A DOCE PEQUENA DO MATO VIRGEM

Lá veio chegando a menina doce, de olhar ingênuo. Seu sorriso era sincero; livre de intenções, máscaras e subtextos. Era um sorriso daqueles raros que descortinam a alma; era daqueles que ofertam, sem nada exigir em troca, uma sensação de absoluto bem estar.

A pequena vinha de longe, do meio do mato virgem, onde o não saber remete ao belo. Tivera antes lá ficado. Mas ali estava ela. Magrinha, delicada... Trazia consigo uma exótica combinação de pele marrom e os olhos verdes-musgo, qual jamais eu vira passar por aqui.

O coaxar da noite e o som do capim limão dançando ao vento, eram agora uma caótica sinfonia de motores e buzinas. Na rodoviária, era um vaivém; gente de todo tipo. A noite era mais clara que o dia e as casas trepadas umas sobre as outras. Ela olhou extasiada tudo aquilo. Projetada em sua retina estava a colossal imagem. Era a terra das possibilidades! Seu vislumbre ao trivial; sua imagem dissonante ali, paradinha, denunciavam, ainda preservada, sua inocência.

E lá vem pivete! Toma-lhe susto, malandragem e quando viu... cadê a bagagem? Algum tempo duraria seu lamento: O pobre garoto tinha fome e ela nada que lhe dar de comer. Algum tempo, ainda, lhe seria mistério o sumiço da bagagem. Mas aqui já perdera algo mais.

E lá vem patrão! _Toma-lhe a escova, uma vassoura e esfregue com sabão.

Seu sorriso ainda era sincero. Mas já perdera algo mais: Aqui já não era lamento a fome do pivete.

E lá vem amiga! Toma-lhe mentira, intriga e traição.

_Cadê o dinheiro? Nesta casa tem ladrão!

Aquelas palavras rasgaram-lhe violentamente os tímpanos. Melhor seria ser ferida a ferro e fogo. Ainda restara-lhe algum sorriso, mas já perdera algo mais: Seu olhar agora era desconfiado.

Veio-lhe então o amor. Algo estranho e bom apertava-lhe o peito. Algo medonho, agressivo, mas era bom. Parecia resgatar-lhe o sorriso de outrora. Já não havia pivete, amiga ou patrão. Sim! Era bom! Aquilo era bom! Sentia-se agora como nunca havia sentido. _Mas que estranho gosto é este que me sobe o estômago e serpenteia até o céu da boca? - Perguntava-se a pequena. E era assim que sentia sempre que lhe chegava perto aquele moço. A boca seca; o coração acelerava e faltavam as palavras. Mais dia menos dia ela falaria ao jovem rapaz do que sentia. Então encheu o peito de coragem e chegando o moço, era sempre aquela história: Boca seca; o coração acelerava e faltavam as palavras. E assim, meio de repente, num desses dias, lhe veio o largo sorriso. Era para ela o encantamento do jovem gajo. Aquele sorriso, adornado em cavanhaque negro e bem feito, encheu de esperanças o inexplorado coração da bela. Logo estava plena a felicidade da pequena. Mas não seria para sempre. Pode haver pior crueldade? Nunca alguém lhe disse que “o pra sempre sempre acaba”.

Não poderia imaginar que da fonte do seu bem viver nasceria sua mais profunda ojeriza. Aqui deixaria para sempre a doce menina.

O delicado sorriso, que provocara encantamento, dava agora ao gajo a medíocre sensação de posse. (Como fosse possível possuir algo que o tempo não carregue). Não era mais a doce, bela e delicada que um dia lhe encantara. Mais lhe parecia agora, algum tipo de brinquedo; daqueles que logo perdem a graça e lá ficam; no fundo da caixa. Mas que ninguém lhe toque. “_Não quero; não gosto; não brinco! Mas é meu!”

Empurrado goela abaixo era o gajo abarrotado de malícias e padrões. Mas afinal, como pode a onça na selva viver sem presas? Não seria presa fácil? No entanto, suas necessárias ferramentas de sobrevivência, cegavam-lhe agora a vista para a beleza simples da pequena.

A cada dia, entre carinhos, afagos e maus-tratos, tomava também, a pequena, suas lições de malícias e padrões. Sobre o limpo e genuíno sorriso que vinha do mato, ia tomando forma um grosso casco. Enterrado sob a dura cara-passa, sumiria para sempre aquele sorriso.

Sob os impiedosos cuidados do malandro, ela foi deixando para trás a doce menina para nascer mulher. Sofria os mais bárbaros ataques nas emoções. Ora com intensos carinhos, amores e palavras de bem querer; ora com um arsenal de palavras que nunca deveriam a alguém ser ditas. Depois vinha a mais ferina indiferença. Mas, por mais antagônico que possa parecer, era isso que nutria a descomunal paixão da pequena. Ele provocava uma montanha russa seu coração. Naquele amor, ela vivenciava as mais avassaladoras emoções. Sentia-se filha, mulher, amante, amiga; sentia ciúmes, conforto, proteção e desamparo, amor e ódio. Tudo isso concentrado naquele negro adorno de cavanhaque. Mas afinal, não são as emoções que dão graça à vida? Sua existência era completa agora. Não era mais a bela de outrora, mas era plena.

Então chegava o fadado dia: Projetada na retina agora era terrível a imagem. Lá estava seu gajo, de costas. Os ombros envoltos num delicado braço de mulher. Ele sabia que a pequena poderia chegar a qualquer instante, mas isto não era incômodo. Entre o som das risadas e a imagem dos afagos de seu gajo noutros braços, irrompeu-se o mais pavoroso grito. A simples visão da face metamorfoseada da pequena fez a loira rapidamente evadir-se da cena, enquanto o gajo, num sorriso cínico, não movia um só dedo do pé. Sua segurança extrema subestimava a pequena.

Aproximou-se a largos passos do seu gajo e, de assalto, feriu-lhe à bofetada a face esquerda. O coração acelerado. Não disse uma só palavra. Houve um breve silêncio. Esvaneceu-se ele dos olhos penetrantes da pequena e calmamente, deu-lhe as costas em absoluta indiferença. Na sacada, caminhando no parapeito, passou a divertir-se com os prantos da pequena. Ela não dizia uma só palavra. Então, com voz branda, para perto a chamou. Com os braços estendidos prostrou-se ele como quem oferece refúgio. Sim a pequena aproximou-se aceitando sua oferta. Ela não dizia uma só palavra, mas ouviu todas as que não queria.

Muito próximos um do outro ele disse num sussurro ao pé do ouvido: _Sabe por que estamos aqui agora? – Após breve pausa respondeu: _Porque você é minha e eu a tenho na hora que eu quiser. A loirinha não significa nada pra mim. Mas já me interessa mais do que você.

Imediatamente, explodiu no âmago, o mais terrível ódio jamais sentido. Da pequena emanou força inacreditável daqueles franzinos braços. Sentindo ecoar em si viscerais aquelas palavras, jogou-se, de punhos retos, com tudo contra o seu amado, fazendo-o despencar do quinto andar para nunca mais. Sentou-se por um instante ao parapeito e sorriu. Estava “indo de volta pra casa”, mas jamais tornaria a Ser a doce pequena do mato virgem.

Marcos Antoine

Reg. 35.202 SATED-RJ

Marcos Profanus
Enviado por Marcos Profanus em 21/01/2012
Reeditado em 14/02/2012
Código do texto: T3452616
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