Ana Lívia foi nossa primeira estagiária. Vinha de Barueri (ou seria Osasco?). Tinha um lindo coração. Era capaz de amar e de se apaixonar. Tinha capacidade de enxergar. Seus olhos estavam sempre olhando para as coisas da serra onde vivemos, entre vales e colinas, quase ao sopé do monte.
Vinha não só de um lugar diferente, mas de um ritmo diferente. Notávamos nela uma fome de entrar em contato com tudo que a cercava. Adorava cavalgar, subir em goiabeiras, colher flores, ir ao monjolo buscar canjiquinha num balde, acender o fogão (se é que acendia) com gravetos e garras de araucárias, colher capulhos de algodão e grãos de café com as mãos de dedos longos com esmalte cor de rosa.
Dir-se-ia que parecia libertar-se de sua condição de paulistana. Tinha uma espécie de gastura de um diálogo mais total e realizado com todo o seu ser. Parecia ficar assombrada de poder ouvir com os olhos e conversar com as mãos, vivendo bem de perto o que havia imaginado de longe quando do seu doutorado na USP.
Mas se servia de um caudal de palavras, especialmente quando caía a noite. Era como se o silêncio da "Santa Fé" a molestasse. Acho que ela se protegia da noite falando. Não tinha o sono por amigo. Deitava-se tarde e não se levantava muito cedo.
Uma tetéia diziam os mais velhos.
Cada manhã cumpria todo um ritual a que não estávamos habituados. Tinha necessidade de preencher com seus dentes branquinhos (perfeitos na moldura da boca carnuda), de seu rosto, de seu cabelo. Ocupada consigo mesmo. Não tinha tempo de contemplar nem de ouvir toda a liturgia que os animais, a madrugada e os pássaros oficiavam no começo do dia. Ocupadíssima em organizar e construir sua beleza, parecia incapaz de perceber, receber e admirar. Ocupada em se preparar, perdia o canto dos galos, dos bem-te-vis, a despedida das estrelas que se iam do céu, das imensas vacas que se iam do curral após a ordenha.
Reconheço, no entanto, que Aninha tinha uma alma muito sensível (não que eu seja reparador). Tomou-se de amores nossa tetéia por um tetéu criado no nosso jardim. Gostava do jardim com um quero-quero dentro. Um jardim com vida. Um jardinzinho com capacidade de alerta, capaz de anunciar com chilreado alegre a presença de quem chega.
Por isso, começou a sonhar em possuir também ela, na cidade, um jardinsinho seu, com um quero-quero dentro.
Sendo agrônoma imaginatica e empreendedora, começou desde então a reunir todo o necessário para equipar seu jardinzinho em Osasco, digo, Barueri, copiando o nosso.
Trouxe do cerrado alguns cáctos e algumas bromélias de folhas avermelhadas. Esmeralda lhe deu mudas de malva, de hibiscos, de lavanda e eu um par de mudas de rosas cor de rosa (por conta das lindas mãos). Levou sementes de trepadeira "lágrimas de Cristo" numa latinha e de "bunda de mulata" num vasinho (Esmeralda, implicante, insiste que o nome certo é "negros olhos de Suzana"). Tonhão lhe deu um alguidarzinho de barro para colocá-lo no chão e enche-lo com água, para o tetéu do seu futuro jardim.
Voltou para a cidade bem equipada e cheia de projetos. Decidida que era, despendeu horas organizando seu jardim, sonhando com um quero-quero paulistano nele viesse habitar. Distribuiu as rosas, os cáctos as malvas e as lavandas. Desdobrou as mudas de hibisco com mimo e as de "lágrimas de Cristo".
Tudo preparado, foi aí que se deu conta que faltava algo em seu jardinzinho. Faltava o quero-quero. Tanto esforço e não conseguira atrair um tetéu para o jardim.
Ana Lívia sentiu-se desanimada e o desânimo fez com que se descuidasse e nem reparou que entre as plantas as joaninhas haviam se instalado (tetéus adoram joaninhas). E com tal estado de ânimo (não que eu seja reparador) regressou a "Santa Fé" para a última fase do seu estágio. Pareceu-me até que olhava com uma ponta de irritação (não que eu seja implicante) para o quero-quero do nosso jardim passeando entre flores de mel, rosas, malvas, lavandas...
Foi na manhã da despedida, quando tudo já estava preparado e Nestor pronto para sair com a Pajero, foi jestamento naquele momento que Fidalgo e eu, espavoridos, trouxemos um tetéu para a nossa tetéia
(momneto nada propício). Era pequenino e morno, um montinho chilreante de plumas. Tinha a cabecinha grande e uma patinhas que se negavam a sustentá-lo, apoianado-se de corpo inteiro no côncavo da minha mão como se fosse um terrãozinho.
Ana Lívia se achou de repente com o quero-quero entre as mãos (que mãos lindas tinha), sem saber o que fazer. Não tinha preparado nada para acolhe-lo. Se eu tivesse avisado antes!...
Mas ninguém poderia supor que o tetéu iria aparecer quando Fidalgo estacou a cavalgada junto à moita na invernada (Esmeralda, implicante e resmungona tartamudeava: -"Capaz mesmo! É ele que sempre faz assim!"). Pra mim encontrar um quero-quero é sempre um elemento surpresa e eu não "faço sempre assim", embora todos saibam que o campo está cheio de quero-queros.
A questão foi que a nossa surpreendida estagiária se encontrava de repente no início da longa viagem para São Paulo com um tenro quero-quero na palma da mão. Naquelas circunstâncias (que maravilha é a mulher em apuros) agiu com lógica, com intuição. Pegou uma caixa de sapatos, tirou de dentro um par de sandálias (tinha, como as mãos, uns pés lindos!), colocou o tetéu dentro e, fez cinco ou seis furos na caixa (recusou meu canivete), para que não sufocasse.
Estrutura provisória, mas absolutamente indispensável para levar o quero-quero em segurança. Pequena exigência do bichinho pequenino e morno, um montinho chilreante de plumas.
Soube mais tarde que em sua casa não tendo nada preparado para instalá-lo e não querendo colocá-lo no jardim, tão pequeno e indefeso, e expô-lo à sanha dos gatos urbanos, Ana Lívia esvaziou um cestinho de roupa branca (que imagens me ocorreram, não que eu seja um fescenino) e improvisou um viveiro que deixou dentro do seu quarto e quando caía a noite, a fim de protegê-lo, dormia com ele em sua cama.
E assim o quero-quero foi crescendo e suas exigências aumentando. Ana Lívia correspondia àquelas exigências através de sucessivas intuições que iam demandando soluções provisórias. Mas o que mais entusiasmava Ana Lívia, o que fazia com que seus esforços valessem a pena era que agora, tinha um quero-quero compartilhando seu jardim. Seu quarto, melhor dizendo (não que eu seja implicante).
O jardim de Ana Lívia resultou diferente, muito diferente do nosso ao sopé do monte, na serra, entre vales e colinas.
Passado uns tempos, passando por ali (não que eu seja dissimulado), bati na porta do jardim de Ana Lívia.
- O que você está fazendo aqui?
- Vim ver o quero-quero. Faço parte do seu jardim...
E lhe beijei a boca sendo retribuído com muita vontade.
Vinha não só de um lugar diferente, mas de um ritmo diferente. Notávamos nela uma fome de entrar em contato com tudo que a cercava. Adorava cavalgar, subir em goiabeiras, colher flores, ir ao monjolo buscar canjiquinha num balde, acender o fogão (se é que acendia) com gravetos e garras de araucárias, colher capulhos de algodão e grãos de café com as mãos de dedos longos com esmalte cor de rosa.
Dir-se-ia que parecia libertar-se de sua condição de paulistana. Tinha uma espécie de gastura de um diálogo mais total e realizado com todo o seu ser. Parecia ficar assombrada de poder ouvir com os olhos e conversar com as mãos, vivendo bem de perto o que havia imaginado de longe quando do seu doutorado na USP.
Mas se servia de um caudal de palavras, especialmente quando caía a noite. Era como se o silêncio da "Santa Fé" a molestasse. Acho que ela se protegia da noite falando. Não tinha o sono por amigo. Deitava-se tarde e não se levantava muito cedo.
Uma tetéia diziam os mais velhos.
Cada manhã cumpria todo um ritual a que não estávamos habituados. Tinha necessidade de preencher com seus dentes branquinhos (perfeitos na moldura da boca carnuda), de seu rosto, de seu cabelo. Ocupada consigo mesmo. Não tinha tempo de contemplar nem de ouvir toda a liturgia que os animais, a madrugada e os pássaros oficiavam no começo do dia. Ocupadíssima em organizar e construir sua beleza, parecia incapaz de perceber, receber e admirar. Ocupada em se preparar, perdia o canto dos galos, dos bem-te-vis, a despedida das estrelas que se iam do céu, das imensas vacas que se iam do curral após a ordenha.
Reconheço, no entanto, que Aninha tinha uma alma muito sensível (não que eu seja reparador). Tomou-se de amores nossa tetéia por um tetéu criado no nosso jardim. Gostava do jardim com um quero-quero dentro. Um jardim com vida. Um jardinzinho com capacidade de alerta, capaz de anunciar com chilreado alegre a presença de quem chega.
Por isso, começou a sonhar em possuir também ela, na cidade, um jardinsinho seu, com um quero-quero dentro.
Sendo agrônoma imaginatica e empreendedora, começou desde então a reunir todo o necessário para equipar seu jardinzinho em Osasco, digo, Barueri, copiando o nosso.
Trouxe do cerrado alguns cáctos e algumas bromélias de folhas avermelhadas. Esmeralda lhe deu mudas de malva, de hibiscos, de lavanda e eu um par de mudas de rosas cor de rosa (por conta das lindas mãos). Levou sementes de trepadeira "lágrimas de Cristo" numa latinha e de "bunda de mulata" num vasinho (Esmeralda, implicante, insiste que o nome certo é "negros olhos de Suzana"). Tonhão lhe deu um alguidarzinho de barro para colocá-lo no chão e enche-lo com água, para o tetéu do seu futuro jardim.
Voltou para a cidade bem equipada e cheia de projetos. Decidida que era, despendeu horas organizando seu jardim, sonhando com um quero-quero paulistano nele viesse habitar. Distribuiu as rosas, os cáctos as malvas e as lavandas. Desdobrou as mudas de hibisco com mimo e as de "lágrimas de Cristo".
Tudo preparado, foi aí que se deu conta que faltava algo em seu jardinzinho. Faltava o quero-quero. Tanto esforço e não conseguira atrair um tetéu para o jardim.
Ana Lívia sentiu-se desanimada e o desânimo fez com que se descuidasse e nem reparou que entre as plantas as joaninhas haviam se instalado (tetéus adoram joaninhas). E com tal estado de ânimo (não que eu seja reparador) regressou a "Santa Fé" para a última fase do seu estágio. Pareceu-me até que olhava com uma ponta de irritação (não que eu seja implicante) para o quero-quero do nosso jardim passeando entre flores de mel, rosas, malvas, lavandas...
Foi na manhã da despedida, quando tudo já estava preparado e Nestor pronto para sair com a Pajero, foi jestamento naquele momento que Fidalgo e eu, espavoridos, trouxemos um tetéu para a nossa tetéia
(momneto nada propício). Era pequenino e morno, um montinho chilreante de plumas. Tinha a cabecinha grande e uma patinhas que se negavam a sustentá-lo, apoianado-se de corpo inteiro no côncavo da minha mão como se fosse um terrãozinho.
Ana Lívia se achou de repente com o quero-quero entre as mãos (que mãos lindas tinha), sem saber o que fazer. Não tinha preparado nada para acolhe-lo. Se eu tivesse avisado antes!...
Mas ninguém poderia supor que o tetéu iria aparecer quando Fidalgo estacou a cavalgada junto à moita na invernada (Esmeralda, implicante e resmungona tartamudeava: -"Capaz mesmo! É ele que sempre faz assim!"). Pra mim encontrar um quero-quero é sempre um elemento surpresa e eu não "faço sempre assim", embora todos saibam que o campo está cheio de quero-queros.
A questão foi que a nossa surpreendida estagiária se encontrava de repente no início da longa viagem para São Paulo com um tenro quero-quero na palma da mão. Naquelas circunstâncias (que maravilha é a mulher em apuros) agiu com lógica, com intuição. Pegou uma caixa de sapatos, tirou de dentro um par de sandálias (tinha, como as mãos, uns pés lindos!), colocou o tetéu dentro e, fez cinco ou seis furos na caixa (recusou meu canivete), para que não sufocasse.
Estrutura provisória, mas absolutamente indispensável para levar o quero-quero em segurança. Pequena exigência do bichinho pequenino e morno, um montinho chilreante de plumas.
Soube mais tarde que em sua casa não tendo nada preparado para instalá-lo e não querendo colocá-lo no jardim, tão pequeno e indefeso, e expô-lo à sanha dos gatos urbanos, Ana Lívia esvaziou um cestinho de roupa branca (que imagens me ocorreram, não que eu seja um fescenino) e improvisou um viveiro que deixou dentro do seu quarto e quando caía a noite, a fim de protegê-lo, dormia com ele em sua cama.
E assim o quero-quero foi crescendo e suas exigências aumentando. Ana Lívia correspondia àquelas exigências através de sucessivas intuições que iam demandando soluções provisórias. Mas o que mais entusiasmava Ana Lívia, o que fazia com que seus esforços valessem a pena era que agora, tinha um quero-quero compartilhando seu jardim. Seu quarto, melhor dizendo (não que eu seja implicante).
O jardim de Ana Lívia resultou diferente, muito diferente do nosso ao sopé do monte, na serra, entre vales e colinas.
Passado uns tempos, passando por ali (não que eu seja dissimulado), bati na porta do jardim de Ana Lívia.
- O que você está fazendo aqui?
- Vim ver o quero-quero. Faço parte do seu jardim...
E lhe beijei a boca sendo retribuído com muita vontade.