Miraflor

MIRAFLOR

Numa cidadezinha do interior de Minas Gerais de nome Miraflor, a vida transcorria de modo comum, comum demais. Miraflor tinha este nome porque havia lá muitas qualidades de flores, palmas, antúlios, margaridas, azaléias, rosas... O verde daquele lugar parecia um tapete todo coberto de grama e árvores mais verdes que o próprio verde. As montanhas torneavam a cidade. Na época do frio, caia, no lugar, uma neblina paulistana. Mesmo assim as flores não deixavam de nascer e o verde de transparecer. Sua beleza simplesmente nascida da natureza parecia um milagre.

As pessoas que lá moravam, no entanto, eram muito diferentes. Não formavam uma comunidade. Elas viviam em guetos. Pobre com pobre. Rico com rico. Branco com branco, negro com negro, operário com operário, empresário com empresário, político com político.

Em Miraflor era fácil se apaixonar. Lá, a natureza inspira romance. No entanto, os namoros deviam ser entre as pessoas da mesma classe e da mesma raça. Mas, um dia Selma conheceu Fábio. Selma de cor negra e operária. Fábio de cor branca e um de seus chefes.

Selma parava para vê-lo chegar. Sentia esse sentimento invadir-lhe a alma. Sabia-o proibido. Mas o amor lhe tomava a alma, era como a natureza de um rio correndo suas águas para um lugar que nunca se vê chegar, mas se sabe que vai chegar. A operária via o moço como destino marcado. Quantas vezes ela não tentara fugir daquele homem? Esquecê-lo, esquecê-lo... ela queria demais. Porém, o sentimento que vivia estava além da compreensão física, era transcendental, tinha certeza. Ela o via, sua memória repetia o vulto da imagem. O vulto tomava formas, aparecia em preto e branco, em cores. Desde que se apaixonara por Fábio, Selma sentia o porquê da vida. Ela tinha uma razão. A razão do amor a elevava para além das coisas mundanas. O seu espírito se alimentava de serenidade. Já que toda a irracionalidade da emoção de amar ela transformava em seu íntimo: transcendia, ela pensava confiante.

A administração da fábrica preparava uma festa de natal para todos os funcionários. Selma sabia, então, que olharia Fábio de perto e poderia, quem sabe, até falar-lhe mais demoradamente. Aqueles cumprimentos rápidos ou ordens que ele lhe dirigia poderiam se transformar. Ela sentia isso como uma premonição. O dia havia chegado. Estaria com Fábio.

Gastou muito de suas economias para tornar-se mais bonita. Comprou um belo vestido que desenhava seu corpo, num desenho de estilista. Suas sandálias eram altas e elegantes, delineando seus pés. A maquiagem realçou seus olhos e sua tez negra, dando-lhe charme e brilho raros.

Quando a moça entrou na festa, foi Fábio a primeira pessoa que viu. Ele a olhava com muito interesse, como se tivesse sido flechado de surpresa pela beleza negra daquela mulher exuberante. Os ritos da festa se iniciaram. Os olhos de Selma e Fábio se prenderam naquele grande salão. Quando os convidados começaram a dançar, Fábio a chamou para dançar também. Que sonho! Selma não cria. As faces dos dois se tocavam e os corpos rodopiavam. Eles deslizavam no ritmo do que sentiam. Selma quase caiu de seus braços, tamanho era o frenesi da dança. Todos olhavam e comentavam: “Fábio com uma operária negra que vergonha! ”. Os dois, alheios, giravam. Ora de maneira voraz, ora na calmaria dos que se conhecem mansamente na antítese dos movimentos.

Sentaram para tomar um drinque. Fábio lhe perguntou:

– Selma, desculpe-me, mas eu não havia prestado atenção em você. É linda e tão especial. Você se escondia para que eu não a visse sempre?

-Obrigada, Fábio. Não, eu não me escondia. Estava aqui na fábrica. Onde você estava que não me via olhando você?

–É verdade mesmo, você me olhava? Meu Deus, como fui cego! Deixe-me olhá-la, preciso lhe ver muito. Será que assim posso me redimir?

-Imagine, Fábio. Você já reparou que estamos sendo um escândalo aqui? Eu sou uma operária e negra. Sabe o que isso significa?

- Para mim não importam os outros. Importa-me você e estou adorando lhe descobrir.

Continuaram conversando durante o tempo que ficaram na festa. Ao irem embora, com muito cuidado Fábio tocou o queixo de Selma e pediu-lhe um beijo. Era impossível negar aquilo que tanto sonhara. Aquele seria seu beijo de amor. E ao ser beijada lembrou-se de seu destino predestinado ao de Fábio. Não teve medo dos preconceitos. Afinal Somos filhos da África, pensou.

Passaram a se ver todos os dias. Na fábrica, a pressão sofrida por Fábio foi imensa. Sua família era terminantemente contra aquele relacionamento. Os conflitos aumentavam a cada dia, pois as pessoas percebiam que os dois realmente se amavam. Fábio foi rebaixado de posto na fábrica. Era diretor e passou a ser chefe de setor. Selma foi mandada embora. Mas, gostava de fotografias. Tinha uma máquina profissional ganhada de um irmão com melhor situação de vida. Aí ela passou a tirar fotos em casamentos e festas. Contraditoriamente as pessoas a contratavam. Talvez já cedendo ao sentido da vida que é mais vital na transparência dos sentimentos.

Assim enfrentando todos os problemas, Selma e Fábio continuaram a delicadeza daquele amor. A cidade tão bela haveria de aprender com eles que as cores da pele, nem o status social definem os sentimentos que merecem vingar o sentido da vida. Eles estavam semeando novas qualidades de verdes e de flores em Miraflor.

Neusa Azevedo
Enviado por Neusa Azevedo em 31/01/2012
Reeditado em 02/02/2012
Código do texto: T3472905