HISTÓRIA DE UMA ALMA - A Aventura de uma Vida
* Esta é uma história real, de amor, arrependimento e perdão.
Como resumir oitenta e um anos de história em poucas linhas? Tarefa difícil esta que me cabe... com certeza muitos fatos e sentimentos importantes faltarão na história que me proponho a contar. Mas a história completa... ah! essa pertence apenas a Deus que a escreveu; e à alma que a protagonizou!
Era o ano de 1947, Nico, nascido em 1930, tinha apenas dezessete anos. Morava em um sítio em uma cidade do interior, quase divisa com outro Estado. O pai de Nico já estava no terceiro casamento (dos quatro que viria a ter ao longo dos seus cento e um anos de idade). Assim, a família de Nico era muito numerosa... quantos irmãos ele tinha? Aproximadamente vinte; e Nico era filho do primeiro casamento, sendo assim, um dos irmãos mais velhos.
Apenas dezessete anos, mas naquela época um rapaz nesta idade já era considerado adulto o suficiente, devendo casar, constituir família e ajudar seu pai a cuidar do sítio e criar seus irmãos menores. Apesar de ciente de suas responsabilidades, Nico não queria casar... o que ele queria era cavalgar pelos campos, namorar e aproveitar a vida que apenas iniciava!
- A Luíza está interessada em você, Nico – começaram todos a dizer-lhe com insistência – Moça boa, trabalhadeira... você devia casar com ela!
Luíza era a moça do sítio ao lado. Morena bonita, de olhos verdes... mas apesar da beleza, já era considerada velha e solteirona aos vinte e dois anos de idade. Lembremos que naquele tempo as moças casavam-se muito jovens, próximo dos quinze.
Luíza era uma moça muito boa, trabalhava com costuras e ajudava sua família.
- Uma ótima moça para casar! – todos diziam pressionando Nico, indiferentes à sua irritação devido à insistência.
Mas a verdade é que Luíza não estava apenas interessada em Nico... ela estava perdidamente apaixonada por ele! Sabia que Nico era o grande amor de sua vida e que ela nunca amaria a nenhum outro homem além dele. Sentia, no fundo de seu coração, que apesar da indiferença do rapaz, seus destinos estavam ligados até a morte. De alguma forma ela tinha certeza disso!
O que Luíza não sabia, era que seus sentimentos ainda a fariam chorar demais...
Mesmo contrariado, Nico se rendeu às responsabilidades de filho mais velho e aceitou casar-se com Luíza. Mas casou apenas no religioso, sem documentar no Cartório através do casamento civil. No sitio, naquela época, para aquele povo simples e religioso, era assim mesmo – o que valia era a bênção do padre!
A vida de casados começou com muita alegria para Luíza; e contrariedade para Nico. Ele não estava preparado para assumir um relacionamento sério, mas ninguém parecia se importar com isso. Todos lhe diziam que logo viriam os filhos e tudo então mudaria – Nico com certeza criaria juízo! Esta era a esperança.
Mas os filhos não vinham e Nico não amadurecia. O amor de Luíza era tanto, porém, que ela aceitava fazer “vistas grossas” às “escapadas” de Nico. Tudo para continuar mantendo-o ao lado dela. Assim, Luíza fingia que nada acontecia e o casamento prosseguia.
Sete anos se passaram. Nico começou a trabalhar como policial e foi destacado para uma cidade distante, no interior do Estado.
- Eu vou na frente, arrumo uma casa e depois volto para te buscar – disse Nico à sua esposa. E ela acreditou... e ela esperou... mas ele não voltou. (Pelo menos, não tão cedo.)
E o motivo de Nico não voltar foi porque ao chegar no local onde deveria viver e trabalhar, logo conheceu uma outra morena bonita, de nome Vera. Esta era mais jovem que ele alguns anos, e trabalhava como enfermeira. Pela primeira vez Nico sentiu verdadeira vontade de se unir a alguém, e assim, pediu Vera em casamento – esquecendo-se de um "pequeno detalhe": ele já era casado e Luíza esperava seu retorno.
Mas esse "detalhe" não foi empecilho para Nico, que enfim estava apaixonado pela primeira vez em sua vida. Ele então resolveu tudo casando-se com Vera apenas no civil. E assim, sem nem imaginar que seu marido já era casado no religioso com outra, Vera iniciou sua vida conjugal com o policial Nico.
Sete anos se passaram. Para tristeza de Nico, ele e Vera ainda não tinham filhos – exatamente como ele e Luíza. Mas agora era diferente, Nico queria muito constituir família com Vera, por quem nutria um sentimento de paixão e posse. Assim, o casal resolveu consultar um senhor espírita que trabalhava com garrafadas feitas de ervas naturais. O “remédio” foi certeiro e enfim Vera conseguiu engravidar. Vieram então quatro filhos – três garotos e uma menina. Era uma família muito bonita, as crianças faziam “escadinha” tendo diferença de dois anos entre uma e outra.
O primeiro filho tinha o mesmo nome do pai – Antonio. Já o segundo filho, Vera havia escolhido chamá-lo de Júlio... mas subitamente Nico lembrou-se de uma morena de olhos verdes que havia ficado em seu passado, e assim “bateu o pé” e convenceu sua atual esposa que o garoto deveria se chamar Luíz. Esta era uma homenagem silenciosa que Nico fez a aquela que ainda esperava seu retorno... mas é claro que Vera não sabia de nada disso naquela época – e nem poderia saber!
Muitos anos se passaram, as crianças cresceram, Nico trabalhou muito como policial, despachate de veículos, vendedor de doces... até com política ele se envolveu! Mas enfim se aposentou como policial – profissão que nunca deixou. E foi neste momento, para sua infelicidade, que sua esposa Vera tomou uma decisão: ela não agüentava mais tanto ciúme e amor possessivo por parte Nico. Vera havia passado tanto nervosismo com seu esposo ao longo dos anos, que já havia até desenvolvido uma úlcera gástrica. Assim, ela teve que fazer uma escolha: seu casamento ou sua saúde... e ela escolheu a saúde. A esta altura ela também carregava muitas decepções, pois já sabia do passado do marido e da mulher que ele havia deixado esperando-o.
Vera então pediu a separação, o que deixou Nico arrasado. Tão arrasado que resolveu ir embora, ficar longe... tentando em vão fugir do sofrimento de perder a única mulher que sempre amou.
Assim Nico mudou-se sozinho para a capital, sem saber as surpresas que o destino lhe reservava...
Dizem que tudo que está mal resolvido em nossa vida, segue a tendência de um dia retornar. É a oportunidade que Deus nos dá para tentarmos resolver aquilo que no passado não soubemos lidar... e assim foi com Nico e Luíza.
Certa tarde, caminhando por uma rua do centro da cidade, a mão do destino faz com que Nico desse de frente com sua primeira mulher Luíza. Quase trinta anos haviam se passado, no entanto, o reconhecimento foi imediato.
Apesar de cada um ter o coração disparado devido à surpresa; decidiram parar para conversar. Luíza estava exultante de alegria! Havia passado todos aqueles anos rezando para que Nico voltasse, e sabia no fundo de seu coração que ele com certeza um dia voltaria! E agora era o momento... o grande amor de sua vida estava de volta, bem à sua frente!
A partir deste reencontro, passaram a se ver com freqüência. Nico lhe fazia visitas constantes, e ela, que tinha um amor tão grande ao ponto de tudo perdoar, estava empenhada em fazer com que ele voltasse para sua vida – desta vez para sempre!
Luíza nunca se casou e nem teve filhos. Trabalhou muito como costureira durante toda a sua vida. Fazia vestidos de noiva, e assim comprou sua própria casa na cidade e cuidou de sua velha mãe até seu falecimento aos noventa e dois anos de idade.
Houve uma época que Luíza adoeceu... não sabe direito explicar o que teve, só sabe que ficou internada por nove meses recebendo tratamento mental. Alguns diziam que estava louca, outros falavam em depressão profunda pela falta de Nico. Mas para Luíza isso era passado, agora o único homem que havia amado estava de volta à sua vida – e esta era a única coisa que lhe importava!
Nico não era mais o rapaz irresponsável do passado, dado a orgias e jogos de azar. Era agora um senhor aposentado, responsável e acima de tudo, arrependido. Queria muito consertar seus erros e se reconciliar com todos, sobretudo, com Deus. E ele sabia que para isso precisava quitar seus débitos com todos aqueles que havia feito sofrer. E a pessoa que mais havia chorado por ele, era sem dúvida, Luíza.
Nico já havia perdido Vera definitivamente. Assim, resolveu que era hora de dar exemplo a seus filhos que iniciavam a vida adulta. Sabia que tinha muitos erros em seu passado, e não queria que seus filhos seguissem seus caminhos tortos... A religiosidade, fruto do arrependimento sincero, nasceu no coração de Nico, e este, tal como o filho pródigo, clamava pelo perdão do Pai Celestial.
Mas Nico sabia que o perdão é concedido a aquele cujo arrependimento é sincero, e assim, resolveu devotar todo o resto de sua vida para se redimir de seus erros, mesmo que isso implicasse em sacrifícios pessoais. E foi por isso que Nico resolveu fazer a separação oficial com Vera e casar-se mais uma vez com Luíza, desta vez, de papel passado. E ela o recebeu de "braços abertos"! Para Luíza, suas preces haviam sido enfim atendidas.
Como falei no início, esta é uma história de amor... um amor tão grande capaz de tudo perdoar...
Anos se passaram. Nico em sua juventude foi materialista e até mesmo avarento, negando comida inclusive a crianças... em sua velhice tentou recompensar tudo isto através da doação constante de cestas básicas, marmitas aos necessitados, bujões de gás... onde ia carregava sempre consigo - no mínimo - um pacote de bolachas. Viajar com Nico significava parar o carro toda vez que se avistasse um mendigo caminhando pelas estradas. Nico sempre tinha algo a oferecer aquele que tivesse fome.
Nico se apegou à leitura da Bíblia e à oração diária do terço. Não vivia mais para si mesmo, mas sim, para Deus e seu filho Jesus. Desta forma ia com freqüência visitar seus filhos e convidava-os sempre às orações.
- O pai virou um fanático religioso – reclamavam os filhos, sem entender os motivos que levavam o velho Nico a agir assim.
Nico costumava dizer que sua vida daria um livro; e que tinha tantos fatos para contar, que nem mesmo seus filhos conheciam todas as suas histórias. Principalmente suas “aventuras” como policial.
Luíza, que era mais velha que ele, já havia então alcançado os oitenta anos, quando teve um derrame. Nico permaneceu ao seu lado. Visitava-a diariamente no hospital, e quando ela voltou para casa, ele mesmo cuidou dela, dando-lhe banho, comida na boca e até mesmo trocando suas fraudas. Nico reclamava? Não! Ele sabia que devia tudo isto a ela. E ela, com tanto carinho e cuidado, se recuperou rapidamente, para poder viver ao lado do homem que tanto amava.
E assim seguiram a vida juntos, os dois velhinhos sentados em suas cadeiras de balanço na varanda, rezando juntos diariamente o terço à Nossa Senhora, mãe de Jesus. Sabemos que em suas orações Luíza pedia ainda muitos anos de vida ao lado de seu marido – apesar de seus mais de oitenta anos de idade.
Mas uma manhã em que Nico acordou muito feliz e contente, poucas horas depois ele teve um acidente. Nico caiu. Sua força e equilíbrio já não eram os mesmos de sua juventude, quando ele era policial... Ele caiu de um local alto e bateu a cabeça com muita força. Foi levado então ao hospital e após exames, os médicos disseram que o resultado do raio-x parecia um “quebra-cabeça” devido ao grande número de fraturas em seu crânio. Nico teve traumatismo craniano aos oitenta e um anos de idade. Um quadro muito grave! Mas quem ama sempre tem esperança... e este era o caso de toda sua família.
- Por que essas coisas acontecem às pessoas nesta idade? O pai não poderia simplesmente morrer de velhinho numa cama quentinha, despedindo-se daqueles que amou e que também o amaram? – perguntava-se o filho Luíz, que foi sempre o filho mais próximo de seu pai.
E eu, que conto esta história, neste momento de reflexão junto ao meu marido Luíz, tive uma visão mental muito rápida, onde vi meu sogro com sua farda de policial batendo muito com seu cacetete em um rapaz já caído no chão. Falei da minha visão para meu esposo, e ele então me contou uma das muitas histórias da vida de seu pai.
- De fato – disse meu marido – o pai contava que uma vez bateu tanto em um rapaz com o cacetete, que ao final o rapaz nem conseguia se levantar do chão. Esse rapaz jurou o pai de morte. Mas então mudamos de cidade e nunca mais o vimos.
Diante deste fato, não é possível afirmar nada com certeza absoluta, mas apenas refletir... penso que meu sogro, ciente de todos os erros e desvios de sua juventude, nutria um desejo tão forte de resgatar suas faltas, que até mesmo neste último ato de sua vida aceitou passar por esta situação de fraturas, semelhante a aquela que um dia infringiu a alguém. É claro que é uma decisão a nível espiritual, visto que em nosso íntimo sabemos dos erros que cometemos e o que é preciso fazer ou passar para livrar nossa própria consciência das culpas que nós mesmos carregamos.
Após duas semanas internado, Nico “partiu”. Sua esposa Luíza ainda está viva, com oitenta e seis anos. Diz que agora não tem mais motivo para viver e que está pronta para ir embora quando Deus desejar levá-la. Seu grande amor já foi na frente, preparar sua nova casa, e em breve virá buscá-la... novamente ela está a esperar...
Vera também chora por aquele que um dia foi seu esposo, é pai de seus filhos e após a separação, se tornou um grande AMIGO, sempre presente.
Contar esta história é minha maneira de homenagear esta pessoa que passou por nossas vidas e muito nos ensinou, principalmente no que se refere ao arrependimento sincero e às atitudes voltadas para o bem que todos nós podemos começar a praticar a partir de hoje. Nunca é tarde para um exame de consciência e mudanças reais desde já... lembremos que nosso tempo, só Deus o sabe...
Oitenta e um anos podem parecer metade para aquele que os viveu, visto a rapidez com que o tempo passa para nós, que aqui estamos limitados às leis físicas e materiais que nos impõe o tempo e a distância. Mas Nico agora vive em outro plano, livre para ir e vir na velocidade do pensamento, e assistir a aqueles que amou, cuja aventura da vida ainda continua...
“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, pois se você parar para pensar, na verdade não há...”
Homenagem ao meu sogro Antonio (Nico) * 1930 + 2011.