Hamilton dos Santos, brasileiro, casado, 53 anos, pai de família: profissão Cidadão
I
Passava das seis horas da manhã quando os oficiais de justiça Carlos Cerqueira e Marcos Seixas chegaram à Rua Direita do bairro da Palestina, na periferia de Salvador.
Estacionaram os seus automóveis não muito longe do número 123 daquela via e se encaminharam sem pressa na direção de duas humildes moradias que naquele momento ainda se achavam completamente às escuras.
A proprietária de uma das casas, a senhora Telma Sueli dos Santos Sena - mulher de uns 40 anos de idade, casada com o senhor Dílson Leandro dos Santos - havia saído momentos antes.
Deixara café coado, leite e alguns pães sobre a pequena mesa de madeira que guarnecia com simplicidade a cozinha da residência. Em seguida se dirigira a pé pelas estreitas e ainda silenciosas ruas e vielas do bairro até o portão de ferro da Escola Municipal da Palestina.
Aquela instituição de ensino fora construída em 1988 e era com muito orgulho que a dona Telma se tornara uma de suas funcionárias. Sua obrigação diária era preparar e servir a merenda escolar para a alegre meninada do primário. Ela fazia aquilo com muita responsabilidade e carinho, pois várias daquelas crianças moravam bem próximas de sua casa e as mães de muitas delas eram vizinhas ou amigas da merendeira.
Dona Telma deixara adormecidos em sua casa os seus sete filhos e o neto que ganhara vinte e seis dias atrás. Na casa ao lado - vizinha da de dona Telma - morava outra mulher e mãe de família, a senhora Ana Célia Gomes Conceição. Era casada com Edmilson Neves, cunhado de dona Telma Sueli. Além do casal, habitava aquele outro lar a filha destes, a mãe e um irmão de Edmilson.
As duas casas - assim como praticamente a maior parte das demais moradias que ocupavam aquele bairro pobre da periferia de Salvador – haviam sido construídas pelos próprios moradores em regime de cooperação familiar ou em mutirão e com a ajuda sempre bem vinda da vizinhança e dos amigos.
Assim como em outras localidades, era comum que uns colaborassem com os outros num determinado momento para que posteriormente pudessem igualmente se valer da mesma espécie de colaboração. Aplicavam-se ali os dizeres de um conhecido ditado popular: “quem dá leva saco para ganhar”.
As habitações eram quase sempre constituídas por casas pequenas, de no máximo dois ou três cômodos. Estes se apresentavam sempre mal acabados ou numa eterna fase de acabamento.
As paredes externas e internas permaneciam muitas vezes sem pintura ou emassamento, sendo apenas salpicadas por cal branca e as divisas entre umas e outras moradias eram demarcadas por rudimentares cercas de madeira ou telas enegrecidas de arame como nas cidadezinhas do interior, de onde se deslocara grande parte daquela gente.
II
O bairro da Palestina se localiza nos limites da cidade de Salvador com o município de Simões Filho, por volta do quilômetro quatorze da BR 324.
Sua população atual é superior a vinte e cinco mil habitantes extremamente mal servidos por qualquer tipo de infra-estrutura básica. Lá praticamente inexiste saneamento urbano, as ruas são de terra batida e o asfalto é coisa que ainda se encontra a quilômetros de distância do bairro.
Além disso, podia-se ver em muitas daquelas ruas o esgoto correndo a céu aberto e trazendo uma série de riscos e malefícios à saúde e à vida das crianças e dos adultos do bairro.
Era por esse motivo que em diversos lugares a própria população havia providenciado a instalação de certo tipo de “ponte” constituída por taboas ou ripas de madeira que eram dispostas sobre os terrenos alagados ou as ruas onde a água podre escorria.
Em relação ao atendimento medico em postos de saúde e à aquisição de medicamentos nas farmácias – necessidades vitais tão importantes no dia-a-dia de qualquer cidadão – eram encontrados apenas em Valéria, um bairro que faz divisa com o da Palestina.
O nome Palestina surgira logo depois que fora implantada no bairro a primeira linha de ônibus. Na época tinham sido propostas diversas denominações, mas fora a “Palestina” que acabara gozando de maior simpatia e apreço tanto entre os habitantes mais antigos quanto entre os recém chegados. Os primeiros haviam se instalado ali por volta de 1960.
Fora numa assembléia realizada na Escolinha do Mobral - através de um democrático processo de votação - que restou aprovado por toda a gente o nome do bairro.
Naquela época os defensores da referida designação pretenderam homenagear no nome do bairro o território e o povo da Palestina, assim como a sua longa e difícil luta pela terra.
Os habitantes do bairro baiano que se formara numa das margens da capital da Bahia se sentiam um pouco como aquele distante povo do Oriente Médio. Eles percebiam na sua luta os mesmos interesses e ideais presentes naquela população que habitava a costa oriental do Mar Mediterrâneo e as margens do Rio Jordão.
III
Noutro ponto da cidade de Salvador, numa casa tão humilde quanto aquelas construídas com extrema dificuldade pelas duas mulheres e suas respectivas famílias, despertara o operador de máquinas Hamilton dos Santos por volta das cinco horas da manhã.
Brasileiro, com 53 anos de idade, casado com dona Marilene Silva Conceição e pai de nove filhos, morava aquele trabalhador numa pequenina casa de dois cômodos localizada num outro bairro da periferia de Salvador.
Havia acordado um pouco temeroso e confuso naquele dia. Um sonho ruim produzira nele fortes sentimentos de tristeza. Sua mulher levantara pouco antes e lhe preparara um café forte e reforçado com pão e manteiga.
Dirigir tratores e operar outras máquinas como aquela era com certeza um trabalho por demais desgastante e cansativo e ela não admitiria que o seu homem saísse de casa sem se alimentar corretamente.
Em seguida o tratorista se encaminhara até a empresa na qual laborava, a JLD Transportes e Terraplanagem. Entre outros serviços, essa firma realizava obras de terraplanagem e locação de máquinas como carregadeiras, tratores e retroescavadeiras.
Há muitos anos que o seu Hamilton trabalhava naquela empresa. Sua função ali era operar todos os tipos de máquinas, desde os menores tratores até as descomunais e poderosas retroescavadeiras e pás mecânicas.
Ele já lidava com aquele tipo de equipamento há mais de 30 anos e sentia sempre o maior orgulho de si quando se via por detrás dos pára-brisas de uma máquina daquelas.
Cada dia em que passava naquela empresa representava para ele e para a sua família o alimento colocado dentro de casa com muita dignidade, responsabilidade e orgulho.
Naquela manhã do dia 02 de maio do ano de 1993, logo que se apresentou na sede da empresa, o seu Hamilton recebeu de seu patrão a ordem de ir derrubar umas casas velhas e vazias que supostamente se encontravam ameaçadas de desabamento no distante bairro da Palestina.
E foi o que fez. Montou no assento do “Major” - que era como fora apelidada pelos operadores uma das retroescavadeiras pertencentes à empresa de terraplanagem - e se pôs a caminho na direção do local em que deveria prestar o serviço.
IV
Enquanto o seu Hamilton se encontrava a meio caminho do seu destino, já se achavam na Palestina os dois oficiais de justiça designados pelo Fórum de Salvador para proceder ao cumprimento do mandado de demolição das casas de dona Telma e de dona Ana Célia e à reintegração de posse do terreno onde elas haviam sido construídas, tudo conforme requerido pelo empresário e engenheiro Adolfo Stelmach.
A ordem judicial havia sido expedida dias antes pelo juiz Cláudio Fernandes de Oliveira, titular da 12ª. Vara de Feitos Cíveis de Salvador.
Para o bom andamento dos trabalhos e o correto cumprimento de suas obrigações, os oficiais de justiça haviam solicitado naquela empreitada o acompanhamento de nada menos do que seis viaturas da 31ª. Companhia da Polícia Militar e um pequeno grupamento de soldados composto por cerca de 20 homens armados com revólveres, escopetas e fuzis, todos comandados pelo Major Castro.
Deveriam os policiais prestar segurança aos dois competentes funcionários do Fórum e à população local, colaborando dentro de suas respectivas funções para o completo e fiel cumprimento da ordem judicial.
Conforme constava no processo de número 140.93.3869087, o juízo decidira ser o engenheiro Stelmach o legítimo proprietário do terreno onde Telma Sueli e Ana Célia haviam construído suas casas e o mandado de reintegração de posse se referia à pequena parte de uma área estimada em 7.215 m² que se limitava com a BR 324, a antiga Estrada do Boiadeiro e os terrenos de Góes Araújo Agro Pastoril S/A e Afonso Temporal.
O mandado determinava a completa demolição da casa construída pela dona Telma e de parte do imóvel pertencente à senhora Ana Célia Gomes Conceição. Fora, entretanto, contra Ana Célia que a presente ação fora impetrada.
V
Não demorou muito para que aquele pedaço de rua localizado diante da casa de número 123 da Rua Direita ficasse completamente tomado por grande quantidade de moradores e vizinhos.
Em comunidades como aquela tanto as notícias boas quanto as ruins acabam se espalhando como um rastilho de pólvora: uma pessoa conta para outra que repassa para outra que espalha para uma quarta que leva adiante e até que todos os indivíduos da localidade fiquem cientes dos acontecimentos. E os acontecimentos naquele caso eram a terrível possibilidade de demolição das casas daquelas duas mulheres.
Mas antes que isso acontecesse, o dono de um mercadinho local mandara que o filho mais velho fosse correndo até a escola municipal para avisar a dona Telma Sueli acerca da presença dos oficiais de justiça e da Polícia Militar, bem como do objetivo dos mesmos em sua ida ao bairro naquela manhã.
Os vizinhos, ao mesmo tempo em que buscavam dialogar com os oficiais de justiça no intuito de esclarecer tudo o que estava acontecendo, tentavam também atrasar ao menos por algum tempo o andamento dos trabalhos daqueles homens, até a chegada ao local da dona da casa ou do marido desta.
Mal havia passado dez minutos, portanto, quando a mulher do senhor Dílson Leandro chegou esbaforida e desesperada ao local. A primeira cena que viu foram os filhos bastante nervosos fora da casa que viera construindo com tanta dificuldade e sacrifício.
A filha mais velha de dona Telma segurava o recém-nascido entre os braços. Mas eram os filhos do meio que pareciam estar mais assustados com tudo aquilo e sem entender direito o que de fato estava se passando.
Então a dona Telma não conseguiu conter os gritos e as lágrimas ao ver suas sete crianças na rua. Imaginara imediatamente que os filhos passariam a próxima noite ao relento, sem guarida que os aquecesse e os fizesse sonhar em paz.
- Meu Deus, não pode - disse ela. Gente: isso é um desespero na minha vida. Eu tenho filhos pra criar, não podem entregar minha casa não! Gente, tem coração!
Parou por um segundo e levou uma das mãos ao peito. Parecera naquele momento que ela iria talvez cair desmaiada no chão. Mas era uma mulher forte e não se deixaria abater tão rapidamente.
Assim, continuou:
- Minha vida está toda ali dentro, gente! Eu não sou ladrona, não roubei nada! Querem derrubar o que é meu, gritava amparada pelos filhos que também se desesperavam diante do choro angustiado da mãe.
Alguns vizinhos tentavam contê-la e apoiá-la.
- Não pode... Não pode, meu Deus, não pode! Aonde é que os meus filhos vão passar a noite? Não pode, repetia sem parar...
Em seguida a dona Telma caminhou até a filha mais velha e pegou no colo o netinho que lhe nascera há vinte e seis dias. Já não agüentando, sentou-se desesperada no chão de terra diante da casa.
A discussão entre as famílias, os oficiais de justiça e os representantes da comunidade se estendeu e se arrastou durante toda a manhã e parte da tarde daquele dia. A todo o momento se dirigiam mais e mais pessoas da comunidade até o número 123 da Rua Direita.
Durante todo aquele tempo ouviram-se muitos lamentos, gritos, orações e o choro desesperado de mulheres e crianças. Em certos momentos as sirenes das viaturas da Polícia Militar eram ouvidas quando partiam rumo ao posto de saúde do bairro de Valeria. Transportavam pessoas desmaiadas ou que se sentiram mal durante o dia.
VI
A poucos metros dali, alojado confortavelmente dentro de uma viatura da Polícia Militar, encontrava-se o engenheiro Adolfo Stelmach. Ao contrário da maior parte das pessoas ali presentes, vestia-se o homem com roupas novas e bem cuidadas e trazia no rosto uns óculos com lentes escuras que o protegiam do Sol e dos muitos olhares de indignação.
Segundo ele, já haviam sido feitas várias tentativas de acordo com as famílias despejadas, mas até o momento nada fora efetivado de concreto:
- Já lhes fiz muitas propostas, explicava o homem. Já perguntei, por exemplo, em quantos meses eles teriam condições de me pagar pelo terreno: em vinte, trinta, quarenta, cinqüenta meses?! Mas eles não têm dinheiro para negociar. Não tem dinheiro nenhum. Então como é que vão negociar?
VII
Mais próximos das duas casas, achavam-se os senhores Edmilson Neves, Dílson Leandro e um vizinho das famílias, o pedreiro Antônio Evaristo.
Segundo o Edmilson, aquele terreno já lhes pertencia por direito em face da usucapião. Ainda que as casas houvessem sido construídas mais recentemente, o terreno onde as mesmas se achavam já se encontrava cercado pelas famílias há mais de 10 anos:
- Estamos reivindicando algo que é nosso, insistia o homem – algo que foi ganho por usucapião por todas estas famílias que aqui estão ao redor. E estamos tendo que pagar, sem poder, por uma coisa que já é nossa!
Já o senhor Dílson estava completamente desesperado:
- Levei seis anos para construir essa casa. Seis anos! Aí está toda a economia que consegui juntar durante esse tempo. Meu Deus, não posso perder a minha casa, não posso mesmo!
Mesmo sem perceber, Dílson pedia ajuda a todas as pessoas que encontrava em sua frente. Até ao Major Castro ele solicitara colaboração, ainda que o policial militar tentasse inutilmente explicar ao homem que estava ali apenas cumprindo ordens.
Em seguida foi a vez do pedreiro Antônio Evaristo abrir a boca:
- É um absurdo! Nós todos conhecemos o engenheiro Adolfo Stelmach. Ele era, inclusive, conhecido e amigo da mãe de dona Telma Sueli, a senhora Aniceta. É desumano que ele queira destruir agora o único bem que essas famílias conseguiram construir! E ele nem precisa desse terreno, finalizou.
VIII
Com a chegada do senhor Hamilton e da retroescavadeira ao local, os oficiais de justiça se puseram finalmente a ler para todos os presentes – e em especial para aquelas duas famílias desalojadas – a ordem judicial.
Fora então que - após oito ou nove horas de muita luta, tensão, discussão, bate-bocas e corre-corres dos oficiais de justiça e telefonemas dos advogados de ambas as partes na tentativa ou de reverter ou de fazer cumprir de uma vez por todas a ordem judicial - os oficiais de justiça se dirigiram ao tratorista Hamilton e solicitaram que ele subisse na retroescavadeira e desse início ao trabalho a que fora contratado.
Assim que se sentou na cadeira do “Major”, Hamilton dos Santos levou mecanicamente uma das mãos até a ignição da retroescavadeira. Iria iniciar a demolição pela casa de número 123.
Suas mãos, no entanto, tremiam bastante e não se apresentaram o suficientemente firmes para dar a partida no veículo. Elas pareciam ter criado vida própria e se recusavam a prosseguir naquele intento.
Todo o corpo do senhor Hamilton tremia e a cada momento ele empalidecia mais e mais. Sob os olhares determinados dos dois oficiais de Justiça e a pressão exercida pela presença dos soldados da Polícia Militar, o tratorista Hamilton dos Santos não conseguiu engatar a primeira marcha e nem colocar o veículo em movimento.
A retroescavadeira soltara uns chiados fortes e um estrondo que levou o neto de dona Telma a acordar e a recomeçar o seu choro sentido. A própria avó da criança se pusera mais uma vez a chorar e a lastimar a sua terrível situação:
- Não pode, meu Deus, não pode – repetia ela insistentemente.
Foi então nesse momento que o senhor Hamilton e todos os outros homens e mulheres presentes naquele local começaram a ouvir outra espécie de som. Saía aquele barulho ensurdecedor de dezenas de bocas e da indignação daquelas duas famílias e de seus muitos vizinhos e amigos:
- Pare... Pare... Pare...
Aquilo estancava durante um ou dois segundos para recomeçar mais forte a seguir:
- Pare... Pare... Pare...
IX
Diante daquela multidão impondo a palavra "pare" e de uma família desesperada por estar sendo despejada, o senhor Hamilton só conseguiu dizer o seguinte:
- Eu não posso fazer isso. Não posso fazer uma coisa dessas...
Aconteceu então o que ninguém esperava. Aquele homem simples, aquele tratorista pobre que viera de longe para efetivar o serviço determinado pela Justiça, começou a chorar.
Empalidecido, trêmulo e transtornado, o operador de máquinas apenas silencia e chora. Procura secar as lágrimas no pano surrado da sua camiseta de trabalhador brasileiro. Em certos momentos retira nervosamente e torna a colocar o seu boné azul sobre a cabeça abatida.
- Eu não posso fazer isso – tentou se explicar novamente – não é direito. Isso não é direito!
Em seguida desligou o veículo e desceu vagarosamente.
- Não posso fazer isso – repetira uma terceira vez assim que firmara os pés no solo firme - sou um pai de família, tenho nove filhos. Isso poderia estar acontecendo comigo e eu não acho certo. Não é direito! Não é direito e não é certo! Eu cumpro a lei, mas não consigo fazer esse trabalho! Está além das minhas forças e das minhas possibilidades. Não posso derrubar a casa de um pai de família e de um trabalhador como eu.
Nesse momento, entretanto, o tratorista se viu diretamente ameaçado por um dos oficiais de justiça:
- Se o senhor não demolir a casa, vou mandar lhe prender - afirmara o oficial Carlos Cerqueira.
X
Toda a fragilidade e a emoção do operador de máquina acabaram comovendo os presentes. O forte esquema policial trazido para ajudar a fazer cumprir o mandado de reintegração de posse expedido pelo juiz punha-se agora a tentar convencer o seu Hamilton a concluir o que fora contratado para fazer.
Um dos policiais chegara praticamente a pedir que o seu Hamilton terminasse o que viera fazer ali. O Major Castro se dirige ao tratorista e, com uma das mãos apoiando o seu ombro esquerdo, diz a ele:
- Você está agora cumprindo uma determinação judicial. Se o senhor se recusar a cumprir e se o oficial de Justiça lhe der voz de prisão, eu vou ter que acatar. Eu sinto muito, seu Hamilton! Endureça o seu coração e cumpra a ordem judicial! O senhor vai ajudar a gente e vai ajudar ao senhor mesmo e a sua família!
Diante daquelas palavras o tratorista conseguiu apenas abanar tristemente a cabeça de um lado para o outro. O oficial de justiça então se aproximou do operador de máquinas e anunciou para ele e para quem mais quisesse ouvir:
- Este homem se nega a executar o serviço. Em conseqüência, está obstruindo a ação da Justiça e, em face disso, determino que seja imediatamente preso em flagrante delito!
XI
Ameaçado de prisão, seu Hamilton subiu uma segunda vez na carroceria da retroescavadeira. Suas pernas estavam bambas e por um momento e ele teve receio de cair dali e se machucar.
Hamilton tenta novamente ligar a máquina, mas não consegue. Volta a chorar e a secar as lágrimas em sua roupa de trabalhador.
Passando mal, o tratorista torna a descer da retroescavadeira em que trabalhava. Para isso, entretanto, acabou necessitando da ajuda de alguns policiais.
- Tenho pressão alta e problemas no coração, disse ele com a voz baixa e entristecida.
Seu Hamilton não conseguira endurecer o coração, nem o peito e nem a alma. E o pior é que ele, o coração do homem, acabara mesmo fora se amolecendo de vez.
Em choque e com muitos problemas de saúde, Hamilton foi conduzido rapidamente numa das viaturas da Polícia Militar até o Posto de Saúde do bairro vizinho.
Decerto que ele sabia perfeitamente o custo de cada um dos tijolos e dos sacos de cimento utilizados na construção daquelas casas. Ele conhecia também o valor do esforço e de cada gota de suor despejada sobre a argamassa naquelas obras. Decerto que igualmente não duvidava de que amanhã poderia ser ele o despejado e sua a casa a ser demolida por outro tratorista.
E por isso não o fez. E por isso se recusou a fazer o serviço e tornaria a se recusar quantas vezes necessárias fosse.
O seu Hamilton desconhecia completamente o significado de termos e palavras como desobediência civil ou democracia e não mantinha nenhuma intenção de se tornar um herói.
Naquele momento ele só não admitiria ser dele a mão que poria abaixo as casas daquelas duas famílias desesperadas. Se assim o fizesse – sabia ele perfeitamente disso – se assim o fizesse não conseguiria dormir em paz na noite seguinte e em nenhuma das outras noites que a sucederiam.
Teria de carregar consigo - e para todo o sempre - aquele peso: a visão dos olhares famintos e cansados de todas aquelas crianças e dos olhares de desespero e aflição dos adultos, pais e mães de família despejados e sem um lar que os aquecesse e os fizesse adormecer com segurança no final daquele dia.
XII
Minutos depois que o senhor Hamilton saíra conduzido pela viatura policial, um segundo tratorista fora contatado pelos oficiais de justiça no objetivo de concluírem o serviço que lhes fora determinado. Mas também esse segundo operador de máquinas se recusara a cumprir as determinações constantes da ordem judicial.
Pouco depois fora a vez de um dos sócios-proprietários da empresa JLD mandar recolher a retroescavadeira. Segundo ele, se lhe tivesse sido comunicado que a máquina seria utilizada com aquela finalidade, teria se recusado prontamente a alugá-la.
Passava das dezoito horas quando as pessoas começaram vagarosamente a se dispersar daquela autêntica praça de guerra: guerra de nervos e guerra do capital e da propriedade privada contra o trabalho.
Os oficiais de justiça, a polícia e toda a comunidade presente havia permanecido reunida por cerca de doze horas diante da casa de número 123 da Rua Direita.
Aquela batalha durara nada menos do que a metade de um dia. Mas a grande vitória havia sido o fato de não terem presenciado a demolição das casas. As famílias haviam ganhado mais uma noite de sono em seus respectivos lares.
Para alguns aquilo poderia até parecer pouco. Mas não para aquelas pessoas que quase tiveram suas casas derrubadas. Elas passaram todo o restante daquela noite com o pensamento em Deus e no desejo de que as coisas se resolvessem da melhor forma possível no dia seguinte. No entanto, havia o receio de que tudo voltasse a acontecer de novo.
Por aquele fim de tarde, entretanto, os oficiais de justiça haviam definitivamente encerrado o cumprimento da diligência. Tiveram que suspender a execução da mesma tanto por falta de equipamento técnico quanto pela ausência de operadores de máquinas, ficando por enquanto adiada a demolição das casas e a reintegração de posse do terreno.
Os oficiais ainda relataram ao juiz da 12ª. Vara de Feitos Cíveis da Cidade de Salvador a respeito de todos os fatos ocorridos no bairro da Palestina naquele dia 02 de maio de 1993. Terminavam se colocando respeitosamente no aguardo de novas determinações do juízo.
A última notícia daquele dia: o oficial de justiça que havia determinado a prisão do senhor Hamilton resolvera revogar a mesma. As circunstâncias do caso haviam extrapolado em muito os níveis de uma simples diligência judicial, promovendo um desfecho e um destaque inesperados nos acontecimentos e em referência à pessoa do tratorista.
XIII
A história do senhor Hamilton se espalhou rapidamente por todo o Brasil.
Na manhã do dia seguinte uma grande rede de televisão brasileira transmitiu longa reportagem na qual o senhor Hamilton do Santos era apresentado na posição de um “herói brasileiro”.
Ainda naquele mesmo dia fora efetivada uma moção em homenagem ao tratorista que se recusara a por abaixo os lares das duas famílias residentes na periferia de Salvador. Fora a Moção de no. 467/2003, de louvor ao senhor Hamilton dos Santos, tratorista baiano, autoria do deputado Paulo Ramos.
XIV
Dezessete dias depois – em dezenove de maio de 1993 - a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) prestou uma homenagem ao tratorista Hamilton dos Santos. A solenidade aconteceu na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo e contou com a presença do Ministro da Justiça.
Na solenidade, Hamilton dos Santos recebeu uma placa em reconhecimento a sua coragem, sua ética e respeito aos direitos humanos.
Segundo o presidente da OAB, Dr. Rubens Approbato Machado, o ato do senhor Hamilton não havia sido um ato de rebeldia, mas...
- ...mas uma demonstração prática de cidadania da qual devemos todos nos orgulhar. Diariamente ouvimos falar de práticas de desrespeito aos direitos humanos, mas o que fazemos, no nosso cotidiano, para que o Brasil seja um país mais justo? O senhor Hamilton, com esse gesto, nos mostrou como fazer!
XV
Um ano depois daqueles acontecimentos, Hamilton dos Santos voltaria ao bairro da Palestina.
Fora até lá para receber nova homenagem que aconteceria no Dia Mundial do Cidadão. Naquele ano as solenidades desta data festiva foram comemoradas no dia 02 de maio, em referência ao gesto praticado pelo tratorista um ano antes.
Durante a solenidade a senhora Telma Sueli informara que as escrituras das propriedades das dez famílias que haviam sido beneficiadas pela “desobediência solidária” de seu Hamilton, ainda se encontravam paradas na Prefeitura Municipal de Salvador.
Depois do enfoque dado pela mídia televisiva e jornalística do país naqueles primeiros dias após os acontecimentos no bairro da Palestina, a Prefeitura se dispusera a ressarcir os proprietários daqueles terrenos e a transferir a propriedade dos mesmos para todas as famílias que haviam construído suas casas naquele local.
Até poucos dias atrás, porém – segundo as palavras da senhora Telma Sueli - as escrituras de propriedade ainda não tinham ficado prontas e os funcionários do órgão municipal executivo informavam que as mesmas seriam entregues conjuntamente aos moradores assim que todas estivessem concluídas.
XVI
Aquele dia de festas cujo objetivo maior era motivar reflexões sobre o tema da cidadania, fora a última vez em que o tratorista Hamilton se encontraria com a senhora Telma Sueli. Desde então ninguém mais ouviu falar dele. Voltara, talvez, para a sua vida de herói anônimo.
É provável que esteja simplesmente manobrando um trator ou uma retroescavadeira em algumas das muitas ruas e vielas da cidade de Salvador, cumprindo a sua sina de trabalhador e de cidadão brasileiro.
Os heróis – os verdadeiros heróis brasileiros – se encontram mesmo por aí nas ruas ou em suas casas, nas fábricas e lavouras, nas muitas vielas que cortam e aprofundam este país verde-amarelo. Eles não precisam se apresentar semanalmente na mídia para que sejam lembrados ou reverenciados.
Eles se acham inscritos e guardados – e muito bem resguardados, aliás - dentro do peito e do coração de cada um de nós. E muitas vezes são suficientes um movimento breve ou um simples sinal para que voltem a nascer e a fazer cumprir os seus difíceis destinos.
Nesses momentos a vida humana volta então a brilhar e a se erguer como uma extensa construção: são momentos que se vão levantando, se sobrepondo e se impondo uns sobre os outros.
A presente história versou sobre um desses instantes de luz, um momento único na vida de seu Hamilton e da Palestina, um bairro da periferia de Salvador. Buscou-se registrar aqui os fatos e os acontecimentos que se dispuseram em torno da figura desse homem que soube como poucos ouvir as verdades guardadas em seu coração.
Eis, portanto, um momento da vida de um homem de 53 anos, casado e pai de família. Era tratorista, mas sua profissão será sempre a de ser cidadão brasileiro.