O menino e a flor
"Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade."
(Fernando Pessoa)
A flor do paratudo é como o Sol no final do outono, brilhante e luminoso, mas sem a quentura que produz na imensidão das chapadas o mormaço dos dias de verão. Sua luz inunda os campos, reflete-se nas águas ainda tépidas do regato, onde gotas multicoloridas saltitam como brilhantes numa cascata; mas, sobre os trilhos da velha estrada de ferro já não forma aquela cortina irreal, miragem tremulante de fitas translúcidas a subir do leito de pedras e dormentes. Apenas prenuncia o inverno cinzento, que, sem dúvida, sobrevirá ao avermelhado de cada entardecer. Apesar da radiosa luminescência, essa flor tem pétalas ásperas e rígidas, sem qualquer perfume, não atrai insetos e denuncia terra ácida. Contudo, aos olhos de quem a observa, é chama ardente, brasa viva a se destacar no rés do chão, entre o capim rasteiro do cerrado.
Sentado na grama do barranco à beira da estrada, olhar vagando entre o vermelho do poente longínquo e a flor do paratudo ali perto, o menino esperava o parlatório do padrinho. Como os olhos, a mente também vagava de um passado não muito distante ao momento presente.
O convite para o “particular” intrigou-o. Conhecedor dos hábitos do padrinho repassou de memória os acontecimentos dos últimos dias, tentando lembrar alguma coisa que, inadvertidamente, tivesse feito e lhe desagradado. Não se lembrou de nada: buscar o leite, ajudar na arrumação da casa, cuidar das crianças com a Rosa, brincadeiras no gramado ao entardecer eram partes de uma rotina e não motivos para um “particular”.
O Sol no ocaso, semi-oculto por dois filetes de nuvens, imenso, parecia descer na suave elevação do chapadão, do outro lado do riacho, quem sabe, procurando abrigo onde passar a noite na vastidão isolada, ermo de árvores retorcidas e pastagens naturais, após a longa jornada de Leste a Oeste.
Os extensos gramados que ladeavam a estrada, caprichosamente podados a dente pelos animais das tropas e boiadas que transitavam por ali a caminho da cidade, em outras tardes tão ruidosos, agora eram só silêncio e apreensão.
Perto da flor, desviando-se dela, um carreiro de saúvas formava estranhos desenhos. Obra de arte de habilidosa engenharia que embrenhava entre os rizomas da grama, entremeando-se aos trilhos do gado num emaranhado de caminhos que desciam buscando o regato. Olhos suplicantes, o menino aguardava o desencadear de uma tempestade.
– Filho – começou o padrinho, com surpreendente brandura. – Você e a Rosa não são mais crianças. Estão sempre juntos, brincam como crianças, mas não são crianças. A Rosa está moça e você é um homem-feito!
A timidez natural do menino misturou o vermelho do poente à luminescência da flor e em rápidas pinceladas tingiu-lhe a face. Aquele era um tempo diferente. Menino brincava com menino. Eram boiadeiros em cavalos de pau, motoristas de carrinhos de carretel, ou então, ferroviários de trens imaginários; as meninas brincavam de roda, de casinha ou de bonecas, mas em grupos separados. Todavia com ele e a Rosa nunca foi assim.
A vida no reduzido aglomerado de casas em torno da estaçãozinha perdida no ermo do chapadão e a ausência de outros jovens fez com que eles estivessem sempre juntos. Brincavam e trabalhavam juntos. Eram crianças grandes. Adolescência: momento ímpar na vida. No mesmo instante em que se é criança demais para uma atitude adulta, torna-se adulto demais para um gesto infantil. Apesar da malícia retrógrada daquela época, encaravam essa convivência com naturalidade e inocência. Por isso, mesmo sem entender direito o que o padrinho queria dizer, o rubor subiu-lhe às faces.
De repente um salto no tempo: a plataforma da estação, a locomotiva guinchando e expelindo fumaça e vapor por todo lado. O ruído ensurdecedor destoante da calma do lugar. O vento ameno balançando, suavemente, os galhos das árvores; havia pássaros no chão, ciscando a areia, e crianças correndo. A madrinha gorda e bonachona caminhando esbaforida, enxugando as mãos no avental e... ela: morena, olhos pretos, amendoados, luminosos. A Rosa. Foi assim que a viu pela primeira vez. Como lhe pareceu grande! Imaginou-a tão menina quando leu o bilhete da madrinha, convidando-o para vir.
– Esta é a Rosa – apresentou a madrinha, após o longo e esfuziante abraço de boas-vindas.
Sorriso doce e carinhoso, rosto arredondado, emoldurado por longos cabelos de ébano, gostou dela. Viajando no tempo, o menino teve um sobressalto ao ouvir, novamente, a voz do padrinho:
– Estou falando com você, filho! O que foi? Parece que não me ouviu?
– Não, padrinho... – titubeou. Quero dizer... sim. Eu ouvi, mas... não entendo. Eu e a Rosa...
– Ora, menino, não se faça de desentendido! Você sabe, exatamente, do que estou falando!
De novo a lembrança formava quadros em sua mente: Momentos vividos eram projetados como trechos de um filme, fazendo-o reviver detalhes perdidos no cotidiano de tantos meses. O padrinho chamou-lhe a atenção:
– Quando falo, gosto de ser ouvido! Quero alertá-lo para uma situação que dia a dia se torna mais perigosa...
Rosa menina, olhos pretos, amendoados, luminosos, sorriso doce, carinhoso, cabelos longos. Rosa compreensiva, amiga, confidente.
–... Sabe como são essas coisas. Uma brincadeira, um roçar de corpos e, quando menos se espera, acontece!
Olhar perdido no horizonte vermelho, ele mal ouvia as palavras do padrinho. O Sol com a metade mergulhada na imensidão do cerrado dourava os filetes de nuvens, flocos de ouro incandescente sobre as copas do arvoredo. No carreiro das saúvas apareceu a primeira operária, anunciando a noite de labutas. Quanta vida e quanta beleza! A perplexidade inicial cedeu lugar a um novo sentimento: emoção. Então era isso! Ele homem e a Rosa mulher. Nunca havia pensado nisso. Não na concepção adulta de macho e fêmea.
– Não me leve a mal, filho, mas, como seu tutor e também da Rosa, meu dever é...
A fita da memória desenrolava-se sem controle. Inesperadamente, a Rosa estava em seus braços, trêmula de susto: correndo entretidos nos dribles do pique de pegar, ao aproximarem-se da orla do gramado, o vôo de um pássaro que ela esteve a ponto de pisar lançou-a involuntariamente. Estiveram abraçados um momento apenas, pois, acostumados à vida no campo, logo perceberam que não havia motivo para sustos. Rapidamente soltaram-se e, gargalhando, continuaram a correr. As mãos que, naquele dia, buscaram apenas apoio no corpo dela agora deslizaram maciamente pela cintura bem delineada, apertada no corte de chita barata, incontestável testemunha de que a Rosa já não era mais menina. Que prazer senti-la assim tão perto! O vergar daquele corpo ágil, desvencilhando-se como quem foge de uma armadilha, fê-lo erguer os braços, na vã tentativa de reter um sonho. O padrinho, que fizera uma pausa, fitava o Sol morredouro no horizonte. Percebendo o movimento, encarou-o e prosseguiu:
– É tempo de amarrar o cavalo de pau, guardar os brinquedos... Para você, esse tempo passou... Começa agora uma nova fase...
Sem dúvida, ele estava no limiar de uma nova era: a Era Rosa. No umbral, de um lado, o padrinho temeroso acenava prevenção e, incauto, despertava instinto, malícia. Do outro, na fita da memória, a Rosa instigava-o a transpor a tênue linha que separa o menino do homem.
No gramado, palco de tantos crepúsculos juntos, o correr e pegar, o deslizar das mãos cintura acima buscando no seio tenro um ponto onde segurar. Quando isso acontecia, a Rosa parava, olhos brilhantes, rosto esfogueando. Ele desconcertava-se, num gesto automático, baixava as mãos e ela voltava a correr, fazendo troça.
– Uma nova fase em minha vida! – pensou.
Como lhe pareceu tola a timidez! Apenas ensaiara os primeiros passos nesta nova era e já o instinto, recém-despertado, cobrava novas posturas. Repetissem agora as cenas há pouco revividas e suas reações, certamente, seriam outras.
–... Tempo de mais responsabilidade, filho. Hora de trocar os folguedos por um trabalho, novas ilusões. Ser adulto também por dentro, que por fora você já é.
Mal ouviu estas palavras. Deu vagas à memória e deixou fluir livremente o vídeo tape de sua vida recente. Viu-se cavalgando com a Rosa na garupa. O cavalo em pêlo trotando pelas veredas do chapadão. Instigado, o animal passava do trote manso ao galope. O sacolejar dos corpos e as mãos dela em sua cintura, segurando firme. O roçar dos seios em suas costas e o bafejar arrítmico da boca quase em sua nuca. Nada disso ele percebeu na época.
– Pare! – gritou ela.
De chofre, ele puxou as rédeas e o cavalo estacou. Antes que pudesse argüir o que estava acontecendo, ela saltou com leveza e colheu uma flor solitária. A flor do paratudo.
– Ora, Rosa! Você me fez quase quebrar o queixo do animal por causa de uma flor?
– Insensível! Olhe para ela. Por que acha que se fez assim tão bonita? Para ficar ali no rés do chão? Ela quer ser colhida e admirada como todas as flores!
– Bobagem! Vamos que é tarde e a madrinha vai se preocupar.
– Só se você me deixar conduzir!
Ele concordou e ajudou-a a montar. Sentada à sua frente, ela tomou as rédeas e ele envolveu-lhe a cintura num gesto protetor. Logo cavalgavam esquecidos do incidente. Esteve tão envolvido em suas recordações, que não saberia repetir a última palavra do padrinho. Ficou surpreso ao vê-lo com a mão estendida convidando-o, não a mudar de vida, mas a voltarem para casa, que escurecia.
– Preciso pensar um pouco – conseguiu falar.
– Pense, reflita bem – concordou o padrinho. – Não tenha pressa.
Anuiu com um movimento de cabeça e ficou observando-o a afastar-se. Sozinho, o moço buscou na flor ali perto a lembrança da outra. Todavia o Sol, que lhe induzia toda a luminescência, mergulhara no chapadão, deixando atrás de si um vermelho opaco, esmaecido resto de claridade resistindo à noite.
A imagem da Rosa menina, ainda há pouco tão nítida, esvaía-se na névoa, de onde uma Rosa mulher surgia pálida e titubeante, como a primeira estrela daquele anoitecer. Aos poucos, o silêncio, misterioso, do crepúsculo foi substituído pelas vozes da biota: aqui e ali, grilos afinavam seus instrumentos. Mais longe, perto do riacho, o coaxar grave da rã marcava o compasso e pirilampos testavam minúsculos refletores. O palco estava montado. Logo, a orquestra inteira iniciaria o espetáculo. Vagando na torrente de pensamentos, ele não viu o ensaio nem assistiu ao show. Quando resolveu voltar, era noite fechada.
Subindo pela estradinha, teve a atenção atraída pela sineta da estação, que anunciava a partida de um cargueiro de sua última parada. As pancadas do badalo faziam vibrar o bronze, e os sons, procurando ouvintes, perderam-se no negrume. Em seu interior, a sexualidade insistia em despertar, inundando-lhe a cabeça, ora com imagens do passado, ora com projeções do futuro.
Em casa, procurou na sala o objeto de suas inquietações, não a encontrando, dirigiu-se aos outros aposentos. No corredor, uma réstia de luz que escapava do quarto, pela porta entreaberta, chamou-lhe a atenção e através da fresta seus olhos foram brindados com uma visão encantadora: recém-saída do banho, a moça, sentada na cama sobre as pernas enrodilhadas, cabelos presos num coque displicente, ameaçando desabar em grandes mechas; um braço erguido sobre a cabeça inclinada, com a outra mão acariciava a pele morena, aplicando a água de cheiro. Os seios timidamente aureolados deliciavam-se ao contato dos dedos úmidos de perfume que deslizavam abrindo sulcos na pele.
Estremeceu. Protegido pela obscuridade ficou imóvel, temendo que ela percebesse a intromissão e pusesse fim àquele momento de deleite da própria intimidade. Quantas vezes viu aquela porta entreaberta e nunca teve a curiosidade de uma espiadela. Também, se tivesse olhado, não a veria como agora. Internamente agradeceu ao padrinho por aquela descoberta. A lembrança dele trouxe-o à realidade. E se o descobrissem? Tentou afastar-se, mas a visão da moça nua, iluminada pela débil luz do lampião, era um atrativo forte demais. A postura dela, os movimentos como que ensaiados; a expressão suave, descontraída, hipnotizava-o e ainda que o bom senso gritasse as pernas, trêmulas, não obedeciam ante a inesperada e maravilhosa cena. A semente, inconseqüentemente, plantada há pouco, revolvia as entranhas dele, despertando o macho sexual.
Alheia, ela continuou deslizando a mão, gozando o frescor da lavanda; depois, levantou-se e soltou os cabelos, deixando-os cair em cascata. Duas graciosas covinhas, nas ancas, cadenciaram os passos, quando caminhou rumo ao guarda-roupa. Ao retornar, já trajava a chita.
De volta à sala, o menino sentou-se a seu canto. Pouco depois, a sineta voltou a tocar. Desta vez, o ruído encontrou eco e uma pequena agitação alterou a rotina da casa. O segundo toque da sineta significava partida de outra composição em sentido contrário à primeira. Em outras palavras, cruzamento de trens no pátio e, consequentemente, aquele que chegasse primeiro, teria de esperar o outro no desvio. Também significava visitas e novidades. Maquinistas, foguistas e condutores soltavam a língua, enquanto degustavam o café com quitandas. Para estes as paradas eram rotina: aconteciam em todas as viagens, contudo a grande extensão da via férrea distribuía os cruzamentos ao longo do percurso, de forma que eles aconteciam com pouca freqüência em cada uma das estações.
Sob o impacto das cenas presenciadas, o menino divagava. De cada nicho de sua memória surgia uma Rosa: brejeira, faceira, amiga, confidente. Todas lindas. Como era bonita a Rosa! E ele nem notara! Ou melhor, notara sim. Na noite do baile ela estava deslumbrante. O salão iluminado, a vozearia das pessoas e ela apartando-se do grupo de mocinhas, vindo em sua direção. Cabelos presos, pescoço esguio; olhos pretos, amendoados, brilhantes. Numa mão a flor rubra e na outra o lenço branco.
— Vamos dançar? – convidou.
Achou-a oferecida. Reticente, disse que não sabia dançar. Ela não concordou e insistiu:
— Eu lhe ensino. Venha!
Sem poder resistir, acompanhou-a. Não mentiu, quando disse que não sabia dançar. Carinhosa, ela ensinou-lhe os primeiros passos e logo rodopiavam abraçados. Muitas vezes teve-a junto de si naquela noite, porém a inocência não lhe permitiu compreender o verdadeiro significado da dança. Até então, para ele, dançar era um simples exercício cadenciado, onde os pares, ao ritmo da música, mostravam suas habilidades. Agora, sob a nova óptica, começava entender que, muito mais que o rodopio, dançar era, mesmo aos olhos da multidão, estar a sós com o par, falar-lhe ao ouvido, ter consentimento para tocar seu corpo, sentir-lhe os frêmitos e embebedar-se em seu perfume. A música era o ópio e a habilidade dos passos apenas o complemento. Ouvia, ainda, a música daquele baile, quando a primeira locomotiva estacionou no desvio, bem próxima da casa.
Os visitantes foram acolhidos com satisfação e a mesa posta deu à ocasião clima de festa. O menino, como era de se esperar, quase não participou da conversa e, na primeira oportunidade, despediu-se para deitar-se, alegando cansaço. Caminhava para o quarto, que ficava no corpo da casa, mas, com acesso pelo lado de fora. Quando a madrinha, desculpando-se por não tê-lo arrumado, pediu à Rosa que ajudasse o rapaz. Atenciosa, ela pegou um lampião e saíram.
No quarto, a Rosa estendia os lençóis e o menino, atrás dela, apoiado na mesinha, observava seus movimentos. Recurvada sobre a cama a saia curta deixava à mostra o belíssimo par de pernas, roliças e bem torneadas. Sentindo os olhos do rapaz, ela voltou-se e sorriu provocante. Teve ímpetos de acariciá-la, mas a voz do padrinho ainda ecoava, exigindo responsabilidade.
O conflito instalou-se em sua mente: Por que tantas coincidências? A repreensão, as cenas no quarto, as visitas, o pedido da madrinha, os dois a sós... Uma sensação estranha, descontrolada, assumiu seu corpo. Ondas de calor e frio alternavam-se. Os nervos, bambos, afloravam doídos e a respiração, ofegante, fazia o coração quase saltar. Olhos presos nela, linda, inconscientemente provocante. Não se conteve. Totalmente dominado pelo instinto que se sobrepunha à razão, estendeu as mãos, trêmulas, e pousou-as suavemente sobre as ancas recurvadas. Ao sentir o contato, ela parou o que fazia e permaneceu imóvel por um momento. Tempo suficiente para passar na cabeça dele todas as conseqüências de sua audácia. Enquanto relutava entre voltar atrás ou prosseguir, ela ergueu-se, virou e encarou-o com uma expressão indefinida entre súplica e zanga. Inseguro, ele mal conseguiu balbuciar:
– Somos homem e mulher... Rosa! O padrinho me disse hoje.
– Eu sei – respondeu ela. – A madrinha também falou comigo.
Permaneceram assim, próximos, imóveis e em silêncio, por um longo período. Uma aura de encantamento envolveu-os, revelando desejos recíprocos. Depois, atraídos um pelo outro, trocaram afagos leves, tímidos, até que a libido explodiu de vez. Então, bocas inexperientes procuraram-se em beijos ardentes e mãos incontroladas buscaram o corpo do outro num misto, frenético, de deslizar e apertar.
Na sala a conversa regada a café e quitandas seguia animada. Lá fora, na escuridão, a locomotiva expelia tufos de fumaça e fagulhas iluminadas como fogos de artifício. O guinchar da caldeira, cúmplice, abafava os gemidos e o farfalhar das palhas do colchão.
Por fim, a segunda locomotiva irrompeu no pátio. Dois corpos repousavam, refazendo-se carinhosamente, um nos braços do outro.
Quando partiram, os trens levaram junto pureza e inocência... Menino e flor.
"Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade."
(Fernando Pessoa)
≈
A flor do paratudo é como o Sol no final do outono, brilhante e luminoso, mas sem a quentura que produz na imensidão das chapadas o mormaço dos dias de verão. Sua luz inunda os campos, reflete-se nas águas ainda tépidas do regato, onde gotas multicoloridas saltitam como brilhantes numa cascata; mas, sobre os trilhos da velha estrada de ferro já não forma aquela cortina irreal, miragem tremulante de fitas translúcidas a subir do leito de pedras e dormentes. Apenas prenuncia o inverno cinzento, que, sem dúvida, sobrevirá ao avermelhado de cada entardecer. Apesar da radiosa luminescência, essa flor tem pétalas ásperas e rígidas, sem qualquer perfume, não atrai insetos e denuncia terra ácida. Contudo, aos olhos de quem a observa, é chama ardente, brasa viva a se destacar no rés do chão, entre o capim rasteiro do cerrado.
Sentado na grama do barranco à beira da estrada, olhar vagando entre o vermelho do poente longínquo e a flor do paratudo ali perto, o menino esperava o parlatório do padrinho. Como os olhos, a mente também vagava de um passado não muito distante ao momento presente.
O convite para o “particular” intrigou-o. Conhecedor dos hábitos do padrinho repassou de memória os acontecimentos dos últimos dias, tentando lembrar alguma coisa que, inadvertidamente, tivesse feito e lhe desagradado. Não se lembrou de nada: buscar o leite, ajudar na arrumação da casa, cuidar das crianças com a Rosa, brincadeiras no gramado ao entardecer eram partes de uma rotina e não motivos para um “particular”.
O Sol no ocaso, semi-oculto por dois filetes de nuvens, imenso, parecia descer na suave elevação do chapadão, do outro lado do riacho, quem sabe, procurando abrigo onde passar a noite na vastidão isolada, ermo de árvores retorcidas e pastagens naturais, após a longa jornada de Leste a Oeste.
Os extensos gramados que ladeavam a estrada, caprichosamente podados a dente pelos animais das tropas e boiadas que transitavam por ali a caminho da cidade, em outras tardes tão ruidosos, agora eram só silêncio e apreensão.
Perto da flor, desviando-se dela, um carreiro de saúvas formava estranhos desenhos. Obra de arte de habilidosa engenharia que embrenhava entre os rizomas da grama, entremeando-se aos trilhos do gado num emaranhado de caminhos que desciam buscando o regato. Olhos suplicantes, o menino aguardava o desencadear de uma tempestade.
– Filho – começou o padrinho, com surpreendente brandura. – Você e a Rosa não são mais crianças. Estão sempre juntos, brincam como crianças, mas não são crianças. A Rosa está moça e você é um homem-feito!
A timidez natural do menino misturou o vermelho do poente à luminescência da flor e em rápidas pinceladas tingiu-lhe a face. Aquele era um tempo diferente. Menino brincava com menino. Eram boiadeiros em cavalos de pau, motoristas de carrinhos de carretel, ou então, ferroviários de trens imaginários; as meninas brincavam de roda, de casinha ou de bonecas, mas em grupos separados. Todavia com ele e a Rosa nunca foi assim.
A vida no reduzido aglomerado de casas em torno da estaçãozinha perdida no ermo do chapadão e a ausência de outros jovens fez com que eles estivessem sempre juntos. Brincavam e trabalhavam juntos. Eram crianças grandes. Adolescência: momento ímpar na vida. No mesmo instante em que se é criança demais para uma atitude adulta, torna-se adulto demais para um gesto infantil. Apesar da malícia retrógrada daquela época, encaravam essa convivência com naturalidade e inocência. Por isso, mesmo sem entender direito o que o padrinho queria dizer, o rubor subiu-lhe às faces.
De repente um salto no tempo: a plataforma da estação, a locomotiva guinchando e expelindo fumaça e vapor por todo lado. O ruído ensurdecedor destoante da calma do lugar. O vento ameno balançando, suavemente, os galhos das árvores; havia pássaros no chão, ciscando a areia, e crianças correndo. A madrinha gorda e bonachona caminhando esbaforida, enxugando as mãos no avental e... ela: morena, olhos pretos, amendoados, luminosos. A Rosa. Foi assim que a viu pela primeira vez. Como lhe pareceu grande! Imaginou-a tão menina quando leu o bilhete da madrinha, convidando-o para vir.
– Esta é a Rosa – apresentou a madrinha, após o longo e esfuziante abraço de boas-vindas.
Sorriso doce e carinhoso, rosto arredondado, emoldurado por longos cabelos de ébano, gostou dela. Viajando no tempo, o menino teve um sobressalto ao ouvir, novamente, a voz do padrinho:
– Estou falando com você, filho! O que foi? Parece que não me ouviu?
– Não, padrinho... – titubeou. Quero dizer... sim. Eu ouvi, mas... não entendo. Eu e a Rosa...
– Ora, menino, não se faça de desentendido! Você sabe, exatamente, do que estou falando!
De novo a lembrança formava quadros em sua mente: Momentos vividos eram projetados como trechos de um filme, fazendo-o reviver detalhes perdidos no cotidiano de tantos meses. O padrinho chamou-lhe a atenção:
– Quando falo, gosto de ser ouvido! Quero alertá-lo para uma situação que dia a dia se torna mais perigosa...
Rosa menina, olhos pretos, amendoados, luminosos, sorriso doce, carinhoso, cabelos longos. Rosa compreensiva, amiga, confidente.
–... Sabe como são essas coisas. Uma brincadeira, um roçar de corpos e, quando menos se espera, acontece!
Olhar perdido no horizonte vermelho, ele mal ouvia as palavras do padrinho. O Sol com a metade mergulhada na imensidão do cerrado dourava os filetes de nuvens, flocos de ouro incandescente sobre as copas do arvoredo. No carreiro das saúvas apareceu a primeira operária, anunciando a noite de labutas. Quanta vida e quanta beleza! A perplexidade inicial cedeu lugar a um novo sentimento: emoção. Então era isso! Ele homem e a Rosa mulher. Nunca havia pensado nisso. Não na concepção adulta de macho e fêmea.
– Não me leve a mal, filho, mas, como seu tutor e também da Rosa, meu dever é...
A fita da memória desenrolava-se sem controle. Inesperadamente, a Rosa estava em seus braços, trêmula de susto: correndo entretidos nos dribles do pique de pegar, ao aproximarem-se da orla do gramado, o vôo de um pássaro que ela esteve a ponto de pisar lançou-a involuntariamente. Estiveram abraçados um momento apenas, pois, acostumados à vida no campo, logo perceberam que não havia motivo para sustos. Rapidamente soltaram-se e, gargalhando, continuaram a correr. As mãos que, naquele dia, buscaram apenas apoio no corpo dela agora deslizaram maciamente pela cintura bem delineada, apertada no corte de chita barata, incontestável testemunha de que a Rosa já não era mais menina. Que prazer senti-la assim tão perto! O vergar daquele corpo ágil, desvencilhando-se como quem foge de uma armadilha, fê-lo erguer os braços, na vã tentativa de reter um sonho. O padrinho, que fizera uma pausa, fitava o Sol morredouro no horizonte. Percebendo o movimento, encarou-o e prosseguiu:
– É tempo de amarrar o cavalo de pau, guardar os brinquedos... Para você, esse tempo passou... Começa agora uma nova fase...
Sem dúvida, ele estava no limiar de uma nova era: a Era Rosa. No umbral, de um lado, o padrinho temeroso acenava prevenção e, incauto, despertava instinto, malícia. Do outro, na fita da memória, a Rosa instigava-o a transpor a tênue linha que separa o menino do homem.
No gramado, palco de tantos crepúsculos juntos, o correr e pegar, o deslizar das mãos cintura acima buscando no seio tenro um ponto onde segurar. Quando isso acontecia, a Rosa parava, olhos brilhantes, rosto esfogueando. Ele desconcertava-se, num gesto automático, baixava as mãos e ela voltava a correr, fazendo troça.
– Uma nova fase em minha vida! – pensou.
Como lhe pareceu tola a timidez! Apenas ensaiara os primeiros passos nesta nova era e já o instinto, recém-despertado, cobrava novas posturas. Repetissem agora as cenas há pouco revividas e suas reações, certamente, seriam outras.
–... Tempo de mais responsabilidade, filho. Hora de trocar os folguedos por um trabalho, novas ilusões. Ser adulto também por dentro, que por fora você já é.
Mal ouviu estas palavras. Deu vagas à memória e deixou fluir livremente o vídeo tape de sua vida recente. Viu-se cavalgando com a Rosa na garupa. O cavalo em pêlo trotando pelas veredas do chapadão. Instigado, o animal passava do trote manso ao galope. O sacolejar dos corpos e as mãos dela em sua cintura, segurando firme. O roçar dos seios em suas costas e o bafejar arrítmico da boca quase em sua nuca. Nada disso ele percebeu na época.
– Pare! – gritou ela.
De chofre, ele puxou as rédeas e o cavalo estacou. Antes que pudesse argüir o que estava acontecendo, ela saltou com leveza e colheu uma flor solitária. A flor do paratudo.
– Ora, Rosa! Você me fez quase quebrar o queixo do animal por causa de uma flor?
– Insensível! Olhe para ela. Por que acha que se fez assim tão bonita? Para ficar ali no rés do chão? Ela quer ser colhida e admirada como todas as flores!
– Bobagem! Vamos que é tarde e a madrinha vai se preocupar.
– Só se você me deixar conduzir!
Ele concordou e ajudou-a a montar. Sentada à sua frente, ela tomou as rédeas e ele envolveu-lhe a cintura num gesto protetor. Logo cavalgavam esquecidos do incidente. Esteve tão envolvido em suas recordações, que não saberia repetir a última palavra do padrinho. Ficou surpreso ao vê-lo com a mão estendida convidando-o, não a mudar de vida, mas a voltarem para casa, que escurecia.
– Preciso pensar um pouco – conseguiu falar.
– Pense, reflita bem – concordou o padrinho. – Não tenha pressa.
Anuiu com um movimento de cabeça e ficou observando-o a afastar-se. Sozinho, o moço buscou na flor ali perto a lembrança da outra. Todavia o Sol, que lhe induzia toda a luminescência, mergulhara no chapadão, deixando atrás de si um vermelho opaco, esmaecido resto de claridade resistindo à noite.
A imagem da Rosa menina, ainda há pouco tão nítida, esvaía-se na névoa, de onde uma Rosa mulher surgia pálida e titubeante, como a primeira estrela daquele anoitecer. Aos poucos, o silêncio, misterioso, do crepúsculo foi substituído pelas vozes da biota: aqui e ali, grilos afinavam seus instrumentos. Mais longe, perto do riacho, o coaxar grave da rã marcava o compasso e pirilampos testavam minúsculos refletores. O palco estava montado. Logo, a orquestra inteira iniciaria o espetáculo. Vagando na torrente de pensamentos, ele não viu o ensaio nem assistiu ao show. Quando resolveu voltar, era noite fechada.
Subindo pela estradinha, teve a atenção atraída pela sineta da estação, que anunciava a partida de um cargueiro de sua última parada. As pancadas do badalo faziam vibrar o bronze, e os sons, procurando ouvintes, perderam-se no negrume. Em seu interior, a sexualidade insistia em despertar, inundando-lhe a cabeça, ora com imagens do passado, ora com projeções do futuro.
Em casa, procurou na sala o objeto de suas inquietações, não a encontrando, dirigiu-se aos outros aposentos. No corredor, uma réstia de luz que escapava do quarto, pela porta entreaberta, chamou-lhe a atenção e através da fresta seus olhos foram brindados com uma visão encantadora: recém-saída do banho, a moça, sentada na cama sobre as pernas enrodilhadas, cabelos presos num coque displicente, ameaçando desabar em grandes mechas; um braço erguido sobre a cabeça inclinada, com a outra mão acariciava a pele morena, aplicando a água de cheiro. Os seios timidamente aureolados deliciavam-se ao contato dos dedos úmidos de perfume que deslizavam abrindo sulcos na pele.
Estremeceu. Protegido pela obscuridade ficou imóvel, temendo que ela percebesse a intromissão e pusesse fim àquele momento de deleite da própria intimidade. Quantas vezes viu aquela porta entreaberta e nunca teve a curiosidade de uma espiadela. Também, se tivesse olhado, não a veria como agora. Internamente agradeceu ao padrinho por aquela descoberta. A lembrança dele trouxe-o à realidade. E se o descobrissem? Tentou afastar-se, mas a visão da moça nua, iluminada pela débil luz do lampião, era um atrativo forte demais. A postura dela, os movimentos como que ensaiados; a expressão suave, descontraída, hipnotizava-o e ainda que o bom senso gritasse as pernas, trêmulas, não obedeciam ante a inesperada e maravilhosa cena. A semente, inconseqüentemente, plantada há pouco, revolvia as entranhas dele, despertando o macho sexual.
Alheia, ela continuou deslizando a mão, gozando o frescor da lavanda; depois, levantou-se e soltou os cabelos, deixando-os cair em cascata. Duas graciosas covinhas, nas ancas, cadenciaram os passos, quando caminhou rumo ao guarda-roupa. Ao retornar, já trajava a chita.
De volta à sala, o menino sentou-se a seu canto. Pouco depois, a sineta voltou a tocar. Desta vez, o ruído encontrou eco e uma pequena agitação alterou a rotina da casa. O segundo toque da sineta significava partida de outra composição em sentido contrário à primeira. Em outras palavras, cruzamento de trens no pátio e, consequentemente, aquele que chegasse primeiro, teria de esperar o outro no desvio. Também significava visitas e novidades. Maquinistas, foguistas e condutores soltavam a língua, enquanto degustavam o café com quitandas. Para estes as paradas eram rotina: aconteciam em todas as viagens, contudo a grande extensão da via férrea distribuía os cruzamentos ao longo do percurso, de forma que eles aconteciam com pouca freqüência em cada uma das estações.
Sob o impacto das cenas presenciadas, o menino divagava. De cada nicho de sua memória surgia uma Rosa: brejeira, faceira, amiga, confidente. Todas lindas. Como era bonita a Rosa! E ele nem notara! Ou melhor, notara sim. Na noite do baile ela estava deslumbrante. O salão iluminado, a vozearia das pessoas e ela apartando-se do grupo de mocinhas, vindo em sua direção. Cabelos presos, pescoço esguio; olhos pretos, amendoados, brilhantes. Numa mão a flor rubra e na outra o lenço branco.
— Vamos dançar? – convidou.
Achou-a oferecida. Reticente, disse que não sabia dançar. Ela não concordou e insistiu:
— Eu lhe ensino. Venha!
Sem poder resistir, acompanhou-a. Não mentiu, quando disse que não sabia dançar. Carinhosa, ela ensinou-lhe os primeiros passos e logo rodopiavam abraçados. Muitas vezes teve-a junto de si naquela noite, porém a inocência não lhe permitiu compreender o verdadeiro significado da dança. Até então, para ele, dançar era um simples exercício cadenciado, onde os pares, ao ritmo da música, mostravam suas habilidades. Agora, sob a nova óptica, começava entender que, muito mais que o rodopio, dançar era, mesmo aos olhos da multidão, estar a sós com o par, falar-lhe ao ouvido, ter consentimento para tocar seu corpo, sentir-lhe os frêmitos e embebedar-se em seu perfume. A música era o ópio e a habilidade dos passos apenas o complemento. Ouvia, ainda, a música daquele baile, quando a primeira locomotiva estacionou no desvio, bem próxima da casa.
Os visitantes foram acolhidos com satisfação e a mesa posta deu à ocasião clima de festa. O menino, como era de se esperar, quase não participou da conversa e, na primeira oportunidade, despediu-se para deitar-se, alegando cansaço. Caminhava para o quarto, que ficava no corpo da casa, mas, com acesso pelo lado de fora. Quando a madrinha, desculpando-se por não tê-lo arrumado, pediu à Rosa que ajudasse o rapaz. Atenciosa, ela pegou um lampião e saíram.
No quarto, a Rosa estendia os lençóis e o menino, atrás dela, apoiado na mesinha, observava seus movimentos. Recurvada sobre a cama a saia curta deixava à mostra o belíssimo par de pernas, roliças e bem torneadas. Sentindo os olhos do rapaz, ela voltou-se e sorriu provocante. Teve ímpetos de acariciá-la, mas a voz do padrinho ainda ecoava, exigindo responsabilidade.
O conflito instalou-se em sua mente: Por que tantas coincidências? A repreensão, as cenas no quarto, as visitas, o pedido da madrinha, os dois a sós... Uma sensação estranha, descontrolada, assumiu seu corpo. Ondas de calor e frio alternavam-se. Os nervos, bambos, afloravam doídos e a respiração, ofegante, fazia o coração quase saltar. Olhos presos nela, linda, inconscientemente provocante. Não se conteve. Totalmente dominado pelo instinto que se sobrepunha à razão, estendeu as mãos, trêmulas, e pousou-as suavemente sobre as ancas recurvadas. Ao sentir o contato, ela parou o que fazia e permaneceu imóvel por um momento. Tempo suficiente para passar na cabeça dele todas as conseqüências de sua audácia. Enquanto relutava entre voltar atrás ou prosseguir, ela ergueu-se, virou e encarou-o com uma expressão indefinida entre súplica e zanga. Inseguro, ele mal conseguiu balbuciar:
– Somos homem e mulher... Rosa! O padrinho me disse hoje.
– Eu sei – respondeu ela. – A madrinha também falou comigo.
Permaneceram assim, próximos, imóveis e em silêncio, por um longo período. Uma aura de encantamento envolveu-os, revelando desejos recíprocos. Depois, atraídos um pelo outro, trocaram afagos leves, tímidos, até que a libido explodiu de vez. Então, bocas inexperientes procuraram-se em beijos ardentes e mãos incontroladas buscaram o corpo do outro num misto, frenético, de deslizar e apertar.
Na sala a conversa regada a café e quitandas seguia animada. Lá fora, na escuridão, a locomotiva expelia tufos de fumaça e fagulhas iluminadas como fogos de artifício. O guinchar da caldeira, cúmplice, abafava os gemidos e o farfalhar das palhas do colchão.
Por fim, a segunda locomotiva irrompeu no pátio. Dois corpos repousavam, refazendo-se carinhosamente, um nos braços do outro.
Quando partiram, os trens levaram junto pureza e inocência... Menino e flor.