Lenços de Namorado

Entrei no armazém das costuras e fixei o olhar nas suas coxas. Pedalava para fazer, ao bastidor, um granité vermelho. Subi na figura até perceber que as mãos faziam o giro do aro com determinação e era só isso que a inibia de olhar para mim, intruso em santuário de fêmeas. Tossi e as coxas serenaram, amolecidas, sob a saia cinzenta. Levantou o olhar azul e esboçou um sorriso. “Mastiga a linha e deixa um avesso inaceitável no bordado”, disse saindo da máquina para que me sentasse. Afrouxei o passo da canela, percorri o roteiro da linha nas roldanas e nas argolas de detenção, limpei o maquinismo e pedi um pedaço de pano para fazer as verificações finais. Oleadas as peças, arrumei a minha maleta da ferramenta e galguei o lanço das escadas para uma rua que fervilhava de gente apressada. Levei-a comigo. Coxas, seios, mãos e, sobretudo, o som das raras palavras que disse. Na altura nem prestei atenção ao sentido das frases mas, apenas, ao movimento de lábios carnudos sob um nariz alongado que se dizia na minha família ser de moça virtuosa. Acreditava ter resolvido o problema na máquina de costura mas desejei que me fosse imperioso lá voltar. Na verdade fiquei muito impressionado com o todo sensual da bordadeira e prometi a mim mesmo tudo fazer para saber mais sobre ela.

Nascera no Minho, perto de Viana. Corria pelo bairro que viera para Lisboa em busca de sossego depois que, mortos os pais, a vila deixou de valer como meio para o seu sustento ou como porta para um futuro que se fechava ante a pobreza extrema dos raros parentes ali radicados. Eram pequenas confidências na drogaria, uns ditos no mercado da fruta, conversas breves com a dona da casa onde alugara o quarto. A sua vida era triste, reservada, banal. Em todo o caso senti que uma mulher de aparência tão intensa teria todas as potencialidades para fazer um homem feliz e eu, depois que conheci Isadora, passei a sentir-me mais só e desamparado. Quando me chamaram a segunda vez e me preparava para a ver, para lhe deixar um veemente recado mudo, ela não estava. Sentira-se doente e faltara. Na sua máquina um lenço de namorado ainda estava esticado no bastidor. Disfarçadamente torci o pescoço para ler, nas letras infantis, os dizeres de amor que ela enfeitava de passarinhos e flores, à bela moda da sua terra. Quem me dera receber dela algo assim, íntimo e pessoal, simbólico e verdadeiro. Adiantaram-me que ela e a Dina só estavam a fazer lenços de namorado para satisfazer uma encomenda do Norte destinada a venda nas Festas da Agonia. A tradição mandava que cada moça bordasse um lenço para o seu namorado e lho oferecesse por ocasião das Festas da cidade. Com o tempo, no entanto, o comércio passou a oferecer os lenços em belas caixas artesanais que vinham de outras regiões do País. Mudava a essência e a prova de afeto agora só se manifestava através da escolha.

A diferença estética era fundamental e o romantismo, variando pouco, ainda assim haveria de ter um aspeto gráfico impressivo, se possível moderno. Competiam, entre si, Isadora e Dina, para ver quem fazia as escolhas mais originais e Isadora chegava a chorar por não ter jeito para o desenho. Eu também não ganharia prémios pela inventiva mas decidira, naquele exato momento, ser eu o fornecedor dos riscos e dizeres mais bonitos que Isadora tanto necessitava. Posso desenhar para si, se quiser, escrevi em letras de imprensa. Acrescentei o número do meu telefone, meti o papel na gaveta da máquina e fui sofrer a ansiedade para o isolamento da oficina. Recusei o convívio com o Antunes, não escutei nada do que me disse o chefe e fingi que estava a arrumar o espaço com a compenetração suficiente para que não me perturbassem o fio dos pensamentos. As ideias para os desenhos passavam-me a grande velocidade pelo cérebro mas teria de arranjar quem me ajudasse a materializá-las em papel de seda ou em papel vegetal. Tinha de me preparar para não passar por mentiroso e via naquele filão o meio mais adequado a uma aproximação natural. As frases brotavam na minha cabeça e era urgente escrevê-las para, depois, ser capaz de trabalhar nos desenhos. “ Ardo sempre que me olhas”, “Eu e este lenço estaremos junto do teu coração”, “quero-me rosa nos teus lábios”. Larguei as caixas de parafusos e os conjuntos de chaves francesas e passei a escrever em tudo o que aceitasse o passeio nervoso da caneta. Registava a frase e recomendava o desenho. Letras de alturas diferentes a voar no espaço como aves, escrevia. Verdes as de baixo, amarelas as outras ou este deverá ser só com dizeres a azul e um pássaro no canto de baixo para ser moderno e diferente.

A noite de descanso reduziu-se à medida que se dilatava o meu serão, espécie de febre que, num repente, havia transformado em caso de suma importância, desenhos, letras e frases para lenços de namorado. A encomenda que Isadora aceitara passou, assim, a merecer a máxima atenção. Falei com a mãe da Anita que tinha na Escola sempre bom a desenho e combinei que só pagaria os riscos que valessem a pena. Dois euros os mais simples, três os que fossem muito complicados para realizar. Depois disso passei a introduzir os lenços de namorado no meu quotidiano tanta era a ambição de imaginá-los tão belos que nunca fosse possível, à mulher dos meus sonhos, a sua recusa.

No dia seguinte as horas, viscosas, demoraram a passar. Pesavam como as tarefas, arrastavam-se em inquietação que tinha ecos terríveis no meu interior. A recusa pura e simples, a adesão condicionada, a agressão verbal. Isadora aparecia, no meu pensamento, vestindo seda com sorriso largo e rosas na mão, completamente nua e oferecida para conquistar mais desenhos ou de camuflado e botas, aos gritos, dizendo que deixara há muito tempo de ser ingénua. As emoções atropelavam-me e eu só podia aguardar que ela visse o recado, que percebesse o alcance da minha oferta e se decidisse pelo contacto logo que conseguisse vencer a timidez. Tudo isto demorou quatro longos dias em agonia dolorosa, com o meu amor próprio rasteiro como erva e a esperança a subir e a descer ao ritmo das fantasias. Enfim, o telefone tocou.” Era por causa dos desenhos”, disse a voz hesitante.” Só ontem é que li o recado e não tenho a certeza se o senhor é o loiro ou o dos bigodes pretos que veio arranjar o tear da Augusta”. E isso faz diferença? Perguntei angustiado. Sim, garantiu a voz. “Só estou interessada nos desenhos se você for o loiro”. Eu era o loiro.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 12/04/2012
Reeditado em 13/04/2012
Código do texto: T3609162
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