Eclosão
Olhava o navio cruzeiro ancorado, com seus quatro conveses iluminados. Era a coisa mais grandiosa que já vira. Ia embarcar naquela coisa para uma viagem de férias com o marido que naquele momento dava uma coletiva à imprensa, por isso ela caminhava sozinha pelo cais. Uma brisa gelada roçou de leve seus cabelos, instintivamente puxou as fímbrias frontais do casaco aspirando o cheiro do mar, sensação nova para ela que passara a vida inteira no interior, bem distante do litoral.
Sentia-se feliz e apavorada. Bem diferente do marido que não demonstrava aquela alegria sufocante que às vezes a tomava, nem tampouco lhe incomodava o assédio dos fãs e dos repórteres. Completamente à vontade em sua nova fase como se estivera preparado para ela todo o tempo. Ele era mesmo um mistério. Por mais que convivessem e partilhassem maus e bons momentos ela jamais chegaria a conhecê-lo.
Tinham vinte e três anos de casados e dois filhos criados uma moça e um rapaz. Tiveram juntos uma vida de sossegada miséria, ele sempre agindo como se não tivesse a menor ambição. Sujeitou-se a um emprego público que detestava até que os filhos atingiram a maioridade. De natureza alegre e farrista ele tinha uma ampla roda de amigos, mas fazia questão de manter por perto aqueles que como ele valorizavam a vida familiar e o respeito à mulher e aos filhos. Assim não conheceram rotina apesar da pobreza. Tinham sempre um convite para um jantar ou um final de semana num sítio ou coisa parecida. Não tinha vergonha de dizer que não tinha dinheiro para dividir as despesas das farras em família, mas os amigos não o dispensavam por isso como se ele fosse uma peça chave. E era. Tinha um dom natural de divertir as pessoas. Cantava tocava diversos instrumentos, compunha músicas engraçadas e sérias que cantava nas rodas. Normalmente ele se fazia o centro das atenções. No início ela tinha ciúmes. Não de outras mulheres, mas dos amigos, do violão e da timba ou do bongô, dos pensamentos dele.
Tinham gostos diferentes. Ele era apaixonado por espetáculos circenses o que ela detestava. Ela gostava de motociclismo, ele queria recolher todas as motocicletas do mundo e meter fogo. Mas amavam-se.
O que mais a irritava em sua relação com o marido era o fato de ele ser tão expansivo e alegre com os amigos e introspectivo quando em casa com ela. Enfiava a cara nos livros e nos seus blocos de anotações e nem ligava se ela pusesse a casa abaixo. Ela não sabia. Ele estava trabalhando para dar-lhe as alegrias do presente. Vinte anos escrevendo um livro e ela nem sabia. Nos últimos dois anos ele fechou-se no seu mundo de anotações. Abandonou o emprego, entrou para o seu precário escritório, e passava o dia bebendo e digitando no seu maldito computador. Até que um dia ele saiu do que ela chamava de marasmo. Tomou um banho demorado, barbeou-se, perfumou-se e colocou sua melhor roupa como nos velhos tempos. Beijou-a carinhosamente e disse:
_Quero sair com você pela noite. Jantar, tomar um bom vinho e dançar.
_ Uê! O que aconteceu?
_ Uma eclosão.
Ela desistiu de tentar entender, mas foi com ele. Foi a melhor noite de sua vida até então. Seis meses depois ele já era uma celebridade.
Naquele período de reclusão e bebedeira acontecera uma coisa louca. Uma tarde ela o interrompeu, massageando carinhosamente seus ombros tensos. Convidou:
_ Vamos sair hoje?
_ Quero ir ao circo.
Foram. Ela dirigiu porque ele estava sob efeito de álcool. Ela nunca o vira se divertir tanto. Rindo com os palhaços, batia palmas e assoviava. A noite correu bem até que chegou o momento do globo da morte. Quando ele viu os assistentes de picadeiro arrastando o enorme globo sobre a plataforma com rodas, ergueu-se como que impulsionado por molas invisíveis:
_ Vou buscar uma cerveja.
Ela ficou sentada na arquibancada olhando seu número predileto sentindo a raiva se avolumar dentro de si. Como ele era egoísta! Quando ele voltou depois do número, ela levantou-se e saiu calada. Saiu. Entrou no carro, respirou fundo e foi embora o deixando para trás. Em casa sentiu-se péssima. O coração apertado. Uma ponta de remorso. Só sossegou quando ele chegou... De moto taxi.
Agora estava ali sozinha no cais. Ansiosa para que ele chegasse. Deus do céu! Como ela precisava dele! Foi quando chegou um homem com o colete característico dos moto taxistas e ainda sem tirar o capacete entregou-lhe um bilhete. Era a caligrafia do marido: Querida, desculpe! Preciso que venha com esse moço.
Sem pestanejar ela acompanhou o homem. Colocou o capacete que ele lhe ofereceu e montou. Ele conduziu-a pelas ruas movimentadas da cidade litorânea até um aconchegante restaurante onde uma jovem a aguardava na entrada com um lindo buquê de rosas vermelho-rubi, as mais lindas que ela já vira. Recebeu-as e voltou-se para o condutor da motocicleta que acabara tirar o capacete. Dizendo-lhe:
_ Ainda dá tempo de jantarmos.
Fitou-o com os olhos brilhantes.
_ É você?