Direis a verdade
Ele entrou em casa e ela parecia tranquila. Estava lendo o jornal; ao lado das folhas avulsas do noticiário, um de seus livros técnicos. Devia estar em uma pausa de seus estudos. Sem tirar os olhos da leitura, ela perguntou como tinham sido as coisas na casa da mãe dele. Parecia mesmo tranquila. Se estivesse desconfiando de alguma coisa, demonstraria, pois era uma pessoa sem autocontrole. Era fácil levá-la aonde se queria. Ela logo dava a conhecer o que pensava, o que sentia... Muito boba. Se parecia tranquila, então o estava de fato.
Ele disse que as coisas estavam bem na casa dos pais, mas que não vira a mãe, só o pai. Colocou a chave no porta-chaves que pendia da parede, tirou os tênis, calçou os chinelos e foi beber água. Ela continuava sua leitura, calma. Aquilo o incomodava. Não o fato de que ela estivesse calma, mas talvez o próprio fato de que estivesse ali, ocupando espaço. Por que ela não fazia nada pelos dois? Ele saíra e quando voltava, ali estava ela, sentada, ausente. Não preparara um café, não perguntara se ele queria alguma coisa. Ela parecia não tê-lo notado bem, como se ele fosse apenas uma sombra. Sequer erguera os olhos para cumprimentá-lo. Ele se ressentia. Nada do que ela fazia pelos dois era bem feito, o espírito dela não estava em nada, vivia dispersa, depressiva. Ele não conseguia encontrá-la de fato. Convivia com uma mulher, mas não conseguia entendê-la. Achava que ela também não conseguia entendê-lo.
A cada dia a companheira parecia mais distante, mais absorvida em objetivos artificiais (vencer o computador no jogo de xadrez, ler toda a ficção que havia em casa e planejar uma viagem de volta ao mundo) criados por ela para distraí-la da realidade: a realidade de que aquela relação era árida, de que ele não gostava mais dela – sentia uma imensa pena, sabia que ela precisava ser cuidada, mas não gostava mais dela. E ela fugia dessas constatações. Ele não conseguia abordá-la e dizer: "Precisamos terminar". Ela seguia quieta, em outro mundo, não dava nenhuma chance de aproximação. Ele precisava se esforçar dando sinais de que ela precisava mudar, de que precisava gostar mais das coisas, da casa, da relação, dele!
Convivendo com o desânimo da mulher, ele também se tornou mais indiferente, mais triste, buscando atenção de alguma forma, mas sentindo-se minado até mesmo em sua virilidade. Já fazia um tempo que cogitava trair a esposa. Dizem que os homens traem por ocasião, apenas se surgir a oportunidade, mas isso não corresponde aos fatos. Homens e mulheres, quando se sentem desvalorizados em uma relação, agem da mesma forma para compensar suas frustrações.
De madrugada, insone ao lado de uma mulher fria que jamais se interessava sexualmente por ele, ele se levantava, ligava o computador na sala e assistia a vídeos eróticos. Quando compravam o jornal aos domingos, ele não podia deixar de correr os olhos pelos classificados de acompanhantes.
Eles estavam tendo problemas sérios no relacionamento. Brigas constantes, ela se afundando na tristeza, inerte, descuidada, sem dar atenção nenhuma a ele e cobrando que se casassem. Sua nova distração para evitar encarar a realidade daquela relação falida se tornara acelerar os preparativos para um casamento do qual eles nunca haviam falado a sério. De uma hora para outra, ela começou a contar para ele que conversara com buffets, com cerimoniais de casamento, que havia começado a fazer um orçamento e que eles poderiam se casar logo.
Dias e semanas se passaram e a conversa da formalização do casamento já o estava irritando ao extremo. Eles haviam ido morar juntos porque ele achava que ela fosse liberal e que a família dela, que morava longe, não iria perturbá-los com isso. O que essa mulher queria, de uma hora para outra, com casamento, com história de aluguel de vestido, de tratamento dermatológico um mês antes da cerimônia, combinação de flores, escolha de banda? Só poderia ser algum tipo de bipolar, que havia ficado adormecida por vários meses e de repente acordara cheia de energia. Era mesmo uma mulher problemática. Tanto tempo desleixada e, de repente, começou a arrumar a casa para o Natal; preparou um jantar de aniversário para ele (fez um jantar completo – da entrada à sobremesa – sem ajuda de ninguém) e ainda chamou os parentes dele... Era uma mudança muito radical.
Ele só conseguia pensar em duas explicações: ou ela era mesmo doente ou estava fazendo um enorme esforço para agradá-lo e conseguir o casamento. Por que as mulheres se apegam tanto a isso? Por que ela se apegara tanto à ideia de se casar?
Quando começaram a namorar, ela o intimidava por ter muitos amigos, por ser desinibida, moderna, liberal. Casamento nunca foi sequer tópico de conversa entre eles.
Era impossível entender aquela criatura. Depois de tanta liberalidade e exuberância, decaiu para uma profunda depressão após terem ido morar juntos e, depois de toda essa abulia, de novo ela voltava a estar superagitada, falando em padre, damas de honra e planilhas de custos para a cerimônia e a recepção.
Ela estava empolgada, agitando os braços, com a face corada, animada, dando detalhes de como tomaria empréstimo para fazer a festa, e ele, acuado, sem posição nenhuma. Já havia semanas ele vinha aguentando aquela nova mania da mulher, que não conseguia ver que ele não queria mais nada.
- Naquele dia, naquela tarde...! Naquela tarde eu não fui ver meus pais, eu estava voltando da casa de uma garota de programa – essa foi a única fala dele durante mais uma situação em que a mulher falava do casamento.
O ar parou.
O lápis que ela estivera agitando no ar para falar das planilhas de custo, se tivesse sido lançado contra ele, teria ficado paralisado no espaço. O mundo parecia haver parado para aquela cena. Primeiro ela sentiu uma pressão nas têmporas, depois, um frio na espinha e, por último, as pernas pareceram fraquejar. Ela não entendeu, nunca entendia nada.
Naquela tarde em que ele chegara em casa e encontrara a mulher tranquila lendo um jornal, ele estava voltando da casa de uma garota de programa. Não queria admitir por que fora ali, parecia que, se ela não soubesse, não faria diferença, sua consciência não o acusaria de nada, afinal, era apenas uma profissional. Ela não ia à manicure, à cabeleireira? Por que era tão diferente assim? Ele não queria pensar nisso. Não queria admitir que estava até se sentindo bem, secretamente vitorioso. Ele acabara de fazer sexo com outra mulher e estava bem, descansado, realizado. Naquele dia a indiferença da companheira não o atingiria.
Após a confissão, a necessidade das mentiras. Em vez de ele se permitir ser liberto pela verdade (“Conhecereis a Verdade e ela vos libertará”), as mentiras saltaram sozinhas de seus lábios e ele mesmo não conseguia mais discernir o falso do verdadeiro.
- Eu só fui lá porque você estava tão bonita, você tinha mudado a cor do cabelo um dia antes, estava linda. Eu fiquei morrendo de ciúmes.
A reação da mulher não pode ser registrada porque não houve reação. Ela parecia ter sido levada para uma realidade paralela, parecia estar perdida no mundo que a salvava da aridez daquele relacionamento – só não se sabia se esse mundo era melhor ou pior que a realidade.
- Eu procurei uma garota de programa porque nós vamos nos casar, não é? Foi como se fosse uma despedida de solteiro, eu fui lá pra testar se era capaz de sentir desejo por outra mulher, já que sou tão apaixonado por você.
A mulher, por aqueles dias, estava lendo A insustentável leveza do ser e, tal como Tereza, depois da confissão do companheiro, passou a sonhar todas as noites sem exceção que estava sendo traída, que prostitutas vinham à sua casa e dormiam em sua cama. Ela acordava atordoada, aflita, sensível, com dor de cabeça, mas, ao longo do dia, não se preocupava com isso, tentava planejar seu casamento e achava mesmo que estava em uma ótima fase com o namorado.
Somente os sonhos a chamavam para a realidade, ela vivia acossada por eles e passou a fazer terapia, sem encontrar muito apoio, pois a terapeuta, talvez seguindo algum método próprio, dizia que ele gostava muito dela.
A mulher passou a acreditar que fosse ela a culpada pela traição do companheiro. Ele traiu porque ela é que não se cuidava, não lhe dava atenção, vivia alheia em seu mundo e por isso ele a traíra.
- Eu fui atrás de uma prostituta porque fiquei com ciúmes de você com seus amigos – disse ele em uma segunda ocasião em que se tratou da traição.
Ela voltou a ficar triste, perdeu o ânimo pela organização daquela festa de casamento – talvez fosse mesmo bipolar, como ele dizia, e agora estivesse voltando à fase depressiva – e se aquietou de novo em seu mundo de projetos despropositados para se distrair daquela relação que precisava de um fim que nenhum dos dois conseguia declarar.
Ele, depois da confissão, achou que a mulher passou a amá-lo mais, a respeitá-lo mais e descobriu, talvez porque seu comportamento para obter atenção tivesse sido bem sucedido, que a mulher era um cãozinho de Pavlov estimulada com traições. Quando a mulher se distraía, ele praticava uma traição e deixava que ela ficasse sabendo, assim, ela voltava a cuidar dele, a se desdobrar para cuidar da casa, dele, da relação. Tudo para não perdê-lo.
Os dois não se casaram, pois ela perdeu o ânimo por organizar festas de casamento, mas continuam juntos até hoje. De vez em quando ela descobre uma traição e corre para preparar um bom café para o companheiro.