O Curió, a rosa e a Orquídea
O romance começou com uma brincadeira.
Vinham da escola caminhando como quem não quer nada, esgueirando-se pelos cantos dos muros á procura de uma sombra que insistia em esconder-se em cada esquina.
Ela era linda, pele alva, cabelos cacheados que roçavam-lhe a cintura, arrepiando os pelos lisos que formavam um manto dourado na pele clara.
Ele, um rapaz comum, como tantos outros, que encantavam-se com a beleza de Dorinha.
Assim ela gostava de ser chamada, apelido carinhoso que recebeu desde o nascimento e assim era conhecida em toda cidade.
O corpo bem formado, lhe dava um molejo natural ao andar, bem diferente das outras meninas de sua classe.
Ele chamava-se José Antônio, nome recebido de uma mistura do pai com o avô, rapaz de boa família, donos da única sapataria da cidade, que recebia seu sobrenome em uma placa bem grande com letras garrafais, ” Cunha sapatos”.
E lá iam os dois, andando bem pertinho um do outro, conversando sobre professores e matérias, bem alheios ao tempo quente.
Entraram pela “Rua dos ricos” rua que ela assim apelidara por ter o maior número de casas bonitas por metro quadrado em toda Blumenau.
Ali ela sonhava e maravilhava-se com uma realidade que não lhe pertencia, mas , sonhava em um dia, sabe Deus de que maneira, infiltrar-se.
Gostava das cores, dos jardins bem cuidados, dos aromas vindos das enormes cozinhas , que atiçavam sua fome,todos os dias, justamente na hora que saía da escola, olhava tudo, espremia muitas vezes o rosto nas grades para tentar ver mais de perto, e volta e meia era expulsa ou pelos cães ou pelos empregados, que percebiam sua aproximação.
Mais uma casa em especial lhe chamava a atenção, uma grande chácara, com grandes muros, ficava no alto da ladeira de onde podiam ver uma parte de um grande fosso, uma placa fincada no concreto alertava, “Perigo, não se aproxime, fosso das serpentes” e ali debruçada no muro, na pontinha do pé, Dorinha perdia-se nas horas vendo as enormes serpentes arrastando-se pelo fosso artificial, lá em baixo, separando a enorme casa, com o quintal coberto de frondosas árvores de sombra fresca do famoso Bothanico que ali vivia, da realidade quente da “Rua dos ricos”.
Neste dia, ao passar pela casa rosa, uma das preferidas de Dorinha, avistaram uma roseira vermelha, que perfumava o ar em frente a casa, as grades altas do portão da casa, frustavam Dorinha de qualquer tentativa de aproximar-se da roseira. Foi quando ela teve uma idéia.
_ José Antônio, quer namorar comigo?
Sem titubear , José antônio respondeu no laço.
_ Claro Dorinha, é o que mais desejo, mais quero, mais ...
O dedo em frente os lábios com o som de pedido de silêncio fez José Antônio se calar.
_ Não é bem assim que a banda toca.Para me namorar terá que passar por três provas.
José Antônio não gostou muito da idéia das 3 provas, ele e todos na escola , já sabiam da fama de enroladora de Dorinha, que deixava os meninos aos seus pés e no final das contas, nem um beijo.Dando uma de esperto, José Antônio, disse, tudo bem , passo pelas 3 provas, mas, no final da primeira, já quero um beijo.
Dorinha pensou, pensou , e respondeu:
_Negócio fechado, no final da primeira prova ganhará um beijo, ao final da segunda prova, poderá dizer a Deus e ao mundo que és meu namorado e no final da terceira prova,dou-lhe minha palavra... caso-me com você.
Ele não pensou duas vezes em aceitar a proposta da maquiavélica Dorinha.
_ Pois bem, a primeira prova é a mais fácil, quero uma rosa desta roseira ali.
José Antônio, olhou para as grades, percorreu a extensão do muro a procura de um suporte para subir ou algo parecido, mas não tinha nada para facilitar sua escalada, perguntou se não podia simplesmente tocar a campainha e pedir uma rosa, mas Dorinha não deixou.
Dorinha, sentou-se a sombra do outro lado da rua, para ver a desenvoltura de “José Antônio” ao invadir o casarão.
Primeiro ele olhou para o interior da casa, para ver se não vinha ninguém.
Subiu pela grade desajeitadamente para alcançar o topo do Gradil.
Olhava de vez em quando para Dorinha, para ver se ela continuava por ali.
Chegou ao outro lado da grade, e rapidamente pegou uma flor, ferindo-se em seus espinhos, foi quando ouviu o ladrar dos cães.
José Antônio correu em direção ao portão e nunca subiu tão rápido em algum lugar, os cães alcançaram rapidamente o muro, mas, José Antônio apesar de ter os cotovelos e anti-braços esfolados pelo muro chapiscado, conseguiu chegar nem tão são, mas salvo do outro lado do muro.
Dorinha, levantou-se caminhou em direção a José Antônio e disse, vim pagar minha dívida, minha palavra vale mais que um fio de bigode.
Abraçou, José Antônio, não ligando para o sangue que sujava sua camisa branca da escola, e deu-lhe um beijo “Hollywoodiano”.
Assim começava a história de amor de Dorinha e José Antônio.
Durante meses, os dois fizeram o mesmo trajeto e todos os dias José Antônio, já um namorado oculto, perguntava quando seria a próxima prova, pois não aguentava-se de paixão por Dorinha e de ciúmes ,quando os outros meninos empolgados, vendo-o como um amigo próximo da menina, pediam um empurrãozinho para namorarem Dorinha, e o mesmo , em um segredo angustiante e cortante, guardava de todos a verdade sobre o amor que sentia e achava ser retribuido.
Até que um dia, Dorinha passou pela “Rua dos ricos” e ouviu um canto que a encantou.
Olhou pelas árvores, pelos jardins, perseguiu aquela canção que parecia uma sinfonia dos mais afiados violinos aos seus ouvidos, até que localizou em uma gaiola grande, um curió solitário, que cantava alegremente, entre as sombras do quintal de uma linda mansão.
Dorinha parou estasiada, parecia hipnotizada pelo canto do pássaro.
José Antônio, ao seu lado, falava sem parar e sem se dar conta do encanto da moça pelo pássaro.
Foi quando ela pediu silêncio, colocando os dedos delicados nos lábios de José Antônio, e disse:
-Já tenho a segunda prova.Liberte o pássaro.
José Antônio, desejava que ela fosse assumidamente sua namorada, mas, acabara de ver, um homem no quintal da casa, e ele era um rosto bem conhecido, era cliente da sapataria.
José Antonio,logo negou o pedido de Dorinha, que não ligou, olhou com um olhar frio como o fio de uma faca bem amolada e disse:
- Tudo bem, certamente, não faltarão pretendentes para me namorar em nossa escola e com muito mais coragem que você.
José Antônio, não podia deixar isso acontecer, abriu o portão da casa, como um ativista ecológico, invadiu o quintal, correu até a gaiola que prendia o pássaro, e em um gesto rápido , libertou-o sob o olhar de sua amada.
O dono da casa, ao ver a estranha movimentação em seu quintal, pegou sua arma, e descarregou-a em direção a José Antônio.
Dorinha não correu, ficou a espera do amado, ansiosa e excitada com toda aquela aventura arriscada.
Por sorte, nenhum dos tiros alcançou José Antônio, que correu ao lado de Dorinha por três quarteirões.
No dia seguinte, bem cedo, com a neblina matutina das manhãs de outono, todos estranharam na escola, o casal de pombinhos, agarradíssimos, na entrada da escola.
Os olhares eram uma mistura de curiosidade e de desconfiança, todos sabiam, o quanto Dorinha era astuciosa e desconfiavam que algo poderia estar acontecendo ali.
Dorinha, abraçava-se com José Antônio, mostrando um orgulho repentino do rapaz.
E assim os anos foram passando, um, dois, três ,quatro anos.
Dorinha , já era uma adulta, fazia faculdade, e continuava uma moça linda linda.
José Antônio, trabalhava dia e noite para sustentar os desejos de Dorinha.
Buscava-a diariamente na faculdade e já fazia planos para o casório.
Não tinha nenhuma dúvida do amor por Dorinha.
No dia do seu aniversário, quis fazer-lhe uma surpresa, parou em frente a casa onde havia começado o romance, bem pertinho do muro onde tudo começou, abriu a porta do carro, e como um felino em fuga, saltou sobre a grade, e pegou uma linda rosa, e novamente fugindo dos cães, saltou o muro de volta e entrou no carro com a rosa.
Dorinha, bateu palmas de felicidade, e surpreendeu-se ao ver o lindo anel que o romântico José Antônio, colocou entre as pétalas da linda flor , para, pedí-la em casamento.
Dorinha, sorriu, agradeceu ao amado, mas disse:
_ Para isso, terá que passar pela terceira prova.
José antônio, não acreditava no que estava ouvindo, depois de tanto tempo, Dorinha persistia naquela história infantil, ficou chateado, emburrado, mas disse:_Tudo bem Dorinha , de mais longe já viemos, me diga o que queres que eu faça , já corri de cães, de balas, já lhe dei flores muito mais lindas e perfumadas que as que me pediu, mas , diga lá, farei a terceira prova.
Dorinha, desceu do carro, e subiu a ladeira da “Rua dos ricos”, circulando o enorme muro da casa do botânico , que tinha o fosso das serpentes.
Bem no cantinho, em um tronco abandonado, metade na água, metade no solo, uma linda orquídea branca , florescia entre as serpentes do fosso.
Dorinha apontou, e com aquele olhar de Vil metal, disse para José Antônio:
_Quero ela!
_O quê? Respondeu assustado José Antônio não acreditando em seus ouvidos.
_Enlouquecestes? Quer que eu morra?
_ Ou a orquídea, ou não tem casamento, preciso dela José Antônio, há anos acompanho esta flor, a vejo pelos 11 dias em que ela floresce desde os meus seis anos, quando minha mãe me levantava para me dizer que um dia ela seria minha, desejo esta flor mais que tudo em minha vida.
_ Sem problemas Dorinha, é ela que você quer? Vamos até o dono e vamos pedir a ele.
_ NÂAAAOOO! Gritou Dorinha, deste jeito não tem graça, flor tem que ser roubada.
_ Dorinha, não vou entrar aí nem por nada, você deve procurar um médico para acabar com sua obsessão. Eu posso te ajudar,amanhã mesmo irei pegar o telefone... O dedo delicado de Dorinha interrompeu a fala de José Antônio.
_ Sem flor, sem casamento.
Os dois voltaram ao carro chateados com o ocorrido. José Antônio parecia desnorteado, amava Dorinha mais que tudo, mas não estava doido ainda, e Dorinha parecia frustrada, seus olhos estavam marejados de lágrimas como José Antônio nunca tinha visto, mas ao descer do carro ela escorou sob a porta do motorista e disse;
_ Tudo bem , José Antônio, não vou mais te perturbar com isso, aceito casar-me com você, mas fique certo, não desistirei da minha flor.
José Antônio, ficou pensativo com a condição mental de sua noiva, mas, seu amor por Dorinha era maior que todo amor do mundo, e seu desejo por tê-la em seus braços durante todas as noites de sua vida , lhe enchiam de coragem e sonhos.
Nunca , um homem trabalhou tanto em Blumenau, como José Antônio durante aquele ano, seu melhor amigo Alberto, esteve internado dias e mais dias, com uma doença misteriosa e nem uma folga para visitar o amigo José Antônio tirou, nem mesmo foi vê-lo quando se convalesceu.Aquele ano , seu nome era trabalho.
As festividades do casório, foram marcadas para 1 ano depois, e toda a cidade fora convidada para a festa do curioso casal que surpreendeu a todos na escola com sua união repentina, mas, duradoura.
A igreja lotada, não cabia mais ninguém, a noiva, que devia estar linda, estava a meia hora atrasada, deixando José Antônio impaciente com a demora.
Um menino, veio entrando pela porta da igreja, com um pedaço de papel de pão em uma das mãos.
Veio andando, sorrateiramente, chamando a atenção dos presentes, sem saber que carregava um fardo pesado para toda a cidade em suas mãos.
As mãos trêmulas de José Antônio, logo conheceram a letra de Dorinha.
O bilhete bem escrito dizia o seguinte:
“ José Antônio , meu amor, hoje é um dia muito especial para mim, pois vou me casar com o homem que amo, me aguarde, mas antes, tenho uma promessa a cumprir, e você sabe que promessa pra mim é dívida. No ano passado, quando negou-me a flor, ao deixar-me em casa, liguei para o nosso padrinho Alberto e contei toda a minha chateação com a história da flor, e prometi ao mesmo que , se pulasse no fosso e pegasse a Orquidea pra mim, seria dele no dia de nosso casamento, antes mesmo de ser sua, ele aceitou na mesma hora,e mesmo sendo picado por uma serpente venenosa, não esqueceu de me cobrar minha promessa, o que eu não imaginava era que sua imaginação sexual fosse nos levar a uma aventura, no mesmo local onde foi picado, enfim, vou me atrasar por conta de sua covardia, mas,te perdôo, me espere, pois te amo, e é com você que eu quero ficar, e sei que também irá me perdoar, pois minha palavra vale mais que um fio de bigode”
Fechando o bilhete cheia de orgulho de sua palavra e certa do perdão de José Antônio, Dorinha não imaginava o ódio que turvaria o coração de José Antônio naquele momento.
Saiu da igreja, enfurecido, e sob o olhar curioso dos amigos e parentes de ambas as partes, foi marchando rapidamente em direção a “rua dos ricos”.
Subiu a ladeira do fosso, como era conhecido aquele pedaço da rua, e deparou-se com Dorinha, com o vestido de noiva levantado, encostada no carro de seu ex-amigo e ex-padrinho Alberto, em uma cena de paixão que nunca imaginara em sua vida.
O amigo ao vê-lo empalideceu na hora.
José Antônio gritou com Dorinha chamando a atenção dos trausentes.
_ Sua Vadia, venenosa, assim que me paga todo meu amor e dedicação?
Com o olhar gélido que José Antônio já conhecia, ela disse, achando-se cheia de razão:
_ Te disse que achava alguém com mais coragem que tu, meu nome é Dorinha, não é bagunça.
O enfurecido José Antônio pegou os dois com as mãos calejadas de tanto trabalho e disse;
_ Seu nome não é Dorinha, é Maria das Dores, mulher ingrata, dissimulada, e seu nome é Alberto, mas deveria ser substituido por traidor, peçonhento, venenoso, se não morreu com a picada da cobra da primeira vez, de certo, não sobreviverá a segunda.
E com um só golpe, jogou os dois, do alto do muro, dentro do fosso de serpentes.
José Antônio, viu os corpos dos amantes sendo envoltos pelas gigantescas serpentes , ouvindo o estalar de ossos e ainda viu , Dorinha quando esta, em seu ultimo suspiro ,esgueirou-se em direção a orquídea branca que aos 11 dias daquele ano sombrio, florescia imaculadamente, alheia a perversão humana.
Izabelle Valladares