O GARÇON DA PRAIA

Ele era novo no bar e olhava por trás dos óculos escuros, uns 35, 40 anos maltratados, a cara marcada de Sol, avermelhada, enrugada, daquelas tipo sertanejo da seca, sacomé? Ele olhava e eu estava com uma menininha de 3 anos e eu fiquei pensando: merda-caralho-será que ele está de olho na menina? E avisei pro pai da garota, por que nunca se sabe o que se passa na cabeça desses tarados-pervertidos filhos-da-puta que merecem morrer com uma chave de fenda enfiada em cada olho, martelada nos ouvidos e cabos de vassouras no cu varando intestinos e botando pra fora a merda que eles são.

E nós ficamos no bar olhando o mar que estava imundo e olhando a menina brincar com baldinhos e pedrinhas e conchinhas e eu disse pra ela que aquilo tinha servido de casa para vários animaizinhos que já haviam morrido e ela ficou meio triste mas eu disse que não ficasse por que a vida era assim mesmo: vida e morte. O pai dela, meu 3o ex-marido-atual-amigo-eterno-amante 9 anos mais novo ficou me olhando meio torto mas não disse nada e eu deixei quieto e a gente acabou ficando bêbado e quando eu já não conseguia parar de me preocupar por que a menininha estava ali e o pai estava incapacitado e eu tinha que me controlar por que ela dependia de mim, pensei: o que eu tenho a ver com isso? Filho da puta, bebe e me deixa com a filha... mas fiquei brincando com ela na areia e tomando água tônica e o garçon se aproximou e disse:

Ei, psiu!

E eu tremi como se tivesse levado uma porrada no crânio e merda puta que me pariu, se ele se aproximar muito eu grito nessa porra e ele morre linchado e até que ponto a violência chegou que a gente não se sente mais segura numa praia lotada em pleno Sol das 2 da tarde? Até que ponto eu estava bêbada e até que ponto me isolei do mundo e dos seres humanos e fiquei paranóica?

Envelheci, encaretei, apenas isso? Por que o garçon da praia não se aproximou nem fez nada ameaçador, só me olhou e perguntou meio inseguro, pés descalços, bermuda velha, tatuagem de dragão e carpa nos antebraços, camisa preta desbotada, cabelos presos numa trança sob o boné com o logo do bar:

Tu não é a Iama K?

E eu... bem, eu não lembrava dele, mas ele fez um gesto com os braços abertos, e a cabeça balançando e um sorriso torto de galhofa e eu de repente me lembrei dele com uns 15 aninhos, incrivelmente branco, branco, branco como um gringo, olhos verdes limpos sem aquelas arteriazinhas vermelhas dilatadas de bêbado profissional, lembrei do rosto magro e marcado, vincado com marcas de sorriso que me lembravam o Curinga dos desenhos animados, não o do Jack Nicholson ou do Heath Ledger, mas sem as rugas de Sol e os cabelos castanhos claros brilhantes e longos, não queimados amarelados ensebados desalinhados como agora e meu peito deu três pulos numa pulsação só e eu senti um cheiro de hortelã e maconha e madeira queiman do e nicotina velha e vinho barato de garrafão e foi como se ele tivesse me abraçado e eu tivesse fechado os olhos e voltado para os meus 17 anos...

Era ele, é claro que era ele, eu me lembrei dele!

Ele continuava rindo e eu disse que sim, sou eu, eu me lembro de você e que você era guitarrista e que tinha uma banda chamada Trem das 7, e ele puxou um panfletinho dobrado do bolso e disse:

A gente vai tocar amanhã aqui, ó. Eu te boto pra dentro, a gente tem uma mesa só para a banda... Aparece lá...? Eu toco aquela música... - Como quem promete mas não esperava realmente que eu me lembrasse que "aquela" música tinha sido um poema que eu fiz pra ele e que ele musicou e cantava sempre no microfone de um jeito terno e obsceno como se estivesse beijando minha boca e parecia que estava se sentindo muito atrevido e com medo que eu dissesse: te enxerga, ô garçon! mas é claro que eu não disse, ele costumava me dar flores de madrugada nos acampamentos quando voltava dos shows na areia da praia e entrava na minha barraca sempre perguntando: está sozinha? e as menininhas da fila do gargarejo me odiavam no dia seguinte quando nos viam escovar os dentes juntos na bica da Ferrugem...

Dei uma olhada para o meu amigo pai da garotinha e ele estava sacando tudo: eu e o garçon, Deus e o Universo inteiro. Nem liguei. Sorri:

É claro que eu vou!

Ele se afastou, nós pagamos a conta e meu amigo:

Quem é aquele coroa? De onde tu conhece ele? Pra onde tu vai amanhã? Eu posso ir também?

O nome dele é ATP - Adrenalina Tri-Fosfato. Faz 30 anos que eu não vejo ele. Vou pro show da banda dele. Não, não pode.

Ele não entendeu, ou entendeu tudo, né? fez as trouxas e partiu, puto da vida.

Sacomé, não é sempre que você encontra seu rock star de subúrbio favorito dando sopa num barzinho da praia.

Desta vez, pensei, ele não me daria flores.

Mas me enganei.

Iama K
Enviado por Iama K em 19/01/2012
Reeditado em 19/01/2012
Código do texto: T3449524
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