Vida de Cinzas
- Odeio carnaval, não quero ir - eu disse.
- Mas amor, você não precisa ir à praia se não quiser porque a casa tem piscina, e o carnaval de rua de lá é maravilhoso! Você vai gostar, prometo.
- Ai, tá bom, que saco!
- Não faz assim, princesa, a gente nunca viajou juntos, esse feriado prolongado vai ser uma ótima oportunidade...
- Ok, só não me chama de "princesa", por favor.
- Huuuum, minha bravinha. - Ele resmungou, roçando a barba em mim e escorregando a mão que estava no meu pescoço até minha bunda, invadindo minha calça jeans e me apertando de leve(do jeito que eu gostava), filho da puta.
Poucas coisas ainda eram boas entre a gente depois de tanto tempo juntos, mas o sexo continuava insuperável. Até que essa viajem aconteceu.
Não sei como Denis me aguentava, pois às vezes nem eu mesma conseguia. Vezes essas em que a cerveja e a vodka e todo o resto me acolhiam de braços abertos pra eu fugir de mim por um pouco de tempo e não cair na tentação de fugir por todo o tempo que me restava.
Na sexta-feira, depois do trabalho, fui ao shopping comprar um biquine e todas as outras parafernálias que eu não tinha para ir à praia. Odiava areia. Odiava a água salgada do mar. Odiava a música do Michel Teló que com certeza seria a trilha sonora da viajem. E tudo mais.
Liguei para o Denis pra confirmar onde nos encontrávamos enquanto fitava uma vitrine cheia de biquines de biscat. Entrei na loja. Não que eu seja biscat, mas não tinha paciência pra ficar procurando muito e pegaria o primeiro que visse.
- Oi De, você me pega em casa?
- Pego sim, que horas a princesinha vai estar pronta?
- Af, como eu odeio esse seu jeito de falar...
- E como eu odeio você odiar tudo que eu faço. Já comprou o biquine?
Olhei pra um biquine preto num cabide com a parte de cima tipo cortinha e a calcinha de amarrar dos lados. Nada muito comportado. Peguei.
- Já, você vai gostar muito...
(É, mas quando Denis visse a minha bunda dentro daquele biquine entre aquele bando de machos ele não ia gostar tanto assim.) E como eu adorava irritar.
Às oito horas em ponto ele chegou. Sua pontualidade, por sua vez, me irritava. Como ele conseguia?
Eu sempre me atraso, mas não por minha culpa. O mundo conspira contra mim quando marco algum horário com alguém, é incrível.
Ele me esperava na porta enquanto eu descia toda desastrada com as minhas malas.
- Nossa, como você tá gostosa com esse vestidinho!
- Cala a boca e me ajuda aqui.
De certa forma tentávamos sustentar algo que já não tinha força e nem forma. Uma mistura de comodismo com medo da solidão e resquícios de amor. Éramos dependentes do sofrimento que causávamos um ao outro.
Fizemos sexo no carro, tudo muito rápido, depois dormi durante a viajem toda. Um amor falido, mas ainda sim um amor.
A casa de praia realmente era bem grande e bonita. Havia uma piscina e uma churrasqueira do lado de fora e eu decidi dar uma volta pra conhecer tudo enquanto De ia ao mercado comprar a comida.
- Amor, vê se me espera pra experimentar a piscina, hein, é bem funda!
- Aham, pode deixar...
Denis foi ao mercado e eu fiquei sasaricando pela casa e observando o movimento nas ruas. Um bairro bem tranquilo, bom e ruim. Estava livre do caos de São Paulo, mas de encontro ao tédio eminente do litoral. Havia uma casinha meio antiga bem ao lado da nossa com uma rede, um coqueiro e dois cachorros dormindo no quintal. Interessante. Quando olhei um pouco mais acima, me deparei com uma coisa linda de meu deus, um cara de vinte e poucos anos, com barba e cabelos enormes que me fitava. Sorriu pra mim. Eu retribui o sorriso, sem graça por estar bisbilhotando sua casa e virei as costas.
Percebi que estava escurecendo, peguei um engradado de cerveja e fui pra perto piscina. Previsivelmente, como é de se imaginar, bebendo e andando em volta da piscina descalça, com aquele chão liso demais e já depois de algumas latinhas de cerveja escorreguei e cai de joelhos na borda, me desequilibrando e capotando. Sim, a personificação do desastre. E enquanto aquela água clorificada fazia arder meus olhos eu já me via morrendo afogada ali. Me debati por alguns segundos por não saber nadar. Água entrando nos meus ouvidos, no meu nariz, na minha boca e em toda e qualquer outra entrada existente no meu corpo. Uma sensação horrível e meio desesperadora.
Durante aqueles segundos pensei na péssima ideia que foi essa viajem e como eu iria bater no Denis quando saísse dali. SE saísse dalí.
Senti uma mão forte me puxando pra cima. "Denis?", pensei, embora eu conhecesse bem como De me puxava e não era dessa forma tão... Tão... Deixa pra lá. Quase passei a acreditar em milagres naquele momento, eu estava enfim respirando, ou pelo menos tentando.
Não tive força pra abrir os olhos, mas minha boca foi aberta involuntariamente. Recebi rajadas de ar na garganta, vindas de uma boca diferente, uma boca maior e com um gosto diferente. Uma boca com uma barba em volta...
Nem que eu quisesse conseguiria me afastar daquela pessoa. Eu respirava com dificuldade e ela estava me dando ar, me dando fôlego. Eu comecei a respirar melhor.
Alguns segundos passaram.
Mas nem que eu quisesse conseguiria me afastar daquele homem. Eu já respirava melhor e ele estava me fazendo perder o ar, perder o fôlego.
Ao invés de ar, senti sua língua entrando delicadamente em minha boca.
Abri os olhos.
Não era Denis, como eu havia previsto.
- Oi, dona distraída. - O cara da janela (que agora era o cara que salvou minha vida) disse com uma das vozes mais roucas e bonitas que eu já ouvi.
Eu não pude ver, mas devo ter feito a expressão mais estranha do mundo. Não sabia se soluçava, tossia, ria ou chorava. Até que consegui dizer algo.
- O qu-que aconteceu c-comigo?
- Você escorregou e caiu aqui, eu estava na janela te observando e assim que vi, corri pra te pegar.
Ah, como eu queria que o finzinho dessa frase tivesse duplo sentido.
- Ah, obrigada - Eu disse, tentando me sentar na borda da piscina e me recompor.
Ele estava agachado ao meu lado, segurando minha mão quando pude ver seus olhos apontando pros meus seios. Fitei-o, incrédula com sua cara de pau até que ele percebeu minha revolta.
- Desculpa, é que percebi que você está com frio (rs...),quer ir tomar alguma coisa aqui ao lado, na minha casa?
- Não sei - Respondi rapidamente.
Ele levantou as sobrancelhas com uma cara irresistível e me olhou com aqueles olhos verdes, filho da puta, jogando sujo.
- Tem certeza?
E eu com muita dor no coração e em mais algumas partes respondi.
- Sim, acho que meu namorado não iria gostar muito.
- Chama ele também. - Ele disse. - Embora eu ache que alguém que deixa uma doida como você na beira de uma piscina e não se preocupa com isso, não deve se preocupar com mais nada na vida.
- Doida não, só um pouquinho desastrada!
...
- Tudo bem, sei que você não perguntou, mas pra me agradecer por salvar sua vida eu escolho você ir até a minha casa pra se aquecer um pouco. Afinal você pode ficar doente e eu não vou conseguir te salvar todas as vezes.
Não resisti.
Fui à casa de Tiago (tenho uma maldição com esse nome) e logo na entrada um vira-lata preto e branco pulou no meu colo, lindo. E aquele era o ápice do ridículo. Eu com cheiro de cachorro (molhado) após passar uma vergonha indescritível me afogando numa piscina que nem era tão funda assim.
Quando entrei, me deparei com uma mobília linda e rústica. Estávamos descalços. Tiago sem camiseta e com uma bermuda larga.
Ele sorriu um sorriso largo e apagado pra mim e se aproximou.
- Sabe por que eu apareci tão rápido pra te ajudar?
Fiquei em silêncio. Ele foi se aproximando cada vez mais e eu me recostei na janela que estava entreaberta. O vento soprava nas minhas costas, senti uma pontada na espinha.
Tiago estava perto demais. Passou o braço em volta das minhas costas e colocou uma toalha nos meus ombros.
Senti seu cheiro, cheiro de homem, delicioso.
É, eu estava fodida.
-Vou embora, meu namorado já deve estar chegando.
Tentei sair, ele segurou firme em um dos meus braços e me virou de costas, me apertando contra a janela. Roçou sua barba na parte de trás do meu pescoço e eu me arrepiei e, por instinto, me empinei. Senti algo entre nós crescendo cada vez mais (no sentido mais literal possível). Ele apertava seu pau latejante contra minha bunda e levantava meu vestido molhado com uma das mãos.
Pensei em Denis, ele já deveria estar chegando e eu ali, prensada na janela com o pau do nosso vizinho quase dentro de mim. Eu fechei os olhos com força, tentando voltar a mim mesma e resistir àquilo tudo. Aquilo tudo.
A janela em que estávamos dava para a rua de trás de nossas casas, podíamos enxergar uma ruazinha sem saída, tudo muito escuro.
Mas não tão escuro assim. Enquanto Tiago me abraçava por traz e me prensava conta a janela, consegui enxergar perfeitamente o carro de Denis parado nessa ruazinha sem saída, onde ele transava com uma ruiva que estava hospedada num hotel na mesma rua.
Cerrei os olhos de raiva e no segundo subsequente lá estava eu quase dando para Tiago.
Uma mistura de raiva com vingança e só tesão mesmo.
Tiago era bom no que fazia, confesso, mas não conseguia me concentrar em mais nada depois daquela cena. Estranho saber que "vou ao mercado" poderia signifcar "vou ali na rua de trás comer a ruiva que tá hospedada naquele hotel de luxo".
Mas eu também estava na casa de Tiago, e minhas intenções já não eram tão inocentes assim.
Antes que eu pensasse novamente sobre o acontecido, ele me puxou pelo braço, firme. Me jogou no sofá e beijou dos meus pés à minha boca.
Lembrei de Denis.
O filho da puta.
O traidor.
O comedor de ruiva dos infernos.
Tiago percebeu que eu não estava à vontade, se sentou do meu lado e disse:
"Você o ama, né?"
No mesmo momento, senti ódio de mim mesma por não ter a capacidade de revidar o soco na cara que havia acabado de receber.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
"Bom, tudo o que eu sei é que ele é um filho da puta de muita sorte..."-Disse Tiago.
Me levantei e sai pela porta da sala.
Quando cheguei no portão de casa, Denis cruzava a esquina à pé, de cabeça baixa quando me viu saindo da casa de Tiago.
Ele levantou os olhos. Eles se cruzaram com os meus.
Mentalmente nos batemos, nos ofendemos e nos beijamos.
Fisicamente nos abraçamos e, sem precisar dizer uma só palavra, nossos olhares trocaram um milhão de perdões.
Nossos olhos molharam a ombro do outro com lágrimas agridoce.
Num segundo parecia o fim, no outro um recomeço.
Terminar de destruir a velha ponte que nos mantinha juntos e construir abismos ou juntar os pedaços do que sobrou de amor?
Era essa a pergunta que nos fazia (sobre)viver juntos assim.