sufoca!”, entremeadas de risinhos condescendentes por parte dela que em seguida voltava aos longos beijos e carícias. Súbito, a campainha. Viu-se aliviado Afonso; finalmente um descanso para recompor-se. Trinta e tantos minutos ininterruptos de excitação não é pouca coisa para agüentar-se sem uma resposta à altura; ainda mais vindos de alguém como Norma.

Enquanto ela ia até o portão, empenhando-se em assumir de volta a sua postura natural de moça bem comportada, o rapaz fazia o mesmo na varanda. Rapidamente penteou-se, colocou para dentro das calças o blusão meio que amarrotado e sentou-se, cruzando as pernas.

– Oi, Dona Luiza, como passou a semana? – era a mãe de Norma; portava um embrulho em uma das mãos e, na fisionomia, a mesma simpatia costumeira. Embora tenha notado certa tensão em Afonso – só menor em intensidade do que a naturalidade peculiar da filha – nada comentou, guardando para si qualquer impressão. Após alguns segundos de um silêncio perturbador, foi a primeira a quebrar o silêncio.

– Adivinha o que trouxe para o lanche?

– Pelo cheiro, só pode ser pizza – arriscou a filha.

– Acertou! E é de calabreza, a preferida de Afonso.

– A senhora é a melhor mãe do mundo, dona Luiza! – brincou ele. – Mas não precisava se preocupar – acrescentou sorrindo.

– Qual nada, é um prazer. Agora, que tal comermos e conversarmos um pouquinho para relaxar?

– Mãe, a gente não vai demorar; queremos ver um filme que começa às oito e, a senhora já sabe, temos horário para o retorno; não é, bem? – acrescentou com uma olhadela marota para o namorado. Ele ficou meio sem graça mas confirmou com a cabeça.

Este episódio vem demonstrar como um fato, marcante e repentino, veio contribuir para uma transformação bastante acentuada no comportamento e nas atitudes de Norma. Aos poucos, tornava-se mais sedutora; encontrava meios para ficar cada vez mais à sós com o namorado a ponto de descuidar das advertências da mãe. O namoro que já era acalorado, tornou-se irresistivelmente quente e apaixonado, até que um fato veio prorromper o inevitável.

Quando, em uma daquelas noites de sexta, entregavam-se ardentemente a carícias avançadas, surgiu, inesperadamente, o pai de Norma. Passavam poucos minutos das nove e meia e eles estavam próximos à casa, embaixo da marquise de um ponto comercial já fechado e semideserto. Ele não chegou a vê-los no ato do namoro, mas cruzou com a filha quando acabavam de se despedir com um beijo nos lábios. Ao virar-se e ver o pai, Norma corou; não lhe era normal chegar em casa àquela hora. O homem nada disse, porém. Esperou que Afonso se afastasse. Após o tradicional até logo com as mãos e o desaparecimento dele na curva da esquina, o pai dela aproximou-se e empurrou-a para casa. Norma seguiu à frente, mantendo certa distância. Entrou em casa quase correndo, passou pela mãe que na sala assistia à tv e dirigiu-se direto para o quarto onde dormia.

Ele entrou em casa feito uma fera. – Onde está aquela vagabunda? – A mulher, já imaginando o que ocorrera, tentou, sem sucesso, apaziguar a situação. – Não me venha com conversa mole; chame-a aqui se não quiser que eu vá buscá-la; aí será pior.

– Pense um pouco, ela estava apenas namorando.

– Namoro! O que eu vi foi muito mais do que isso; o jeito como se agarravam... – exagerou. – E pensar que você sabia da pouca vergonha dos dois; e não me disse nada! Vá chamá-la... ande! Ela não sabe o que lhe espera.

– Você não vai bater em nossa filha, ela não é mais nenhuma criança; não poderei perdoá-lo se fizer isso. Alberto amava a esposa e por amá-la, respeitava-a. Não amava menos a filha. Mas a influência da educação que teve, espartana em quase todos os sentidos, refletia-se no modo de lidar com as duas. O próprio pai de Alberto foi assim com as irmãs dele e ele não seria diferente com Norma. Do quarto, ela ouvia em silêncio a discussão. Como diminuíssem os apelos angustiantes de Luiza e os impropérios ameaçadores do marido, surgiu na sala e colocou-se à disposição.

A conseqüência de tudo isto foi que Norma teve o seu castigo; pecou por estar amando; o sofrimento em forma de provação veio com a proibição de ver e falar com o seu amado. Poderia, se quisesse, com a ajuda e conivência da mãe e um pouco de coragem, burlar a pena e ver Afonso; e foi o que fez. Luiza sentiu a dor da filha e repartiu com ela a perigosa maçã da cumplicidade. Como mulher que já viveu a paixão com todas as perdas e lucros, sabia que isso era o mais certo que tinha a fazer. Valeria o risco que iriam correr; toda paixão tem sua dose de risco.

Contudo, por infeliz coincidência, o pai entrou em férias de dez dias após a sentença que promulgara. Para Norma foram os dez dias mais felizes que já vivera. Longe da vigilância dele e próxima, bem próxima, dos carinhos de Afonso. Fez exatamente o que queria; entregou-se a ele. Fê-lo com toda alma e devoção de que foi capaz; ele não teve como resistir àquela atitude da moça. Era como se ela soubesse o que estava fazendo. Afonso apaixonou-se. Mas a alegria da conquista juntara-se à decepção da perda. Norma não mais poderia ser dele. Contou-lhe tudo apenas no último dia quando se despediram; do respeito que tinha pelo pai e do medo de sua reação se descobrisse a rebeldia.

Deu-se o desenlace sob clima de emoção para ambos. Não mais se viram. E Afonso, ferido no coração, sentiu-se usado. Não mais a procurou; sequer telefonou. Vinte dias se passaram. O amor tem dessas coisas. Mexe com tudo e com todos. Faz de quem ama uma incógnita; do ser amado um espelho a refletir os nossos desejos insatisfeitos. É uma eterna busca, um tesouro escondido, cujo mapa julgamos alhures encontrar estampado nos sorrisos que nos cativam. Começa com a paixão que une os desejos para terminar na floresta da igualdade entre os sonhos e os objetivos maiores. Norma começou a sentir os primeiros sinais deste amor ao bater-lhe a saudade de Afonso. Sentiu o desespero e entristeceu-se.

Contava, no seu orgulho juvenil, ver satisfeito o ego feminino através da procura por parte do ex-namorado. Agora, como mulher, oferecia o prazer sem limites e sem barreiras. A decepção foi, portanto, muito grande. O reflexo disso surgiu generalizado na vida de Norma. na escola, uniu-se a outros grupos; as amizades de agora justificavam as mudanças que vinham ocorrendo dentro de si.

Aproximava-se o início das férias escolares de meio de ano. Os últimos dias do mês de junho daquele ano de 1988 foram dos mais frios que há décadas não se sentia no Rio de Janeiro. Todo e qualquer comportamento denunciava uma necessidade primordial sobre qualquer outra: procurar calor, tirar proveito das mínimas fontes que estivessem ao alcance. Assim, viam-se carros com todos os vidros cerrados, protegendo os seus ocupantes. Os casais abraçados, tão unidos feito pedras engastadas num colar, despreocupados com tudo e ciciando amores. Sobretudo, quem passasse as primeiras horas da noite por certa rua deserta do Humaitá, poderia deparar com um grupo de animados jovens que se divertiam confabulando ao som de suave música ambiente. Uns, para combinar com o clima, tomavam vinho, pois ali era uma espécie de bar com feitio de adega. A julgar pelo tipo de decoração, seria um comércio de portugueses, com mesas redondas e cepos de madeira usados como banco. Tinha uma cobertura em lona mas, devido ao frio, todos estavam do lado de dentro em mesas e cadeiras comuns.

Norma tivera Afonso em sua vida por um período aproximado de oito meses, em que vivera um verdadeiro conto de fadas. Transformada em mulher, só não soube como administrar esta vantagem; onde falhara? Seria de Afonso ou dela própria a culpa? Seria do destino? Não sabia dizer. Talvez uma falha de educação – o que pode ser bem provável. Parecia não se preocupar muito com isso. Sua índole destemperada fez com que não aceitasse tudo passivamente. Há dias já não comparecia ao colégio; devia provas e matérias. Os colegas do barzinho onde Norma se encontrava já estavam de férias e quites com os estudos, mas ela não. Mas certa estava de que iria recuperar-se a tempo. Ana, companheira de classe, confortou-a naqueles tempos difíceis.

– Tem certeza de que está grávida, fez todos os exames?

– Todos, não resta dúvidas.

– O que pretende fazer?

– Não sei; se não fosse você acho que estaria perdida. – Soltou estas palavras quase a soluçar mas voltou a sorrir com o gesto da amiga que a animou com frases alegres, passando-lhe a mão sobre os cabelos desfrisados pela umidade da noite.

Uma reviravolta aconteceu na vida de nossa adolescente em pouco menos de dois meses. Ao descobrir-se grávida, juntou um pouco mais de coragem àquela que já possuía de sobra e abriu o jogo em casa. Aproveitou a gota d’água para rebelar-se contra as privações que vinha sofrendo e conclamar o seu direito à felicidade. Saiu do lar e foi viver no Humaitá em casa de Ana cuja tia não se negou ao apoio. Procurou por Afonso; nada lhe disse sobre o problema que a afligia. Escondeu a gravidez sob sua capa costumeira de jovem feliz e aberta para as novidades da vida. Ele não reatou, todavia, o namoro. Alegou, e falava a verdade, uma viagem à Inglaterra. Conseguira uma bolsa para estágio na faculdade de Oxford; levaria por lá algo em torno de um ano.

Era o fim da linha para Norma. Ainda assim, manteve o segredo. Andou por pouco a contenção. Mas venceu o amor verdadeiro na suposição de Norma, que era vê-lo feliz em sua carreira, acima de tudo. Não queria ser a responsável por mais esta complicação. Ele partiu, na esperança do esquecimento e na atuação do tempo, imparcial e inexorável.

E o tempo passou, encarregando-se das mudanças que ocorrem em cada uma de nossas vidas. Seis anos são decorridos desde os tumultuosos acontecimentos na vida de Norma. Os pais, Alberto principalmente, sentiram-se extremamente culpados pela omissão de carinho e apoio numa hora tão difícil. Ela contudo, não guardou mágoas. Recuperada da grave intervenção cirúrgica que quase a levou à morte, aceitou, entre pedidos de desculpas, retornar para a convivência junto a eles; muito mais por Luiza que estava sofrendo tanto.

Agora uma linda menina fazia parte da vida de Norma, que aos vinte e três anos parecia estar novamente de bem com o mundo. Os dias de gáudio, repartia-os com Larissa. Todos os fins de tarde, de banho tomado, brincava no portão com outras crianças, aguardando a doce mãe. Luiza, olhando-a, agradecia aos céus a linda neta surgida em meio a tantas e inusitadas voltas que o destino dá; amava-a do mesmo modo. Afonso ficara na Europa, efetivado por renomada empresa após alguns meses de estágio. Aos trinta e um anos, estava no caminho seguro e longo da riqueza material. Porém ainda solteiro. Vinha ao Brasil com freqüência. Além das férias para descanso, trazia-o importantes negócios. As mulheres européias não lhe despertavam grandes interesses. Andou flertando umas e outras; mais como passatempo indispensável a um homem de sua idade do que outra coisa.

Agora, um fato marcante ocorrido no passado, que foi, na verdade, o que desencadeou esta trama. Durante uns dois ou três anos, trabalhou Norma em uma loja de roupas femininas, dessas que enxameiam nos Shopping Centers que começaram a proliferar pela cidade no início da década de 90. Havia ali uma mulher beirando os trinta anos que veio a ser, em questão de meses, sua melhor amiga. Laura, falante e muito enérgica, era quem gerenciava o pequeno negócio. Norma conhecia-lhe o passado de trás para frente e isto as unia ainda mais. Tinha uma filha que era a razão do seu viver, sua paixão, única e verdadeira.

– Às vezes penso o que seria de sua vida se eu lhe faltasse – falava de vez em quando. – Ela não possui ninguém além de mim.

– Não dia bobagens! – respondia sempre Norma. – Mas, esqueceu do quanto sou apaixonada por crianças?

– É verdade; e é incrível como adora você. Quando passam sem se ver, não deixa de perguntar pela tia Norma.

Com efeito. Impossível decifrar certos mistérios. Um trágico acidente de automóvel veio colher a vida de Laura no auge do crescimento. Por uma ação na justiça, conseguiu Norma a adoção da menina; não foi difícil para ela. Como não havia parentes que reclamassem o direito à criança e não faltassem testemunhas a favor de Norma – a mais forte delas o próprio amor da menina – ganhou ela uma nova mãe. Esta, ao quase perder a vida, tendo um filho que não sobreviveu às complicações de um parto, foi brindada anos depois por linda alma, preenchendo assim uma coluna irreversível, pois jamais voltaria a ser mãe biológica.

Ao se cruzarem depois de tantos anos naquela composição do metrô e comentarem as diferenças para melhor em beleza e maturidade, Norma e Afonso despediram-se ao se aproximar uma das estações. Porém, ficou no ar uma pergunta que ela lhe fez.

– Não quer conhecer sua filha?

A resposta dele veio em forma de um cartão para contato, seguido de uma súbita mudança em sua expressão fisionômica. Ele ficou surpreso, beijou-a no rosto e desembarcou.

Ao se encontrarem dias depois, Afonso conheceu Larissa. É claro que a idade dela deixou evidente que não podia ser filha de Norma mas a semelhança com ele era tamanha que o deixou aparvalhado; ela contou toda a história. Foi um momento emocionante que os fez chorar abraçados. Selaram ali uma união marcada pelas sábias mãos do destino. Afonso, fugindo de dois amores, acabou por reencontrá-los reunidos no mesmo amor de Norma, esta mulher extraordinária. A filha que não assumira com Laura, assumiria agora de forma completa e verdadeira. Impossível fugir desta vez.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 20/04/2012
Reeditado em 30/04/2012
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