Aquele casal e a grande dama

Aquele casal. Quanto não foi dito sobre aquele casal. Não. Eles não passariam despercebidos em lugar algum, nem havia quem duvidasse do amor deles. Aquele casal...

E a senhora alemã, muito gorda e muito branca adentrou o recinto com dificuldade. A distinta senhora, a tal viúva daquele ilustre fulano de tal. Aquela senhora que na juventude passeara pelos salões da cidade-corte sua elegante ascendência ariana. A senhora cujas jóias reluziam na imaginação de todo falsário metido a joalheiro. A senhora que muitos diziam estar morta ou internada numa sofisticada clínica para idosos no sul da França.

Cá estava ela, apesar dos quase cem anos, ainda bela, exibindo em meio às rugas históricas, os graúdos olhos azuis que encantaram o terceiro Reich. Ela, o mito dos livros de história, a personagem dos documentários internacionais. Aqui estava ela, num distrito policial qualquer da cidade maravilhosa.

Vinha acompanhada de sua intérprete que também era sua neta. E, apesar da rouquidão trazida pelo tempo,iniciou um relato firme acerca do incidente no Baixo Leblon. Sua voz seca, num alemão já fora de moda, foi pontuando os últimos acontecimentos. Atrás dela, vinha a voz fresca da neta, num carioquês típico de um Rio de Janeiro zona sul. E esse dueto germano-brasileiro era acompanhado bem de perto pelos ágeis dedos do escrivão. O tiquetaquear ao fundo daquela alternância de vozes em grave e agudo, por alguns segundos, fez o delegado viajar no tempo. Mas, a última frase da grande senhora o trouxe de volta instantaneamente: “Eles se amavam profundamente e seriam incapazes de machucarem um ao outro.”

Meses antes de tudo acontecer, lá estava o casal circulando agarradinho pelas ruas do bairro. Como jovens eram, comportavam-se no ritmo de seu tempo. Riam, falavam, beijavam, acariciavam-se explicitamente. Tudo ao mesmo tempo. Não havia quem não os invejasse, quem não desejasse viver um amor assim. Os maledicentes, os arrogantes, os mal amados, os ressentidos e outros iguais eram os únicos que viravam os olhos para o casal, mas mesmo assim, lá no fundo de suas pequenas almas desalmadas havia um desejo oculto de serem salvos de sua insignificância por um amor daquele.

Foram vistos pela última vez entrando no prédio onde agora ela morava sozinha. Apenas dois quarteirões daquele onde viveram juntos, antes.

É, aquele casal também tinha lá as suas rusgas. E que rusgas. Eram famosas as discussões entre eles, os exageros no falar, os impropérios ditos mutuamente, os empurrões e solavancos que acompanhavam as brigas dantescas que faziam voar pelos ares as louças, os cristais e o parco mobiliário da casa. E bastava certa divergência de opinião, uma provocaçãozinha política, uma piada inadequada para a casa cair, literalmente. E mesmo em tempos de lei Maria da Penha, era difícil para quem os conhecia associar toda aquela dramaturgia à violência estampada nas folhas sujas de jornal.

Depois vinham as reconciliações. Não menos pomposas. Aquele casal não economizava na proporção e na explicitude do afeto pós-guerra. Acenavam a bandeira da paz de forma grandiloquente, esvaziavam as floriculturas da cidade, resgatavam a poesia perdida, o cancioneiro ultrapassado. E o faziam com a espontaneidade que lhes era peculiar.

Porém, naquela madrugada que se seguiu à entrada deles no prédio, o que se viu foi uma movimentação inusitada à cena cotidiana. Uma ambulância ocupava a entrada da garagem enquanto enfermeiros deslocavam equipamentos para urgência médica. Tempo depois, o som da sirene misturava-se às luzes ininterruptas e o automóvel saía em disparada pelas ruas do Leblon.

Soube-se que o paciente era ela, para desespero dele. Uns e outros falavam de um ferimento na cabeça, comentavam sobre um possível trauma e logo o disse-que-disse virou inquérito policial, notícia de revista e programa de TV. Ele era suspeito de agressão e ela estava em coma, praticamente entre a vida e a morte.

Ele defendia incessantemente a sua inocência. Tudo não passara de um acidente, e antes que alguém perguntasse, repetia a mesma história: “Nós estávamos fazendo amor por toda a casa quando, em meio ao ímpeto da paixão, eu a levantei junto à parede e ela bateu a cabeça com força na tubulação de gás que estava exposta.”

O inspetor e o delegado se entreolhavam na esperança de se convencerem da história, mas não havia quem os fizesse crer naquilo que seus ouvidos ouviam.

E essa dúvida levou o jovem à cadeia, e lá, corroído pela impotência, ele pensava nela, que àquela altura, completara três meses do coma. A esperança dele estava no despertar dela, que seguia, feito bela adormecida, o destino passivo que a vida lhe reservara.

Foi então que alguém teve a ideia de verificar se entre os vizinhos do edifício não haveria algum vouyer, alguém que gostasse de observar a vida alheia, de dar uma “espiadinha” em algo mais interessante que a programação da TV.

E foi pela neta que eles chegaram à tal senhora. Muitos sabiam de histórias de uma senhora, que de posse de equipamentos sofisticados, passava tardes e noites acompanhando o movimento da vizinhança. Não foi difícil encontrá-la, difícil foi convencê-la a vir à delegacia. Menos por se sentir humilhada, mais por perder o posto de mistério do Leblon.

Mas, quando a grande dama deu-se conta do drama envolvendo aquele casal, decidiu-se por sair do anonimato e cumprir, quem saberia dizer, sua última missão afetiva.

E, naquela saleta nada glamorosa, ela passou a relatar as horas de paixão e sexo que antecederam o acidente. Suas minúcias ruborizaram até os agentes mais afeitos à pornografia. Era difícil creditar à imaginação o seu relato, a senhora fazia questão de arrematar cada relato com uma informação pontual. Identificava tatuagens, cicatrizes, objetos pontiagudos espalhados pela extensão corporal dos dois. Detalhes da casa, como a pintura descascada, revelando um caríssimo e antiqüíssimo papel de parede dos idos de 1930. As comidinhas que ela ousava preparar. As idas e vindas dele e as mesuras dela até o dia da reconciliação.

E não se sabe como, nem por que, pela primeira vez nos anais da justiça carioca, o relato de um personagem de ficção mudou os rumos da realidade. E enquanto a dama cruzava as portas do distrito, o delegado encaminhava aos advogados seu parecer com o pedido de soltura do jovem.

Dias depois, o rapaz estava ao pé do leito da moça, a tempo de vê-la despertar para uma nova vida.

Contam que o delegado acordou com a senhora, a manutenção do sigilo sobre existência dela, e quando alguém perguntava pela senhora ou pelo jovem casal, ele se ria e dizia que aquela era mais uma história inventada pelo povo do Rio de Janeiro.

Entre 20 e 21/01/2012

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 21/01/2012
Código do texto: T3452830
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