PERENIDADE DO AMOR

PERENIDADE DO AMOR

Conta-se essa história que é dada como verdadeira, porém, como não foi testemunhada por qualquer pessoa que a atestasse verdadeira, a consideremos como lenda, linda lenda que diz sobre o quanto o amor pode transcender à morte, ser perene.

Do mausoléu, apesar de lacrado não aberto há tempos, mais exatamente há 38 anos, irradiava uma energia estranha, forte. Saía do seu interior, vazava através das paredes de concreto revestidas com granito negro, se espalhava por todo o derredor atingindo em cheio as pessoas que por perto passavam. Sem saberem por que, até sem notarem o gesto, instintivamente paravam a observarem atentamente aquele portentoso mausoléu.

Alguns, sem se darem conta do que se passava, sem entenderem porque, viam-se inexplicavelmente paralisadas diante de um túmulo luxuoso de um desconhecido, como se houvessem acordado de um transe. De repente, num relance, olhavam assustadas à sua volta. Sem entenderem o que houve, retomavam seus caminhos.

Voltando no tempo, ao dia do velório ainda na sala da mansão onde morrera de um ataque cardíaco fulminante, ele não só recebeu a visita dos parentes e amigos mais chegados, pessoas do seu relacionamento, como também um grande número de pessoas que apenas o conheceram pelos noticiários, jornais, revistas, além de curiosos, pois o velório foi com as portas abertas para todos. Sempre esteve na mídia. Fora político atuante, grande industrial, famoso advogado de grandes causas. Mas alguns, sem importar a casta, entravam sem saber de quem se tratava. Aquele mesmo magnetismo que continuava exalando do túmulo, já acontecera no seu velório. Essas pessoas, quando davam conta de si, depois de contornarem a urna com o corpo, se perguntavam; “que faço eu aqui?”

Voltando ao mausoléu, além da energia inexplicável que atraia dominando os transeuntes, quem por ali passava sentia um sutil olor de cravos frescos, como se os que foram colocados em seu caixão a cercar-lhe o corpo inerte há 38 anos atrás, estivessem tão frescos quanto no dia do velório. Esse aroma, bastante chamativo, transcendia o mausoléu indo perfumar alguns metros adiante, fato que também deixava as pessoas, no mínimo, curiosas.

Um dia, passando por perto, indo visitar o túmulo de um parente que ficava na mesma quadra, próximo do mausoléu, uma distinta, elegante, bem tratada, bem trajada setuagenária senhora, sentiu aquele aroma dos cravos e, de repente, instintivamente já se encontrava lendo na lápide do mausoléu o nome do defunto que lhe veio à memória do jeito como o vira pela última vez.

Havia ido àquele velório, mas ao enterro não foi por motivos alheios à sua vontade, também porque não tinha motivos para tal. Fora sua cliente num processo que moveu contra uma potente companhia de seguros, e aquele senhor que ali estava sepultado fora seu advogado. Tudo ficou por aí, parado no tempo, já esquecido por ela. Afinal, sua condição não passara de uma cliente que freqüentou seu escritório por uns 5 anos, enquanto durou a ação. Mas, tudo não saíra do âmbito formal entre advogado e cliente.

Aos poucos, sem perceber, sentindo o olor dos cravos cada vez mais forte, foi se achegando mais pra perto do mausoléu, e através da grade da porta de ferro olhou seu interior meio escuro, sem qualquer atrativo.

À frente ficava o local onde se encontrava o caixão sob uma lápide de granito preto deitada, um pouco inclinada pra frente. Sobre ela a lousa onde se lia: “Aqui jaz Dr. Fulano de Tal. Saudades dos irmãos, sobrinhos e tio.” As datas de nascimento, falecimento, alusões aos títulos conquistados em vida como: Empresário, advogado, juiz, deputado, senador...

Essa senhora, como se puxada por uma mão invisível, viu sua mão ser levada a tocar essa lápide. Ao tocá-la sentiu um frisson como se fosse um pequeno choque nas pontas dos longos, belos dedos que compunham aquela mão alva, muito bem cuidada apesar das rugas. Olhou em torno percebendo que, naquele momento, estava só. Ninguém por perto. Todos tinham ido embora, só ela ficara ali sentindo essa repentina sensação sem conseguir entender por que dali não se afastara, apesar do adiantado da hora. Já se esvaiam as 17, às 17,30 os portões do cemitério seriam fechados. Aliás, um lânguido prazer, uma estranha calma, serenidade, sentia ficando ali tocando aquela lápide, sentindo aquele frisson. Até se esqueceu do parente o qual fora visitar. Algo muito forte a prendia àquele suntuoso mausoléu de granito negro. Ao olhar para o alto, deparou-se com um enorme anjo em tamanho natural, esculpido em bronze, a exibir duas grandes asas abertas como se quisessem abraçá-la. Miraram-se fixamente, olhos nos olhos.

Assim permaneceram por longo tempo com uma grande e invisível força a prendê-los nessa troca de olhares, profundos olhares...

Os portões se fecharam, ela nem percebeu.

Caiu a noite. O perfume dos cravos ficou mais intenso, mais atraente. Seus olhos não se despregavam dos olhos do anjo.

De repente, como se um facão invisível cortasse a linha que prendia os dois olhares, sentiu-se liberta conseguindo ver tudo claramente à sua volta. Só viu o véu quase negro da noite, ouviu os piados e cantos das aves pousadas nos galhos das árvores próximas...

Aí sim, levou um tremendo susto como se estivesse voltando de um longo, profundo sono, se encontrando novamente com o mundo real. Sentiu-se aflita sem saber que atitude tomar. Afinal, que fazia ali tocando aquela fria lápide de alguém que não lhe fazia sentido? Apenas fora sua cliente e fora ao seu velório há 38 anos atrás?

Enfim, sentiu-se atônita, sem forças para reagir, tomar alguma medida, ir embora dali. Porém, não sentia medo, pelo contrário, uma grande serenidade. E se encantava com os piados das corujas e o marulhar dos pombos.

Havia a luz da lua que era quase cheia iluminando bem tudo por ali. Sentiu um forte impulso de olhar novamente para a face do anjo. Ao vê-la, num repente exclamou: “Meu Deus, o que é isso!”

O rosto do anjo tomara a forma do rosto do falecido, no entanto, com as feições dele há 38 anos atrás, mais novo, atraente do qual se lembrou claramente. A mirava insistente, profundamente nos olhos tanto quanto o anjo a mirara.

Esse olhar, além de trazer-lhe profunda calma, sutilmente fazia-a ouvir, só com os ouvidos da mente, ele lhe dizer: “Eu muito te amei, desde o primeiro dia em que entraste no meu escritório. Eras linda, inteligente, sábia, elegante, charmosa, e muito sensual. Toda vez que por lá aparecias, vinha-me aquele impulso de dizer-te tudo, desabafar, declarar-me, porém minha timidez não me deixava abrir-me contigo. Infelizmente morri antes de declarar-me pessoalmente trazendo essa memória para esse túmulo. E se não sabes, nem podes imaginar, foi a força desse amor que nunca morreu que me fez induzir-te a hoje me visitar com a desculpa de visitares um parente teu que sei que é meu vizinho de última morada! Tudo poderia ter dado tão certo entre nós não fosse meu acanhamento! Arrependo-me de não ter-me declarado àquela época. Poderíamos ter sido muito felizes juntos, pois sutilmente sentia que tinha uma grande chance de ser aceito por ti que também era solteira como eu. Pelas nossas rápidas conversas, à parte do profissional sentia, tínhamos muitas coisas em comum. Mas ias embora. Eu voltava para casa sonhando contigo, com os momentos que poderia ter seu amor, sua atenção, seu carinho... De passar junto a ti belos momentos, com tua linda alma, com teu escultural corpo, com teus negros olhos, com tuas belas mãos, com teus lábios, com os beijos que fiquei por dar-te...”

E o que se conta é que a noite passou com os dois trocando palavras sem som, trocando recíprocos sentimentos enclausurados no passado, saudades de um tempo que ela só agora se dava conta de quão feliz poderia ter sido... A última coisa que ele deve ter dito para ela é que não a deixaria partir novamente, que não se separariam mais. Tanto é que, ao raiar o dia, os funcionários foram entrando para limpar as ruas, lavar os túmulos, recolher as folhas caídas, e um deles gritou para os companheiros que havia, no mausoléu que cuidava, sobre a lousa de granito preto, o corpo de uma bem tratada senhora estendido, com um largo sorriso a enfeitar-lhe o rosto já eternamente adormecido, braços por sobre o corpo. Nas mãos entrelaçadas, um belo cravo branco, perfumado, fresquinho...

PEDRO LECUONA
Enviado por PEDRO LECUONA em 03/04/2012
Código do texto: T3592670
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