o Casulo
“Porque quando fecho os olhos,
é você quem eu vejo;
aos lados, em cima, embaixo,
por fora e por dentro de mim".
(Caio Fernando Abreu)
Amanhece, entardece, anoitece e já não sei mais quanto tempo faz. Não há sentido em perceber o Tempo. Tentar apreendê-lo é apreender-se nele; é usar grilhões e, os meus, são outros... Sei apenas que só me encontro quando me percebo a esperá-la diante da janela. Lá fora, o vento sopra sinuoso pelas ruas sombrias e as últimas folhas da nossa macieira dão adeus. Pego um cigarro. Cinzas. As nuvens afoitas se espalham pesadas sufocando o que encontram. As cortinas ainda são as mesmas; tudo continua como ela deixou, exceto eu e a macieira. Outro cigarro; acendo-o; trago-o; solto a fumaça para, em seguida, aspirá-la. Cinzas. Um clarão invade a pequena câmara, mostrando a desordem das coisas; trovões; corvos assustados. O cinzeiro cinza de pontas e o último da carteira recém-aberta. Minha face pesa contra a janela; fecho os olhos; transbordo... Seu sorriso era lindo e eu naufragava na intensidade dos seus olhos e me perdia nela a cada instante de amor... Era toda de um encantamento que não consigo explicar... E o frio agora; o luto presente. Lembro-me de quando procurávamos uma casa: nunca desanimava e estava sempre alegre e disposta a se divertir; era o meu oposto! Eu, escuridão e ela, luz. Sabe Deus o que aconteceu. Só sei que, quando percebi, já era parte dela e ela, parte de mim. Outro clarão... A dor. A macieira fora o que a levara a ficar com esta casa. Passávamos os domingos sob a sombra dela e quando as crianças pediam maçãs, ela as dava com imenso sorriso no rosto. Não havia quem não gostasse dela: era tão incrível... Não entendia o que havia visto em mim! E quando lhe perguntava sobre isso, eu recebia em resposta: “Foi seu silêncio que me fascinou!” E me enchia de alegria. Eu era feliz com ela. Sim, eu era... E me desespero a cada segundo de consciência crua que tenho; e me afogo em lágrimas; e me arranho os ombros; e me sufoco em soluços; e me canso do cansaço de existir... O corpo esgotado amolece e escuto o rugido em meu peito. Há um deserto venenoso dentro de mim: a própria ausência personificada; o vazio surdo, cego e mudo. Sucessão de trovões. A tempestade. As mãos órfãs deixam um rastro nos ombros e pousam sobre o colo e sobre o objeto sobre o colo... O porta-retrato, não o mais bonito, mas o que agora vejo fragmentado na dor do abraço vazio; estilhaçado como eu... Pego a foto sob os vidros; uma fissura vermelha. Dedo, sangue, gota, rosto. O corte é pequeno; nada comparado aos antigos. Ela gostava dos meus pulsos e eles gostavam dela... Agora, estão sós, mortificados, marcados: meus grilhões, não muito apertados. Na foto, sorri e me olha nos olhos, e eu sorrio no sorriso dela, e olho nos olhos dela e consigo sentir seu perfume. “O que você viu em mim...!?”; nenhuma resposta. E o sangue escorre, a chuva corre, o vento, o corte... Sem folhas, sem frutos vermelhos. O fado nas pálpebras, os sentidos que se esvaem no escuro. Silêncio e dormência...
Vestido azul sujo de grama, cravos vermelhos nos fios negros, pele rosada, pés descalços. A sensação do estranhamento seguida de... Hummm...! Sua voz! Um salto e um rodopio, o sol brilha em meus cabelos. Passos longos, ansiosos, risonhos! Esperança que me invade e me ilumina feito estrela velha. Não... O quadro numa confusão de cores e imagens: a grama, as árvores, o sol... Redemoinho tenebroso, tudo gira e eu me diluo em tinta para, em segundos, ser lançada no nada muito fofo. Levanto num pulo com as mãos na cintura e cabelo desgrenhado. Um muro a frente, sem sol, sem cor, só flores murchas e folhas secas flutuantes. Elas pairam no ar e choram um choro que não é delas... é meu. Aflição que pulsa na alma. Respiro pesado, pele cinzenta. No muro, um botão: rosa sangue que desabrocha; pétalas gigantescas num movimento hipnótico; o vento que as acaricia com volúpia. Um sussurro, o cheiro familiar, a voz dela... Num instante de impulso eu me lanço contra o vermelho pulsante; a pele queimando; a luta em atravessar a rosa; o desejo de não machucá-la; o desespero... Caio. O outro lado... Pele branca, boca seca. O cansaço me abraça e o frio me esquenta. E sua voz... adrenalina! Corro pelo campo seco e infértil. Corro em direção a não sei o quê que me avassala. Sinto a terra sem calor sob meus pés ferozes e a vegetação afiada na pele gelada. Caio. Escuto: um rugido pesado. Não. Sou eu. Estou correndo, veloz como os ventos que se atiram em direção à montanha distante e as nuvens se entrelaçam nela e gritam coisas que não consigo decifrar. Só escuto a voz dela me guiando... Tropeço: uma maçã murcha. Pego-a nas mãos e a areia escorre por entre os dedos arranhados. Uma explosão de folhas secas e frutos murchos me envolve com ferocidade e se mistura a mim e eu, a ela: o casulo. Eu estou só, num mundo que é o meu, que se revela meu, que me abraça e me modela como argila nova. A pulsação; o líquido viscoso correndo quente; o ar que não pára nos pulmões; a vontade de explodir. Sua voz me invade e me rasga os tecidos e me envolve toda: luz. Sou borboleta. Posso senti-la na água; posso senti-la na terra; posso senti-la no ar; posso senti-la... aqui. O solo é macio como a pedra de inverno; é rocha antiga. O vento se espreguiça entre as nuvens: um mar infinito de nuvens. E no horizonte, o desmaio do sol. Não pensei que fosse tão alta... Sinto-a. Um estalido e o impacto macio de maçã madura em minha cabeça. Procuro-a e meus olhos pousam nela, embalando-se no balouço de sua frondosa macieira. Dilúvio de emoções; eu naufrago em felicidade... Eu a olho nos olhos a ponto de me ver refletida nos seus. A incredulidade, a mistura de sensações, a explosão encharcando solo seco. O Sorriso, há tanto sepultado... Por dentro, por fora, por dentro do dentro, eu resplandecia; cada poro da minha pele transbordava; eu borbulhava... Silêncio suportável! Arrisco um passo e os últimos raios se apagam e o que se segue me paralisa: folhas secas caindo, frutos murchos caindo, madeira seca partindo, raízes podres arrebentando e, ainda assim, ela sorria... A queda vertiginosa: engolidas pelas nuvens negras. Meu salto e as asas que me impedem de cair. A perda, o desespero, a dor; duplicados... A colisão.
Abro os olhos num susto. Algo se chocara contra a parede; madeira, macieira... Um trovão. A consciência. Não passara de ilusão cruel. O peso; o corte, já coagulado; a foto manchada em meu colo. Parecia tão real e, agora, essa dor triplicada... A certeza, a incredulidade, a certeza novamente: aglomerado de sensações num único átomo perdido no nada. Raízes me transpassam; eu, infértil, apodreço e a chuva continua com seus raios e clarões poderosos. O tapete, o brilho vermelho, as cicatrizes. Não ouço mais a macieira se contorcendo na dor que também é minha; ela tombara. Era minha vez. Tateio com a mão intacta o piso no escuro; um barulho familiar; pedaço afiado de matéria fria fragmentado... sou estilhaço lançado ao vento. Refaço os caminhos marcados na pele; dessa vez com cuidado para atingir o fluxo intenso. O suor da batalha me encharca os tecidos e o frio me aquece do calor das lembranças. E o fluído corre solto por entre meus cortes como num grito feroz de liberdade: era a hora de deixar a prisão. Inspiro; expiro; ouço o rugido diminuir. Se me perguntassem o porquê, diria que foi a ausência dela, o vazio deixado, a dor... diria ainda que é bom amar e que viveria tudo de novo, só para conhecê-la. Mas, agora, a fonte seca tranquila dando ao tapete um rubro escarlate... Eu venci. Fecho os olhos e... posso senti-la na água... posso senti-la na terra... posso senti-la no ar... posso senti-la aqui. A resposta que ecoa... “Foi seu silêncio que me fascinou!” Casulo murcho. Tombo.