Pigmalião e Galatéia, uma outra versão
‘Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar um Amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra. ’
-Baudelaire
Havia, na Chipre dos dias dourados, um jovem Artista chamado Pigmalião. Dedicava-se à escultura e era, bem, um Artista. Vivia por tentar não existir no mundo, mas Vivia no Universo. Sua dedicação era à Beleza, à Perfeição, inexistentes no horror externo, mesmo que sob o Firmamento. Pigmalião sofria sozinho, sua existência de horrores. Ah, e como sofria! Mas possuía-lhe sua Arte, e por quase todo o dia, estava a esmerilar, martelar e dar forma ao granito, ao mármore, ao alabastro, e às pedras nobres, em geral. Batia, batia, e aqui um fragmento bruto caía, e mais outra batida acolá, havia, então, corrigido a mínima imperfeição na escamosa, lustrosa, sedutora cauda de uma sereia que não canta, seu lascivo olhar de orgasmo imortalizado no mármore, os cabelos ao longo dos seios, nem muito grandes, nem muito pequenos, mas perfeitos. Pigmalião vivia assim, dia e noite, dia e noite, dia e noite, e sua túnica e cabelos estavam sempre cobertos do pó, necessário sacrifício à sua Arte. Era um agente da Beleza nos outros, e não nele. Sabia, então, que seu corpo era apenas mortal, vítima do tempo. E era Imperfeito, horrendo seria, em alguns anos, como todo o corpo humano é. Sabia, que em algum tempo, seria seu corpo também pó, como aquele que lhe cobria por inteiro, e que seus brancos ossos esfarelariam, vítimas do Tempo, este justo destruidor de monstruosidades como homem e suas pretensas civilizações. Mas, então, vivia o jovem Artista só, como que num sonho, esculpindo. Tal fato não era agradável à sociedade local. Infelizmente, o único homem disponível ao casamento, na ilha, era Pigmalião. Cansava-se de repudiar os avanços das jovens de corpo esbelto, delicioso, de seios brancos e cabelos macios, jovens de corpo semelhante ao licor em seu prazer ébrio, mas de almas e corações retorcidos como os espinheiros das estradas. Tais jovens não desistiam, em sua lasciva ardência por presenças masculinas. E voltava, sutilmente, a repudiar-lhes o Artista. Vivia pelo Sonho, pelo Impossível, então. Vivia pela Beleza, não pelo Prazer Físico. Era o último em seus dias a crer no Amor, sábio, infinito, eterno, então. E Pigmalião, assim, convertia-se rapidamente num pária em sua ilha nas raras vezes em que saía de seu humilde estúdio, no alto de uma colina, quando ia suprir-se de suas necessidades mais básicas. Pão, água, suas matérias primas e, às vezes, novas ferramentas quando as antigas não sobreviviam seu constante emprego. Minuciosamente, escolhia os blocos mais resistentes, belos. Desejava, em sua angústia intelectual, alcançar a Perfeição Artística com seu cinzel. Mas não conseguia. Ah! Pobre Pigmalião, de cabelos sujos, barba mal-feita e olhos vermelhos com o pó de mármore! Tanto se esforçava o jovem Grego em esculpir as formas mais dignas, mas sempre algo de errado acontecia, aos seus olhos, possuidores de uma profunda autocrítica. Chorava amargamente, nesses momentos, e passava horas a fio contemplando suas obras imperfeitas. E seguia, as lágrimas nos olhos, para a sina da vida de Artista. Buscar, em vão, a salvação pela Beleza. E que é a Beleza, senão o Perfeito? Por isso, outro bloco contemplava, e cinzelava, cinzelava. Acontece que, cada vez mais recluso, cada vez mais desesperava as jovens, e, ainda mais, as mães das jovens, que não queriam ver solteiras suas filhas. Diziam elas:
‘Ah, vê quem passa, vê quem passa? Aquele escultorzinho, sim, aquele que se chama Pigmalião, aquele, que casar-se não quer. Que há de errado às nossas filhas? Tão belas são, de corpos esbeltos, que pode haver de errado nelas?’
Dizia outra:
‘Ah, é este jovem rebelde, pretensioso artistazinho. Jamais teve ele o corpo de uma mulher, acho eu, banhada em óleos, perfumada. Jamais sentiu ele o prazer corpo com corpo, aquela dor lancinante. Que pode haver melhor na vida?’
E ainda outra:
‘Ali, quem vem lá? Ah! É o maldito jovenzinho revolucionário. Sempre cinzelando e martelando a pedra, mas jamais cinzelando em busca do prazer um corpo feminino, noite adentro. Em lugar disso, passa as noites em claro, esculpindo suas horríveis estátuas. Maldito, maldito, por causa dele, minha filha não casará!’
Todos estes comentários não incomodavam Pigmalião. Não podia ver o mundo dos humanos, e logo se enojava. Seus beberrões, suas prostitutas, sua corrupção lhe inspiravam esculturas de horror e repúdio a tudo aquilo. Queria viver de seu Eterno Amor às Artes, e nada mais lhe importava. Paixões, atrações, corpos, nada disso lhe dizia respeito. Era um homem corajoso, um herói à sua maneira, de enfrentar o mundo cara-a-cara, sozinho. Mas as mães de Chipre estavam desesperadas. Diziam:
‘Que faremos, que faremos? O jovenzinho não desiste. E não adianta as nossas filhas desnudarem-se, provocarem-lhe e flertarem, ele ainda assim resiste! Que faremos, que faremos, então?’
Até que então, os lábios descorados de uma sorriram, e os olhos empapuçados arregalaram-se de surpresa: Uma idéia tinha-lhe ocorrido:
‘Amigas, uma idéia me ocorreu, eu tenho a solução, deste dilema tão mortal!’
A primeira pareceu indiferente:
‘Ora, amiga não diga bobagem. Todos nós sabemos ser incorruptível aquele menino obstinado!’
Disse outra:
‘Amiga, diz-nos sua idéia. És a mais velha, e mais experiente de todas nós.’
Respondeu-lhe:
‘É que o Festival da Primavera se aproxima, amigas! E que remédio será melhor ao teimoso garoto que uma oferta à Afrodite, um suntuoso sacrifício, para que esta case-lhe com uma de nossas filhas?’
As outras, então, acometidas pela surpresa da idéia, responderam em uníssono:
‘Magistral! Um sacrifico à Vênus!’
Sorriu a que teve a idéia, uma vez mais. Terminou, dizendo:
‘Então, amigas, vamos aos preparativos. Uma filha, uma que seja das nossas há de se casar!’
E o grande dia chegou, nada significando ao jovem escultor, imerso em sua Obra, no dia do Festival. E os perfumes exóticos não penetraram suas narinas, pois ele estava longe demais, imerso no universo de seus sonhos. Entretanto, no Templo de Vênus, ao pôr-do-sol, estavam as mães ali reunidas. Carneiros, bois, e quase que toda uma colheita inteira, além de odres e mais odres de vinho jaziam aos pés da escultura da Deusa, em sua cinzenta, marmórea, estática magnificência. Orou a velha mais experiente:
‘Ó, Vênus, Afrodite, a Bela! Aquela dos olhos de mel, da cintura de nuvens, teus cabelos são ora como os raios que emanam da biga de Apolo, ou como o castanho dos jovens, cheirosos abetos, ou ainda, como os argênteos raios do Astro da Dama Caçadora, irmã do Condutor da Biga! Os teus seios são perfeitos, macios e carnudos, e teus mamilos são como jovens botões de rosas primaveris! O viço de tua pele não tem comparação, e a tua voz é como o canto dos pássaros! Por onde andas, crescem as flores e as ervas de beleza! Ouve o nosso apelo, te imploramos!’
Eis que uma luz dourada, como que uma névoa de ouro em pó surgiu em volta da estátua. E uma voz límpida, de uma beleza sobrenatural ecoou pelo templo:
‘Saudações, maneirosas mortais! Que vem pedir-me com ofertas tão generosas, e palavras tão doces?’
‘Deusa nossa, ouve nosso apelo! As nossas belas filhas morrerão solteiras, nem ter provado de um homem, se Pigmalião, o escultor, não desposar uma delas! Salva nossas famílias, nossa progênitas desta desgraça, ou estaremos para sempre arruinadas!’
A voz macia, agora, tinha um tom de pesar em sua resposta:
‘Sim, minhas veneradoras, eu farei o possível para que ele salve uma de suas filhas. Agora me vou. Mas fiquem certezas, farei uma visita ao Artista, e lhe direi sua proposta!’
‘Sim, Deusa, agradecemos tua condescendência! Infinitos serão nossos agradecimentos se puderes o fazer!’
A noite caiu, e os perfumes das madressilvas, rosas e damas-da-noite iluminavam os cheiros do ar noturno. O som do mar batendo-se às rochas fazia-se ouvir, e o canto dos pássaros noturnos perfumavam ainda mais aquele ar de mistério poético. Uma vela solitária iluminava precariamente a humilde mesa de tábuas de Pigmalião. Um pedaço de pão encaroçado roído pela metade descansava ao lado da lamparina, apagada na falta de óleo. Uma pequena caneca contendo água estava pela metade. Pigmalião ainda terminava de trabalhar um sátiro, o olhar cínico no rosto, a barba curta enfeitando-lhe as faces caprinas. O escultor estava melancólico. Um bloco do mais belo e perfeito Alabastro estava ali à sua frente, e ele contemplava-o, embevecido em sua brutalidade. Não sabia o que esculpir em peça tão bela. Uma luminosidade dourada tomou conta do lugar. Pigmalião, concentrado como estava, não percebeu. Um toque macio, leve de mão feminina em seu ombro lhe deu um susto. Olhou para trás. Lá estava a Deusa, contemplando-o, uma expressão de condescendência no rosto. Ah, que dúvida! A beleza e as maneiras de Vênus, mas o olhar de Pallas! Disse a Deusa, serena:
‘Pigmalião, você tem que se casar. As mães das moças desta ilha me incumbiram de vir até aqui, intimar-lhe ao casamento. Não posso daqui sair sem seu juramento!’
O jovem desatou em lágrimas.
‘Mas Deusa minha, como posso casar-me com mulher que não amo? Como posso dedicar a Vida a alguém com que não quero estar? Só me casaria se pudesse, então, realizar meu sonho!’
‘E que sonho é esse, Artista, protegido meu?’
‘É o de esculpir uma mulher. A forma perfeita da mulher, aquela que ganhará meu coração! Vê aquele bloco de alabastro ali adiante? Então, posa para mim, Deusa minha, Perfeição que veio da espuma dos mares, e casar-me, hei. Meu coração já estará entregue a ela, a minha dama de alabastro, aquela imóvel perfeição estática que já amo, antes mesmo de existir, e o tormento de casar-me com alguém que não amo será muito menor. Por favor, faça-me esta vontade!’
Emocionou-se a Deusa com a força daquelas palavras. Disse:
‘Tudo bem, Pigmalião, aceito sua oferta. Começamos quando?’
‘Já, minha Deusa, já. ’
Despiu-se de seu véu diáfano de seda, então, Vênus, a mais bela das deusas. E Pigmalião começou a trabalhar febrilmente. E apenas a própria Deusa e a Lua foram testemunhas de seu esmero. Trabalhou como o condenado que era. E toda a noite vinha Vênus posar para aquele homem em busca de sua plenitude, que estava, agora, trabalhando tanto em seu maior sonho. Esculpiu-lhe as formas com perfeição, e suas poucas economias usou para comprar placas de marfim, as qual trabalhou, amoleceu e esculpiu na efígie da Deusa, e em todos os seus detalhes, cobrindo a sua estátua com todo aquele marfim. Por fim, o resto de suas economias usou para comprar jóias, as quais usaria para cobrir a estátua quando pronta. Então, numa noite de lua cheia, exatamente sete meses depois de começar seu trabalho, Pigmalião, num grito de triunfo, terminou sua estátua, e cingiu seu belo pescoço com um colar de esmeraldas, e seu corpo desnudo cobriu com mantos de linho e seda. Contemplou-a, seus lábios, sua pele, sua imobilidade. Estava completo seu trabalho. Uma solitária lágrima brotou-lhe do olho. Disse-lhe Vênus:
‘Agora, está findo o trabalho. Haverá de casar-se. ’
Um brilho maníaco luziu nos olhos do escultor. Antes que a Deusa pudesse interrompê-lo, abraçou sua amada estátua, e, carinhosamente, beijou-lhe os frios lábios. Disse, chorando:
‘Não, minha Deusa, não! Eu nasci para o Amor, e aqui está a criatura de meus sonhos. Sou seu Criador, o que a Idealizou. Não me condene, eu lhe imploro! Transforma este meu beijo no mais eterno dos beijos! Torna-me estátua também, tão imóvel, tão perfeito, desprovido de qualquer mobilidade, para que este meu beijo de Amor seja eternamente consumado, e nem as Eras eternas, que se arrastam em suas nuvens do pó de mil cadáveres esquecidos possam separar-nos. Fomos feitos um para o outro, eu lhe imploro!’
Uma solitária lágrima prateada correu no belo rosto da Deusa. Sua voz, pela primeira vez, embargou-se com o prenúncio do choro. Conteve-se. Disse:
‘Criatura teimosa, irritante! Ah, os Artistas e seus infelizes idealismos! Nunca se pode negociar com o Amor, que dura mais que os Deuses, que posso fazer eu? Está além de minhas capacidades! Que seja, então, o Amor desejas, o Amor terás. Eterno, e belo. Juntos, tu e ela permanecereis, mas não imóveis. Teu drama é sincero e belo, e me comove. Aqui, que seja!’
Pigmalião estava de olhos fechados. Seus lábios aguardavam a frialdade da pedra consumar-se. Mas qual foi sua surpresa quando, não o frio de seus lábios, mas o calor nos dela começou a surgir! Abriu os olhos. Sua amada estátua, sua querida, imortal Amada estava tornada em mulher viva. Seu choro, do desespero, passou à alegria. A voz trêmula, balbuciante sibilou:
‘Teu nome, minha Amada, será Galatéia. ’
Ela sorriu-lhe. Seu sorriso era como o nascer do sol, e seus olhos, mais brilhantes que o clamor prateado das estrelas. Sua voz, serena e bela como a Primavera, falou-lhe:
‘E agora, enfim, estamos juntos. ’
E nem o Tempo, nem os Deuses e nem a Eternidade puderam separar aquele Amor.
FINIS