A cor do amor

A cor do amor

A história que vou contar se passa no início do século XIX numa cidade do interior de Minas Gerais. Transportemo-nos para a Fazenda Gonçalo. O lugar que será o cenário desse conto. Essa propriedade era uma das maiores do Estado, tinha uma criação de gado que rendia ao seu dono muito dinheiro. O espaço ali era muito bonito, com cachoeiras, um bosque imenso, uma reserva ambiental, um jardim muito grande que ia da entrada da fazenda até a casa grande, e esta era confortável, com muitos cômodos, quartos, salas, escritório e outros. Neste cenário encontramos uma família reservada e feliz. O senhor Gonçalo, um homem forte, duro, responsável e cuidadoso com família e empregados; Dona Anita, uma senhora doce, esposa , mãe, carinhosa com todos e finalmente Rafael um jovem alegre, bonito e herdeiro de tudo.

O senhor Gonçalo exigia de Rafael que estivesse a par de todos os acontecimentos e rendimentos da fazenda, apesar de não morar ali, porque estudava medicina na capital. Rafael gostava da vida no campo, mas o que lhe fazia feliz eram todas aquelas garotas lindas, maquiadas e bem vestidas da capital.

Certa vez em meados de suas férias na fazenda, quando galopava em seu cavalo, percebeu uma moça morena que caminhava por ali, tendo em suas mãos um cesto de frutos que com certeza havia colhido no pomar. Não a conhecia, não era empregada da fazenda, pois conhecia todos eles. Rafael ficou um pouco intrigado com a imagem daquela mulher.

No horário de almoço Rafael perguntou ao pai se ele tinha contratado outros empregados para a fazenda, ele respondeu que não, mas que estava precisando, e que, era para que ele cuidasse pessoalmente da contratação de alguns funcionários para ajudar com o gado, pois era um comércio que começava a expandir e logo, não davam conta do trabalho. Rafael não sabia como explicar a presença daquela moça, que perturbou tanto sua mente.

Um ano se passou o Senhor Gonçalo adquiriu um problema cardíaco e logo veio a falecer. Foi velado e enterrado na capital. Dona Anita não sabia o que fazer e entregou a fazenda nas mãos de Rafael. Se quisesse vender podia, porque ela não mais voltaria para lá, eram muitas lembranças, muita dor. Rafael não hesitou, não podia deixar sua faculdade. Iria vender a fazenda e logo voltaria para sua vida normal. Mas Rafael estava enganado, o que o destino iria lhe proporcionar, era algo que iria transformar sua vida para sempre.

Em novembro encerrando suas aulas, viaja para o interior, chegando à fazenda quando o sol estava se pondo, o cenário visto por Rafael lhe encantou os olhos, a Fazenda tinha um brilho diferente nesse horário, onde não há luz do sol, mas que não tem total escuridão, era um momento mágico. Rafael ficou no jardim até escurecer contemplando todo o espaço a sua volta. Lembrou-se de quando era criança e brincava ali, correndo, sorrindo, chamando o pai, gritando Tubarão o seu cão predileto, grande e desajeitado. Lembrou-se até de uma negrinha que era filha de Bernardo e Donana, o capataz e a cozinheira da fazenda, Rafael corria atrás dela que era muito menor que ele, só para vê-la cair e chorar, então Donana vinha e acudia a filha dizendo para ele que ela era só um bebê, tinha que ser cuidada. Logo depois essa negrinha foi morar com a tia em outra cidade. Voltou a vê-la quando tinha 10 anos, estava diferente. Porém só a viu quando já estava de partida com a tia. Uma vez Donana disse que ela tinha ficado uma moça bonita e inteligente, mas que preto e pobre não tinha lugar na sociedade paulista. Rafael sorriu ao se lembrar da fala de Donana.

Entrou, cumprimentou os empregados que aguardavam por ele e deu a notícia que, queria saber tudo sobre a fazenda porque iria vendê-la. Ninguém teve coragem de dizer nada. O silêncio tomou conta do recinto. Rafael foi para o quarto e logo depois desceu para o jantar. Donana lhe disse que precisava ir para a capital cuidar de uma irmã que estava muito doente, mas que deixaria alguém para fazer seu trabalho. Rafael disse que não se preocupasse, que fosse cuidar de sua irmã. O jantar foi solitário. Logo depois, seguiu uma conversa com Bernardo sobre todos os detalhes da Fazenda Gonçalo. Acertaram que os dias que se seguiriam iriam trabalhar juntos com Bernardo para se inteirar de tudo, pois tinha 3 meses para vender a propriedade e voltar para a capital.

Três dias se passaram, Rafael estava exausto porque não pensava que fosse tão duro o trabalho com o gado. Dormia e acordava muito cedo. Não conseguia se alimentar direito estava ansioso por terminar tudo, o mais rápido possível. Há duas semanas já estava ali, como o tempo passava rápido na fazenda. Começou a visitar pessoas que pudessem ajudar na venda da propriedade. Ao cair da noite revisava todas as suas anotações, e muitas vezes dormia sobre elas.

Terceira semana de trabalho, Rafael se levantou, dirigiu-se para a cozinha, tomou seu café. Porém uma leve dor de cabeça o incomodava, resolveu subir e tomar um banho demorado, para aliviar a tensão. Ao sair do banho, ficou ali enxugando os cabelos, de repente a porta do seu se abriu e uma mulher gritou assuntando-se com a presença dele, principalmente porque estava sem roupa. Rafael logo lhe perguntou quem era e o que estava fazendo ali, porém a mulher estava atônita, não respondia nada e saiu correndo escada abaixo. Ele também estava atônito e quando percebeu sua nudez, ficou vermelho de vergonha. Quem era ela afinal? Vestiu-se e desceu procurando por toda a casa. Viu Bernardo que lhe chamou para irem ao trabalho e Rafael não teve coragem de mencionar o fato. Perguntou onde estava Donana, ele respondeu que já havia viajado, mas que não se preocupasse porque Duda ia cuidar de tudo. Rafael perguntou quem era Duda e Bernardo se apressou em lhe perguntar se não se lembrava mais de sua filha Eduarda, aquela negrinha que brincavam quando eram crianças. Rafael não acreditou aquela mulher que ele havia visto no pomar e que entrou em seu quarto era Duda, muito mudada, tornara-se uma mulher formosa e bela, uma morena que se bem cuidada e vestida ficaria mais bonita que suas colegas de faculdade.

Rafael não via o momento de chegar o almoço para ver de perto Duda. Ao entrar a mesa já estava posta, pronta para se servirem. Duda não apareceu. Terminou sua refeição, foi para a varanda, sentou-se a observar os pássaros. Cochilou e acordou com Bernardo lhe chamando. A noite da mesma forma, a mesa posta e pronta, nada de Duda. Esta estava tão envergonhada da situação que só de pensar em encontrá-lo, seu coração pulava forte no peito. Esse encontro não ia demorar, mas queria evitá-lo. Apesar de tê-lo observado na fazenda, e saber como ele tinha ficado um homem formoso e culto, Duda se lembrava com mágoa de como ele a maltratava quando crianças, a chamava de feia e de escravinha, que quando crescessem ia ser sua escrava para lavar seus pés, ela chorava e precisava que a mãe intervisse por ela.

De manhã Rafael acordou mais cedo e desceu, sabia que era o momento que ela estaria arrumando a mesa para o café. Estava certo, veio devagar e por trás dela disse um bom-dia grave e compassado, ela deu um pulo, virou-se devagar e respondeu ao cumprimento, nada mais saiu de seus lábios, não conseguia, estava paralisada. Então Rafael mandou que ela lhe servisse o café, ela o fez em silêncio. Perguntou se ele precisava de mais alguma coisa, quando respondeu que não, ela se retirou devagar, ouviu seu nome, virou-se e escutou algo que cravou o seu coração: “ Lembra-se quando eu dizia que quando você crescesse iria me servir?”, Rafael tinha um sorriso nos lábios nesse momento. Duda saiu para a cozinha com lágrimas nos olhos, não entendia porque se calou? Porque ele disse aquilo? Ela não era escrava dele, nem empregada, só estava ali para ajudar sua mãe, que não havia encontrado ninguém para ficar em seu lugar. Tomou uma decisão iria voltar na sala e dizer umas verdades àquele burguesinho metido. Porém ao chegar à sala ele já tinha saído. Não faltaria oportunidade.

Durante toda a manhã Duda planejou o que iria dizer a Rafael. Porém não seriam essas as palavras que falaria para ele, porque o destino mudou o curso dos acontecimentos. Rafael montava naquela manhã um cavalo até então nunca montado por ele. Num determinado momento não sabendo dominar bem o animal, este dispara no pasto levando seu dono ao desespero, quanto mais gritava com o animal e lhe dava ordens no arreio para ele parar, mais o cavalo corria desesperado no campo, até Rafael cair. Foi um desespero dos funcionários ali presentes, todos correram para acudir o patrão que estava inconsciente. A cena que se segue é difícil de descrever, muito choro, gritos, acenos, presença de muitos e ajuda de poucos, por não saberem o que fazer nesta hora. Bernardo tentou manter a calma e tentou acordar Rafael, até que conseguiu ouvir murmúrio do rapaz, que dizia que as costas doíam muito e não sentia as pernas. Conduziram-no com muito cuidado para o quarto, logo vieram com ervas e chás para melhorar as dores.

Duda assistia a tudo, não sentia pena, era o pagamento pela discriminação que tinha com ela. O médico chegou, detectou que suas costas estavam bem, que não havia ossos quebrados, mas as duas pernas tinham fraturas, precisava ir para a capital. Rafael se foi e 4 dias depois estava de volta para a angústia de Duda. Ao ser comunicado pelo pai que precisava ficar ali para cuidar de Rafael que viria se recuperar na fazenda, teve vontade de morrer a ajudá-lo. Dona Anita não podia ficar porque sua saúde estava também comprometida e precisava de cuidados médicos com freqüência.

Aqui começa uma história de amor que nascerá aos poucos e crescerá forte. Rafael chegou pela tarde com uma perna engessada e a outra com curativos. Foi para seu quarto carregado por Bernardo sob os olhos de Duda. Ela observou que ele estava pálido e abatido. Logo precisava levar-lhe o jantar. Nesse momento seu coração bateu forte. Tinha que fazer. Subiu as escadas e a frase que ele lhe disse ecoava na cabeça, agora sim ela estava servindo como uma escrava. Bateu na porta e entrou. Rafael estava deitado e em silêncio recebeu o prato de sopa, comeu em silêncio, devolveu o prato e quando Duda ia saindo ele chamou seu nome. Duda voltou e perguntou o que precisava, ele lhe pediu para não deixá-lo ali sozinho, queria uma companhia para conversar até o sono vir. Ela disse que tinha muito trabalho a fazer e que não podia, então Rafael pediu desculpa pela brincadeira que havia feito no dia em que se encontraram. Duda disse que não foi nada, queria falar e falar, mas tudo o que conseguiu foi isso.

Os dias que se seguiram, foi para Rafael um motivo para procurar a presença de Duda que estava sempre correndo dele. Quinze dias depois o medico liberou Rafael dos curativos da perna. Portanto notou Duda na cozinha e chamou-a até a sala, pediu para lhe fazer o curativo na perna que seria o último, como seu pai não estava Duda não teve outra opção. Abaixou-se com a caixa de remédios e começou o trabalho em silêncio. Rafael notou como suas mãos eram delicadas, seu cabelo bem tratado e tinha um perfume natural que agradava-o. Observou pelo seu vestido seu busto que ficava ligeiramente exposto pela posição em que se encontrava. Pensou Rafael que aqueles seios deveriam ser lindos. Tentou fazer algumas perguntas, mas ela respondia com a cabeça ou com poucas palavras. Terminou e saiu. Rafael não entendia o porquê desse comportamento, ele a tratava com respeito, já tinha pedido desculpas, mas ela continuava arredia. Duda entrou na cozinha com a face queimando, não sabia se era raiva ou vergonha daquele serviço que fizera. Bernardo perguntou-lhe o que havia acontecido e quando ela explicou, lhe respondeu que os curativos não eram mais necessários, ouviu o médico falar. Então era isso, ele queria humilhá-la, fazê-la curvar-se aos seus pés, como ficou para fazer o curativo, seu ódio cresceu mais no coração.

Dentro de um mês o médico retirou o gesso, mas tinha que andar com ajuda de uma muleta. Assim era melhor porque podia caminhar pela casa, jardim e pomar. Ao caminhar ali no pomar viu Duda colhendo laranjas, se aproximou e teve certeza que aquela morena mexia com seu coração. Duda não percebeu a chegada dele e ao som de sua voz deu um pulo, seu coração bateu muito forte. Ele disse que precisava falar com ela. Ela tentou sair, mas ele a segurou pelo braço e disse que não entendia porque ela não o olhava, porque o rejeitava. Então Duda teve um acesso de fúria e começou a falar. Como não sabia o que ela sentia por ele, desde criança ele a perseguia, maltratava, tinha aversão a sua cor, ela era apenas a negrinha para ele sorrir e divertir. Como não sabia, se ao se encontrar com ela foi a primeira coisa que lhe disse, que ela iria continuar sendo somente uma serviçal para ele. Duda não se conteve começou a chorar, mas continuou falando. O que ele queria afinal dela? Colocou-a para fazer curativos quando não mais precisava, muito bem, ela sabia o lugar dela naquela casa, e iria embora e nunca mais voltaria a vê-lo. Duda saiu deixando Rafael perplexo. Ela era uma mulher forte apesar das lágrimas, falava segura, corretamente, olhando nos olhos dele, com altivez. Rafael sorriu e voltou para casa, naquele dia não a viu mais.

No outro dia Bernardo serviu o café e disse que Donana chegava para o almoço. Rafael assustou-se perguntou por Duda e ouviu o que não queria. Bernardo lhe explicou que Duda estava muito triste em estar ali, e quase não conseguiu esperar a mãe voltar. Precisava voltar porque estava estudando muito para ingressar na faculdade. Seu padrinho iria pagar o curso para sua filha. Rafael não soube o que responder. Naquele dia esteve muito pensativo. Tomou uma decisão que precisaria do apoio da mãe, deixaria a faculdade, para se dedicar a fazenda e não a venderia mais. Dona Anita o apoiou.

Um ano se passou, Rafael na fazenda já não era mais o mesmo, tornara-se outro homem, responsável, maduro. A essa altura Dona Anita já havia falecido com uma tuberculose. Rafael sempre perguntava sobre Duda que estava cursando o primeiro ano de direito. Ele lembrava-se muito dela naquela tarde no pomar. Talvez em seu coração tivesse nascido o amor. Mas como? Sem um beijo, um abraço, um toque, nada. Só sabia que sentia. Circulou na fazenda uma noticia de que Duda passaria as férias de janeiro com os pais. Rafael não via a hora de vê-la. Só que desta vez faria diferente.

Em uma tarde ensolarada Donana lhe perguntou se já havia visto Duda, ele perguntou por que, ela estava na fazenda? Já há dois dias, porém como ele saía cedo e só retornava a noite não percebeu a moça. Perguntou onde ela estava. Donana respondeu que devia estar por aí na fazenda. Rafael saiu à procura, no pomar, no jardim, nos fundos da casa, ao redor e nada. Perguntou ao vaqueiro se sabia dela e ele disse que tinha pegado um acavalo e iria a cachoeira. Rafael fez o mesmo. Ao chegar lá se depara com uma mulher banhando-se a luz do sol completamente nua, sorrindo, brincando com a água. Ele teve certeza, ela era a dona de seu coração. Quando ela percebeu sua presença começou a gritar com ele chamando-o de abusado, pornográfico, sem pudor, e outras palavras mais. Ele se virou de costas para ela se vestir e sorria. Ao se virar percebeu que já pegava o cavalo para sair, então pediu para que ela esperasse, não teve jeito. Então Rafael galopou atrás dela até a alcançar. Desceu do cavalo pediu para ela fazer o mesmo com calma.

Duda desconfiava de suas intenções, mas seu coração estava tão acelerado que não conseguia falar. Rafael começou dizendo que sua presença para ele era uma alegria, e que jamais esqueceria sua beleza. Duda corou. Ele continuou. Aquele primeiro dia que se encontraram na cozinha não a queria magoar, queria conversar e não encontrando outro assunto...Quanto ao curativo, não precisava mais, porém queria ela perto dele e essa foi a desculpa para tê-la por perto. No pomar queria lhe dizer que havia algo entre eles, mas ela também não deu oportunidade, e que aquela imagem dela estava em sua cabeça há um ano, não a esquecera. Ela não era a escrava, a serva, ele é que havia se tornado um servo de seu amor. Duda lhe olhava nos olhos agora com ternura. Rafael a tomou nos braços e a beijou lentamente e profundamente com todo seu amor. Duda se deixou ser beijada. Depois ela se afastou e finalmente entendeu que, o que sempre sentiu não era aversão a ele e sim amor desde menina, mas se recusava a aceitar.

Saiu calada, montou em seu cavalo. Olhou para Rafael, ele a olhava com carinho. Duda hesitou, desceu e disse finalmente “Sempre te amei”. O que se passou depois não é necessário aqui narrar. Dois corações apaixonados, uma relva verde, uma cachoeira fresca, um cenário perfeito para a realização do amor.

Duda terminou seu curso e voltou para a fazenda, houve um lindo casamento, uma festa, e dois anos mais tarde nasceria os gêmeos herdeiros da fazenda Gonçalo. Se me perguntarem se os bebês tinham a cor de Duda ou de Rafael, digo-lhes apenas que as crianças tinham a cor do amor, isso é o suficiente para entenderem que o amor é isento de cor.

Ivanilda Alves B. Maciel

São Miguel do Araguaia-Goiás-Brasil

Novembro/2011

Pitufa
Enviado por Pitufa em 13/04/2012
Código do texto: T3610024