Febril

- Oi.

Ela diz.

Ela é mais alta do que eu pensava, penso.

- Oi.

Eu largo meu copo e me levanto, contorno a cadeira e beijo seu rosto com a maçã do meu rosto, e ela beija meu rosto com seus lábios rubros, pastosos de tanto batom.

- Senta aí.

Eu digo, e peço mais um copo ao garçom meu amigo, que me olha com malícia.

- E aí?

Pergunto a ela, sem saber que tipo de resposta quero, e sem saber que tipo de resposta pode ser adequada para uma pergunta dessas. Tão abstrata. Tão cheia de entrelinhas. Tão cheia de nadas...

Ela é menos bonita do que eu pensava, penso. E dou um gole no resto de cerveja já morna que jazia no meu copo americano suado e mal-lavado.

Estendo o braço e peço outra garrafa.

Ela parecia ser mais espirituosa, penso.

Ela está visivelmente tímida. Visivelmente embaraçada.

Ela me avisou que isso aconteceria. Ela é sincera.

Ela espera a nova garrafa e seu copo americano com ansiedade.

Eu me entrego à tepidez do meu corpo cansado.

Eu penso nas minhas olheiras fundas e nos meus olhos ardidos.

Penso no dente que me falta à boca.

Tento não pensar no estado febril em que me encontro.

Só quero dormir, e mais nada.

A bebida chega e erguemos os copos, sem saber ao quê brindar.

- Ao dinheiro. - Sugiro.

Ela faz o tipo romântica, o tipo que acha que a vida é muito mais que dinheiro. Se eu propusesse um brinde ao pôr do sol, o tilintar dos copos seria mais estridente.

Tim, tim.

Eu também prefiro o pôr do sol ao dinheiro, mas só tenho tempo de pensar nisso quando durmo.

E nunca consigo me recordar o que sonho.

Só quando tomo remédios para dormir.

Aí eu sonho que há vasos de barro com galos pretos mortos sobre o capô do carro que eu não tenho, com pipocas murchas espalhadas por todo o quintal e cabeças decapitadas de porcos rosados voando à minha volta.

Ela tem as mãos grandes, observo.

Ela esconde as mãos nos bolsos do cardigã quando percebe que as fito com minúcia.

- E aí?

Ela diz, e eu respondo com um sorriso débil.

Não lembro nem do contexto que nos colocou juntos nesta mesa.

Não lembro nem como nos conhecemos.

Sei que foi pela internet.

Eu mal posso esperar para que ela vá ao banheiro: preciso olhar seu traseiro.

Preciso ficar sozinho por alguns minutos contemplando as marcas de batom na borda do copo, enquanto ela arria a calcinha e manda torpedos pra(s) amiga(s).

Ele é legal.

Ele é chato.

Ele é feio.

Ele é bonito.

Tô pra morrer de tédio.

Acho que vai rolar pernoite.

Essas coisas.

- Vou ao banheiro.

Ela diz. Se levanta e se atrapalha com a bolsa e sai, abandonando um copo pela metade, caminhando na direção do tal banheiro - imagino, uma vez que sequer tenho forças para virar o pescoço e avaliar suas ancas.

Não me importo se ela esbarrar num ex-namorado que ainda gosta.

Não me importo se ela esbarrar num estranho e me largar aqui.

Mas ela não faria isso... Afinal, ela veio até aqui por mim.

Deve ter ido ao banheiro sentar na privada com seus jeans nos tornozelos, se perguntar o porquê de estar ali, rumando à embriaguez com alguém que mal conhece e que mal fala.

Ela não teria a deselegância de me deixar à sarjeta.

Ela volta, e é a minha vez de anunciar a ida ao banheiro.

Levanto, meio tonto, com a sensação de ter um torniquete dentro do meu crânio, torcendo meu cérebro como um pano de chão imundo, e dou passadas largas, parcamente ouvindo a celeuma das outras dezenas de mesas e cadeiras ocupadas.

Talvez a privada me sirva como lenitivo.

Sinto que preciso vomitar para me sentir normal.

Sinto que, se vomitar, piorarei.

Enfio os dedos na garganta e sinto as fortes contrações das minhas tripas; abraçado à privada, ao lado de um balde de meio metro cheio de papel sujo de bosta e ranho, eu vomito o pouco que consegui comer no almoço. Assuo um ou dois grãos de arroz, que saem flamejantes direto pro chão sujo. Minha garganta arde com a bílis, sinto o gosto da cerveja, e sinto que vem mais, e me curvo sobre o pedaço de cerâmica como um devoto a um ídolo e arreganho a boca, expelindo as beterrabas raladas e as bruschettas em meio a suco gástrico.

O ar fica mais leve depois que sopro outro grão de arroz pelo nariz.

Me levanto e dou descarga e saio e me olho no espelho, lavando as mãos, me questionando acerca do exato momento onde minha decadência começou a aumentar.

Será que foi a infância fodida?

Será que é a vida adulta fodida?

Será que são as contas chegando?

Será que são os trabalhos por fazer?

Será que é a soma de todos meus desamores?

Às vezes eu só queria não pensar.

Às vezes eu só queria não acordar.

Às vezes eu só queria um coma: ficar lá deitado enquanto tudo vai acontecendo e acordar depois de anos e ver se assim consigo me sentir útil; se consigo me sentir vivo.

Não queria exatamente deixar de existir nesta esfera; queria deixar de existir aqui de uma maneira poética, transcendental, metafísica; ver tudo o que tem lá fora e que foge à compreensão e depois voltar com as boas novas.

Eu queria salvar o mundo, contudo, não consigo nem salvar meu próprio rabo.

Não tem como viver de ilusões e ainda gostar da vida.

Não tem como gostar de ser aquela mangueira louca desesperada cuspindo água aleatoriamente.

Não tem como gostar de sentimentos que são como folhas que recém-saem de impressoras; com aquele calor que queima num segundo e no segundo subseqüente já está extinto.

Volto à mesa.

Algo está fora do controle, penso.

Ela me sorri, sem graça por causa da minha olhada para suas coxas.

Sou apenas um bode tesudo usando uma carapaça de homem desalentado.

Também sou apenas um homem com preguiça de todo esse jogo.

Desse esquete.

Já nem me lembro da última vez que toquei numa mulher...

E aí?

É o que pensamos, sem assunto, enchendo os copos com o final da garrafa, pedindo outra.

Algo está fora do lugar, percebo, e é a minha própria bunda.

Que agora é vizinha da bunda dela, que estava do outro lado da mesa.

Do lado de lá da trincheira.

Agora estamos os dois lado a lado, emparelhados, guerreando sei-lá-o-quê, atirando pro céu só pra ver o sibilo dos projéteis.

Lembro que já foi mais difícil ficar perto de uma mulher atraente - essa apatia não me pertence. No máximo, antes, um embotamento.

Estamos atirando às cegas, apesar do alvo estar na nossa mira, na nossa frente, diante e abaixo dos nossos narizes grandes; narizes assaz aguçados para as reminiscências - aqui, medo da fermentação dos meus tesouros estomacais podendo ser sentida - do cio que paira.

Ela já tem a têmpora no meu ombro direito, e eu tenho meus bíceps murchos em seus cabelos negros, e minha mão em seu ombro, em seu braço, em sua mão, em suas mãos, geladas, grandes e trêmulas.

Temos uma oportunidade que não pode ser perdida.

Temos um momento que não pode ser olvidado.

Temo por uma oportunidade que pode ser perdida.

Temo por um momento que não poderá ser revisitado.

Minha cabeça se inclina num ângulo que propicia o toque dos nossos lábios maltados.

Nossas cabeças se movem no ângulo orbital; nossas cabeças são planetas sugados para dentro do buraco negro que criamos com nossas bocas; somos o nascimento de uma Supernova imorrível; somos o Big Bang dos bons e maus tempos; somos galáxias irmãs fundidas, intensas e tensas e densas demais para dividir o mesmo Espaço; somos a concepção da efemeridade de um Ano-Luz...

Somos tão apenas dois bêbados trocando cuspe na rua mais torpe da cidade mais inóspita do planeta mais pretensioso de todos.

Descendo tal rua de mãos dadas, desviando de zumbis: eis nós.

Cumprindo uma promessa tacitamente assinalada pelo destino.

Prontos - terreno fértil - para as mais inimagináveis mágoas.

Porque é sempre assim: mágoas sobrepondo mágoas.

Sanguessugas substituídos por sanguessugas, que chupam toda a nossa vitalidade e desaparecem, assim como as aranhas fazem com as moscas; pendurados inertes e mortos e sem propósito numa teia invisível e inquebrável.

Trôpegos com pedra portuguesa imunda sob os pés, cambaleantes e inocentes, felizes e enjaulados na prisão que criamos.

Atados à prisão de nós.

Rua abaixo, desaparecendo na bruma negra dos motores ferventes.

15/02/2012

Samiam - El Dorado

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 15/02/2012
Reeditado em 15/02/2012
Código do texto: T3501058
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