MUNDO PERDIDO EM NÓS

Acordou assim como que um pouco assustado, sem saber se era noite, por que o ambiente já tão familiar de repente lhe pareceu estranho. Sentiu um gosto acido e salobro na boca. Doíam-lhe os rins, e levou as mãos as costas, soerguendo-se na cama, após a afastar a coberta com grande fastio. O que se sucedera? E sem fazer a pergunta, mantendo-a latente no cerne do seu subconsciente naquele gesto de franzir o cenho, pestanejar, balançar cabelos longos de rapaz, lisos, quase muito claros, olhando para a janela bem junto à cama, com as cortinas afastadas, vendo que então era um dia, um dia pouco aceso, cinzento, um chiado de estática na atmosfera, subindo aromas diversos, aromas de mornidão, perfume de mormaço, quase como o cheiro que sai de trás das maquinas ligadas. O computador, em uma escrivaninha ao lado, estava desligado. O aroma vinha da própria atmosfera saturada, fechada, com as janelas cerradas, a porta fechada, e nenhum barulho vindo do cômodo à frente: a sala.

De súbito como se lembrasse de seu torso magro e nu de garoto, cavo por certa fome àquele mal estar, então se agitou lá fora um leve som de passos, tão cuidadosos que antes fora a tosse pequena e seca e o suspiro que mesmo o som dos passos que fez o garoto perceber que não estava isolado, e bastava apenas abrir a porta, levantar-se daquela cama primeiro, isto que logo lhe pareceu tão difícil, por que os rins respondiam mal como que muito surrados, o abdômen mesmo estava fundo, e justificava o gosto acido e salobro na boca. Sentiu um arrepio amargo na pele, eriçando lhe levemente os pelos dos braços, e seu rosto contraiu-se numa careta contrita, amarga, sentindo o gosto azedo que vinha do estomago. Então veio à tona a recordação: a noite anterior, a muvuca de garotos e garotas, alguns mesmos já bem avançados de idades; camisas pretas, estampas bizarras, caveiras, coturnos, latas de cervejas, long necks também, mesmo vinhos adocicados, a sua mão agarrava uma garrafa desta, avançando no que levava à boca, o punho fechado, ao meio dos outros, sentindo um braço pesado ao seu ombro quase o levando, levando-o mesmo entre todos, e acolá um grupinho fazendo roda, fingindo se empurrarem ou se empurrando sem muita seriedade, enquanto em cima de um tablado uma banda fazia muito barulho com guitarras e bateria, um som caótico e sinfônico, tom gutural de voz. Agitos. Ele já estava sentindo-se bêbado? Ria, abraçava umas meninas descabeladas, ele mesmo descabelado, os longos cabelos desalinhados, fios sobre o rosto alvo suado, a camisa preta molhada de suor, e noite quedando-se num cobertor mais ou menos frio, e tudo continuando, continuando, no mesmo tom reacendido de animosidade que acabou com todo conteúdo rubro da garrafa pet, levou-a ao chão, fê-la rolar, rolar, outros coturnos chutaram-na. Que muita gente o abraçava, o abraçava, ele nem sabia mais se menino ou menino, macho ou fêmea. Eram todos tão em congresso que eram como um todo único assexuado, destituídos de libido, lambidos e secos por aquela balburdia que era o concerto de uma banda a outra cada vez mais confusas e quase semelhantes.

Por que ficara jogado àquela sarjeta? Despejara seu vomito, e ao lado dele descansara, abandonado, calmo, as entranhas em convulsão, em revolta. Descera sobre um abismo úmido, macio, serenara instantes em que se confrontou com o nada. E despertara assim sem espanto, entre o branco dubio das paredes de um hospital. Não se movera. Permanecera estático como agora o demorado instante que nem se lembrou de que estava de pé, indo em direção à porta fechada. O soro aguilhoado a veia do seu braço, dependurado, monotonamente pingava, pingava; um murmúrio de queixa, longínquo e denso chegando pelo silencio da atmosfera carregada.

Abriu um sorriso no rosto pálido, admirando-se no espelho dentro da porta do guarda-roupa. Sentia-se miúdo, fraco, e com um resto de vaidade passou as mãos pelos cabelos lisos e claros, caindo sobre os ombros. Baixou os olhos, mas sorria, embora um sorriso entristecido, contudo indicava que estava sereno e conformado.

“Cara você está bêbado”, “porra, tu tá doidão”, e risos, risos, gargalhadas, sentira o corpo sendo lançado contra uma parede, certa violência gratuita e de fundo vilipendioso.

Não lhe sobrava magoa, não agora mais, agora que seu estomago remoía, remoía, ou mesmo parecia suas entranhas, e deitou-se de novo, encolhido como um feto ou um molusco que se enrosca em sua concha. Não tinha muitos pensamentos. O que vinha a sua cabeça eram momentos pequenos, apertados, quase vazios, e algumas paredes que sustentavam essa fantasia eram tão brancas quanto uma luz excessiva.

Então o quarto pareceu repousar sozinho na atmosfera silenciosa, estática, e de quando em quando apitava um chiado ou leve barulho de amassar e desamassar de embrulhos. Um banner preto com o brasão da banda Motorhead oscilava levemente, a uma brisa que entrava pelas frinchas da janela, logo na parede a frente dele, mas embora seus olhos claros de certa umidade de indolência parecessem olhar para aquele gesto da caricia do vento não era bem o que curtia, é que seus pensamentos, embora no limbo, levavam-no para distante, onde nem precisava se sentir com os pés no chão.

_Dioniso – chamou uma voz macia e quente junto à porta, e os olhos dele fugiram oblíquos e sorridentes para aquela direção.

_Dioniso – insistiu num tom mais cálido, seco – já acordou? Levanta, você tem que comer alguma coisa. Deve estar muito fraco.

Apareceu à cozinha branca, limpa e iluminada, assim de torso nu, encolhido, os cabelos em leve desalinho. A mulher virou-se, franziu os sobrolho, fungou ferozmente espantada, levando uma mão ao coração como se pudesse ali prender o susto, pois que o menino parecia um esqueleto assim aos seus olhos tão cuidadosos de mãe. Acudiu até junto dele, mesmo o abraço, levando-o junto ao seio, esquecendo-se da panela ao fogo, num pequeno assomo de desespero e aflição.

_Mas meu menino, você parece bem mais pequeno, tão frágil. Onde fui que errei, pois sim errei, esqueci de você – dizia num tom queixoso, prendendo-o pelo rosto junto ao seio. Dioniso ria, sentindo cocegas ou tão simplesmente achando patético toda aquela apelação por parte da mãe, mas era de um calor gostoso e de que ele precisava.

_Mãe para, eu não sou mais nenhum bebezinho – resmungou rindo, covinhas em cada bochecha, desvencilhando-se, magro, um pouco pálido. A mulher se espantou de ver as espaduas dele tão curvas, sentando à mesa desajeitado, as mãos brancas de dedos longos e ossudos tremendo ao segura a caneca com chocolate quente.

_Nunca mais me apronte uma dessas – disse de costas, mexendo a panela em cima do trempe do fogão; os cabelos escuros presos no alto da cabeça por um lápis – Carlos te trouxe aqui. Aquele seu amigo que só anda de capa preta e que ligou, falando que você estava mal, estava no hospital – virou-se de frente para ele, e ele sorria com a boca cheia, mastigando, salivando a bebida caldosa, os cabelos nos olhos. Já tinha mesmo quinze anos? Não, não, resmungou o pensamento dela tentando encontrar chão, perdendo-se os olhos num vácuo, voltando aflita para panela cujo fogo apagou, respirando forte. Catorze anos ainda. Não podia deixa-lo por ai, bebendo, tomando porre. Os médicos quiseram encrencar, alertara-lhe Carlos, trazendo-o até em casa, sustentando-o fraco pelos ombros, Toma cuidado Aline você pode perder a guarda do seu filho, sim, puxou-a pelos pulsos assim carinhosamente – logo deixou o menino no quarto – trouxe-a até o sofá junto a ele, os olhos cheio de uma mansidão viscosa, aquele bigode pachorrento nos lábios duros, Um menino de catorze anos, ainda é muito criança, muito criança, Aline, sabemos que Dioniso está ficando rapaz, os hormônios estão explodindo, mas o tocante a sair para bebedeiras, ir para no hospital por coma alcoólico, balançou a cabeça num gesto parvo de censura, e ela mesma se mantinha silenciosa, espantada, de cabeça baixa como uma criança que aceitasse a admoestação. Reparou na lapela da blusa de Carlos aquela mancha ensebada. Todas suas blusas viviam assim, manchas róseas, manchas apagadas, havia muita coisa de velho na conservação daquele homem já tão maduro, e sem nunca ter perguntado, Aline um pouco que desconfiava de todo aquele apadrinhamento. Mas ela era tão só, e aquele emprego mal dava para as coisas assim, embora aquela casa fosse própria, mesmo pequena, num bairro bem modesto onde sempre viveu a sua juventude, mas sempre esperava que a mãe voltasse a reclamar a casa e parecia ver a velha reclamar seu canto, arrependida de ter ido para o interior, dividindo seu já pequeno espaço com Dioniso aquelas tralhas e rabugentices de uma viúva solitária que sempre odiara tanto ela quanto a outra filha Andréia.

O telefone tocou estridente vibrando em cima do sofá já um pouco rasgado, ela acudiu até lá deixando o menino a mesa a se alimentar. Era mesmo a mãe, perguntando pelo menino, o neto.

_Ora não ligam, parece que eu já morri – reclamou bem alto, e frágil, Aline riu sentindo-se menos desamparada, mas tudo andava bem, andava bem, o menino estudando, estudando sim, Eu trabalho, mamãe, sustento ele, Oras ele já é homenzinho, pode ficar sozinho enquanto eu trabalho.

Aline não tem tanta certeza se conseguirá se sustentar naquele emprego por muito tempo, pois a sua própria função em si não tem relevância, pois ela fica horas e horas ociosas e como que para não se mostrar de todo inútil procura espanar alguma coisa, ajeitar umas pastas em qualquer canto, resmungando consigo mesma, ensimesmada, solitária, entre uns arquivos bolorentos e fedorentos. Nessas horas costuma pegar-se a reminiscências de sua curta adolescência em que ia a bailes, e quando conheceu Fred, apaixonou-se, sujeitinho de brinquinho, ruivo, calça jeans apertadinha, braço tatuado, e na primeira noite depois de uns Martines... Foi Martines? Sabe que ficou tonta. Engravidou. Nasceu Dioniso. Parecia ontem. Ela só tinha dezesseis anos, agora estava nos trinta, mas tudo estava empacado assim. Carlos a amava? O que Carlos queria? Parecia saber tudo que se passava na sua casa, morando ali em frente, a calçada oposta, com um muro a cada quintal, não tão alto, mas não tão baixo. Sim sou indefesa, acreditou, triste, largando a aparelho celular, voltou para a cozinha, mas o garoto não estava mais sentado ali, refugiara-se na frente da casa, ao portão. Escutou a voz de Carlos falando com ele, num tom manso, quase paternal, e Dioniso ganhara um tom doce e infantil no jeito de falar como se aceitasse aquele afeto paternal, como se precisasse. Sentiu-se regozijada, respirando fundo. Não estava sozinha no mundo com Dioniso.

_Nessa idade essas coisas acontecem – acabava de dizer Carlos – mas não vá corromper seu fígado tão depressa infante.

_Eu não sou mais criança – disse como se defendendo o rapazinho, devia estar enrubescido, lembrando-se que ainda estava virgem, não conhecia sexo. Não, não ainda não, acudiu a mulher desesperada como se essa atitude do garoto fosse ferir lhe o amor próprio.

Quando se distraiu com qualquer coisa a cozinha, escutou o som barulhento no quarto do menino chegando. Gritos alucinantes, rifes pesados de guitarra, chacoalhada de bateria, ela não entendia nada, balançando a cabeça rindo, onde que Dioniso aprendera essas musicas, ela odiava aquela barulheira infernal, mas apenas aproximou-se do quarto, olhou pela porta entreaberta, ele sentado em frente ao computador, magrinho, curvado, cabelo farto, mas tão lisinho, acompanhando no inglês mal arranjado aquela musica, sacudindo-se, ah, amava-o, era seu filho, único, só havia ele em sua vida no momento. Cerrou a porta lentamente, com cuidado, e isolou o som quase em sua totalidade naquele quarto, junto com o menino e suas coisas, suas tralhas. Sabia que numa caixa de papelão embaixo da cama ele ainda guardava seus brinquedos que ainda há dois ou três anos adorava brincar, chorava por um, aqueles bonecos robôs, heróis do X-man que ele pediu aos nove anos, chorou, e mesmo foi Carlos que o deu próximo ao natal.

Ela cerrou as janelas, as portas, isolou-se, mas pelo silencio saturado na atmosfera ainda podia ouvir alguma coisa da musica que vinha do quarto do menino. Ela e Andréia dormiram ali outrora.

A luz FLC da cozinha aumentava o ambiente lúgubre, sentou-se a mesa com uma xicara de café, algumas torradas, as pernas cruzadas, e não soube bem por que admirou aquelas paredes tão bem conhecidas, nítidas; um vaso empoeirado com flores de plástico também empoeiradas em cima da geladeira. O fogão tinha certa macula de sujeira viciada como se tornasse a própria cor dele. Escapuliu os olhos oblíquos e tristes para o liquido um pouco espumoso dentro da xicara. O menino tinha suas musicas, suas bandas, alguns amigos, muitas fantasias, e ela só tinha o menino, assim como se dissesse isto mordeu a torrada seca com grande violência.

Rodney Aragão