Retalhos

As noites no orfanato consistiam das horas mais animadas do dia. Era o momento em que as crianças, exaustas depois de um dia de estudos e atividades ao ar livre, escolhiam seus brinquedos preferidos, que ficariam com elas até a manhã do dia seguinte. As bonecas passavam o dia se arrumando, ajeitando suas roupas e maquiagem para serem escolhidas pelas meninas mais prendadas; soldados limpavam suas armas e carrinhos enceravam suas latarias para serem escolhidos pelos meninos mais travessos. Todos viviam unicamente para aquelas poucas horas entre o pôr e nascer do sol; todos os brinquedos, pelo menos.

Mas não naquela noite.

A morte do Garoto pegara a todos de surpresa e cobrira o lugar de luto. Não haveria brincadeiras aquela noite, e nem nas sete subsequentes; todas as crianças ficariam trancadas na capela, rezando pela pobre alma daquele que as havia abandonado. Atropelado por um caminhão enquanto atravessava a rua para pegar uma bola. Uma morte verdadeiramente trágica, apesar de patética.

“Olha como ela está acabada,” cochichavam as bailarinas, demasiadamente fúteis para compreenderem qualquer coisa que não fossem seus próprios egos.

Mas elas tinham razão. Estava mesmo acabada.

Ela passara o dia inteiro sentada na janela, olhando para o pátio vazio; as gotas de chuva que escorriam pelo vidro poderiam bem ser lágrimas escorrendo de seus olhos de botão. Não era uma bonequinha de luxo, mas uma simples boneca de pano; totalmente acabada. A pele, que um dia já fora de um linho branquíssimo, se encontrava completamente encardida, tantas manchas de lama e gordura que quase a tornavam uma boneca morena; o vestido rosa, estampado com tema de gatinhos, perdera seu brilho, tão rasgado e sujo que mais parecia um trapo velho; os cabelos, antes sedosos fios de lã negros, já não mais existiam, apenas alguns poucos fiapos que insistiam em se manter costurados no topo de sua cabeça; os dois grandes botões negros de seus olhos já não lhe davam mais um olhar expressivo e meigo, capaz de derreter os corações mais gelados - já não passavam mais de simples botões sem graça, lascados e quase se soltando do pano; a linha vermelha de seu sorriso angelical já quase toda descosturada, apenas um ponto vermelho em seu rosto, de onde se dependurava um fio sem vida. Os outros brinquedos sentiam pena dela. Certamente ninguém mais a escolheria para brincar.

Num canto escuro, no local mais inacessível da estante de bonecas, um pierrot a observava.

“Não fique assim amiga. Ele só te fazia mal. Eu nunca gostei daquele menino” lhe dizia uma bonequinha de rosto branco e bochechas rosadas, que falava com um grande sotaque estrangeiro. Mas ela não lhe escutava; estava perdida demais em sua solidão para ouvir qualquer coisa.

Sua relação com o menino morto era bem estranha. O Garoto já não tinha idade para brincar de bonecas; ele já não tinha idade para fazer muitas coisas. Mesmo assim, a boneca de pano era seu brinquedo preferido. Gostava tanto dela que era algo até doentio; não permitia que nenhuma criança chegasse perto dela, chegando a escondê-la durante dias debaixo de uma pedra no pátio para que ninguém mais a encontrasse, e até mesmo a bater numa menininha mal saída das fraldas que insistia em brincar com ela. Lógico que quando fazia essas coisas as monitoras o deixavam de castigo, e a boneca era oferecida às outras crianças, mas ninguém a aceitava; todos tinham medo da falta de noção do Garoto e do que ele poderia fazer com elas quando descobrisse que haviam brincado com sua boneca. “Sua Boneca”. Era assim que ele chamava a bonequinha de pano que todos tinham medo.

Mas os castigos não eram suficientes para por fim à paranoia do garoto. Assim que se via livre, pegava Sua Boneca e lhe “aplicava uma lição”, como gostava de dizer. Essas lições normalmente consistiam em arrastá-la pelo chão do pátio, enterrá-la em cocô de cavalo, jogá-la de encontro às paredes do quarto; o que de mais bárbaro e macabro lhe passasse pela cabeça naquele momento. Afinal, ele tinha certeza de que ela havia brincado com outras crianças, e tinha que aprender de que era apenas Sua Boneca. Dele e de mais ninguém.

E, enquanto a maltratava, o pierrot, sozinho em sua prateleira, observava.

“Não fique desse jeito, ele só te maltratava! Você devia era estar feliz! Vamos, anime-se!” lhe dizia o sempre sorridente Ursinho, sempre tão feliz que dava pulinhos ao invés de caminhar. Para o Ursinho, todos os dias eram uma festa: afinal, todas as crianças queriam brincar com ele. Ela se virou e sorriu para ele, o fio pendurado levantando-se alguns milímetros, e voltou a olhar pela janela.

Ela nunca mais iria brincar com outra criança; tinha certeza disso. O único que iria querer aquele trapo de pano era agora uma geleia de carne sete palmos abaixo da terra.

Só não passava pela cabeça dela que aquela geleia de carne era o único motivo dela ter se tornado um trapo.

A noite ia chegando ao fim, e os brinquedos começavam a voltar para suas estantes e caixas. Logo as monitoras chegariam para limpar o lugar, e certamente achariam estranho os brinquedos desarrumados numa noite em que nenhuma criança havia entrado ali.

Ela continuava na janela, sem forças para sair do lugar. A lua já sumia do céu, e os primeiros raios de sol já podiam ser avistados no horizonte. A chuva dera uma trégua; as lágrimas continuavam a cair. Não se lembrava de se sentir tão triste quando se havia tantos motivos para se alegrar. Aquele que a machucava, torturava, magoava...aquele que partia seu coração enquanto jurava que tudo que queria era protegê-la...aquele que arrancava o sorriso de seu rosto enquanto dizia que a queria fazer feliz...já não mais existia.

Aquele que era o único que brincava com ela...

Empurrada por seus amigos, ela começou a andar. Um passo preguiçoso, automático, sem vida...completamente alheia a tudo que acontecia em sua volta. Tão alheia que nem percebeu que um fiapo de seu pano ficara preso no trinco da janela. Continuou a andar, devagar, naquele seu movimento constante e sem vontade...e sem vontade o fio foi se esticando e aumentando de tamanho, a costura sendo desfeita a cada passo. Andando cada vez mais devagar...até cair, já sem vida. Uma grande chaga no peito deixava escapar toda a espuma de seu enchimento. Aterrorizados, todos a deixaram de lado e continuaram a dirigirem-se para seus lugares. Não havia mais nada a ser feito.

Ninguém notou que, naquele momento, o pierrot descia de sua prateleira.

Quando as mulheres finalmente entraram, tudo estava em seu devido lugar:as bailarinas em cima da mesa; os carrinhos e soldados na caixa de brinquedos; as bonecas e ursinhos nas estantes. Não havia nenhuma boneca rasgada perto da janela; nenhum pierrot no alto da estante.

Nenhuma das mulheres deu pela falta dos dois brinquedos.

Através dos dutos de ventilação, ele a levou para o porão da casa, lugar que já fora um tipo de cineminha mas que hoje, com a diminuição das verbas da instituição, era um local apenas frequentado por ratos sem moradia e gatos famintos. Ali poderiam passar o tempo que fosse sem serem incomodados.

Após preparar um lugar confortável para colocá-la, uma caixa com alguns restos de pano e serragem, a primeira coisa que o pierrot fez foi arrancar seus olhos; não queria que a qualquer momento ela acordasse e tentasse fazer algo estúpido. Então, com muito cuidado, descosturou os dois pedacinhos de plástico que um dia já foram grandes e belos botões e os deixou de lado, tão destruídos e sujos que estavam que bem podiam serem confundidos com o cocô de rato que infestava o chão do lugar. Ele contemplava o estado deplorável da boneca; não conseguia imaginar como podiam fazer tanto mal a uma criatura que, mesmo irreconhecível, ainda conservava parte de sua antiga beleza.

Ele então a deixou ali, deitada na caixa, pois precisava buscar algumas coisas; pediu para que um dos gatos do local a vigiasse. Enquanto gatos são amigos dos brinquedos e facilmente pode-se encontrá-los dormindo ou brincando com eles, ratos já não são tão amorosos; uma boneca de pano aberta seria um lugar ideal para uma rata prenha, e os pequenos (e até mesmo alguns maiores e mais crescidos) ratinhos tinham a horrorosa mania de roerem seus lares até a quase total destruição deles. Não podia deixar que isso acontecesse a ela.

Se esgueirando pela ventilação, conseguiu chegar à lavanderia. As máquinas trabalhavam a todo vapor, e num banco mais afastado algumas mulheres jogavam cartas, esperando o tempo passar para que pudessem pegar os lençóis limpos e pendurá-los no varal do pátio. Olhou para o temporizador de cada uma delas, procurando qual máquina iria terminar seu trabalho antes. Não tinha muito tempo. Se esgueirando por detrás das estantes, ele rapidamente encontrou aquilo pelo qual procurava: uma escovinha e um pedaço de sabão. Amarrou ambos às costas com um pedaço de barbante e iniciou seu caminho de volta, esgueirando-se pelas estantes e subindo pelas máquinas até alcançar o duto de ventilação. Assim que fechou a grade protetora, a máquina logo abaixo de onde estava apitou, e logo uma das moças apareceu para esvaziá-la. Inconscientemente, se fingiu de morto, um pequeno palhaço sentado sorrindo no duto de ventilação, carregando uma escovinha e um pedaço de sabão nas costas. Ela nem notou sua presença; poderia estar fantasiado e dançando a ula que assim mesmo ela não notaria que estava ali.

Assim que a mulher se afastou, continuou sua caminhada de volta para o porão. A boneca se encontrava na mesma posição que a deixara; o gato deitado ao seu lado, fingindo que dormia, na tentativa de conseguir um almoço gordo e não muito esperto. Com certo esforço, o pierrot a tirou da caixa e levou-a até uma torneira que havia ali no canto; mesmo que enferrujada e coberta de teias-de-aranha, ainda funcionava, e, ao ser acionada, um feixe de água limpa começou a fluir de encontro ao chão, se empoçando entre os tacos soltos do assoalho.

Então, com a escova e o sabão, ele começou a limpá-la. Esfregava-a com toda força e vontade; cada movimento da escova uma absolvição; cada bolha de sabão um pecado desprendendo-se do corpo. Como uma criança, estava cheia de pecados das quais não tinha culpa. Não poderia começar uma nova vida até que estivesse completamente limpa.

Após incontáveis esfregadas, finalmente tinha terminado. Seus braços doíam de tanto esforço, mas não pôde deixar de sorrir com o resultado: finalmente estava limpa, tão alva e pura como no dia em que a vira pela primeira vez; a noite de natal em que a trouxeram para a sala de brinquedos.

Com a ajuda de seu amigo gato, pendurou-a embaixo da pequena janela que dava para o pátio, único local em todo o cômodo que recebia alguns fracos raios de sol. Precisava de todo sol que pudesse conseguir; não apenas para que não acordasse cheirando a mofo, mas para que acordasse mais feliz e animada do que quando tombara sem sentidos. Mas talvez fosse só uma vã esperança; dificilmente poderia acordar pior do que já estava.

Havia ainda mais algumas horas de sol, e o pierrot resolveu descansar um pouco antes de continuar seu trabalho. Ele se deitou, a cabeça encostada no corpo do gato, e se deixou ser pego pelo sono. Sonhou com crianças; elas brincavam com ele, o levavam para lanchar, o abraçavam quando iam dormir. Sonhou com mundos sendo desvendados, tesouros sendo descobertos, elas felizes e sorridentes, o abraçando e agradecendo por ser um amigo tão maravilhoso. Sonhou que tomava chá com a boneca de pano, seus lindos olhos de botão vidrados nele, ela sorrindo e lhe pedindo para que passasse o açúcar. Foi um sonho muito bom.

Quando acordou, já era noite. Podia ver as estrelas brilhando através da janela, a lua jogando seus pálidos raios sobre a boneca pendurada; dava-lhe uma beleza única, difícil de explicar, que o deixava absurdamente abobalhado. Poderia ficar contemplando-a durante horas, mas não havia tempo; precisava se mexer rápido. Então deu um grande suspiro e, mais uma vez, se embrenhou pelos dutos de ventilação.

Após uma longa caminhada, finalmente chegou ao lugar que procurava: a sala de costura. Era estranho vê-la daquele jeito, completamente vazia; normalmente estava sempre cheia, em qualquer horário, adultos e crianças atarefados cortando e cozendo e costurando e limpando. Gostava sempre de ficar ali e olhar as pessoas; não tinha problemas em se fazer invisível. Nunca teve; achava estranho mesmo era quando alguém o notava. Aquele lugar vazio lhe despertava uma sensação de melancolia profunda, e quase desejava que alguém abrisse a porta e o encontrasse.

Mas isso não ia acontecer; não podia acontecer. Estavam todos muito ocupados na capela, gastando o joelho de suas calças para presentearem a sala com uma semana extremamente atarefada. Ele concordava com essa ideia. Aquela sala merecia mesmo todo tipo de atenção e sacrifício.

Não teve problemas em achar tudo o que precisava: uma agulha, um carretel de linha, chumaços de lã...tudo muito comum, abundante; coisas que acharia jogadas pelo chão mesmo. Já estava quase voltando quando percebeu que havia esquecido algo; então, deixando aquilo que já tinha pego nos dutos, voltou para o meio da sala e começou a escalar uma estante cheia de caixas. Procurou atentamente em cada uma delas durante vários minutos, até que finalmente achou o que queria e, enfiando-o no bolso de seu casaco, começou a descer e voltou para seu quarto isolado no porão.

A lua estava alta no céu, indicando que a meia-noite se aproximava. O gato já não estava mais lá; havia saído para procurar comida. Mas a bonequinha ainda estava bem; pendurada pela cabeça, a luz da lua a iluminando. Ele tentou dormir, mas não conseguia: a imagem dela não saía de sua mente nem quando fechava os olhos. Então sentou-se e esperou; e, quando os primeiros raios de sol da manhã atravessaram o vidro, ele ainda a encarava com o olhar maravilhado.

Assim que o gato retornou de sua caçada noturna, ele a tirou do varal; o pano branco, cheiroso e fofinho, bem diferente do trapo encardido que retirara da janela do quarto.

O gato olhou para ele e, com uma leve inclinação de cabeça, fixou os olhos nos seus e perguntou: “Miau?” Ele concordou e, enquanto ajeitava a boneca na caixa que haviam preparado no dia anterior, o gato sumia através da pequena janela.

Começou então pelo vestido; retirou os trapos velhos que ela usava e,usando restos de pano que havia encontrado na sala de costura, confeccionou um lindo vestido cor-de-rosa, com uma grande e amarela margarida em alto-relevo. Era um corte simples, visto que ele não era nenhum grande estilista ou costureiro, mas combinava perfeitamente com a boneca; sua beleza sempre fora sua simplicidade. Assim que terminou a nova roupa viu o gato saltando novamente para dentro do quarto, carregando na boca um grande chumaço de espuma.

Começaram então a trabalhar nos cabelos; Com a ajuda das garras do gato, cortou vários fios de uma lã preta que havia encontrado, e começou a costurá-los, um a um, na cabeça da boneca; cada ponto feito com extremo cuidado, para que a linha usada não ficasse visível. Ao final do processo, sua careca já não era nada além de uma amarga lembrança do passado; no lugar dela, um espessa cobertura de fios negros que lhe caíam até pouco abaixo dos ombros, a frente numa franja que quase lhe encobria o olho direito. Ficava cada vez mais linda; cada vez mais parecida com como era quando a conhecera.

Pegando a espuma que o gato havia trazido, começou então a encher-lhe o corpinho. De início não parecia, mas perdera muito de seu enchimento na queda, e começava a imaginar se a quantidade que possuíam seria o suficiente; foi, mas por muito pouco. Então deparou-se com um problema inesperado: o rasgo em seu peito era grande demais para ser fechado apenas com linha. Precisariam de algum tipo de pano para remendá-la, e já haviam usado tudo o que possuíam para fazer-lhe o vestido.

Sem pensar muito, ele enfiou a mão no peito e começou a puxar; seu rosto se abriu em espasmos e caretas de dor, mas não vacilou nem por um segundo. Quando finalmente tirou o braço para fora, a respiração ofegante, segurava um pedaço de pano vermelho, pano esse que usou para remendar o rasgo e consertar a boneca. Onde antes havia um grande rasgo no peito, agora repousava um pequeno e singelo coração.

Consertar-lhe o sorriso não seria problema; se lembrava bem daquele riso de menininha que ela sempre trazia, e não foi nada difícil colocá-lo de volta em seu rosto cada vez mais vivo. Tudo terminado, faltava apenas repor-lhe os olhos, mas não iria fazer isso agora; acordando o gato, colocou-a em suas costas e os guiou, através dos dutos, para o quarto de brinquedos.

Chegaram lá pouco depois da hora do almoço; os brinquedos ainda dormiam. Com a ajuda do gato, levou-a até seu lugar na prateleira e, depois de colocá-la numa posição confortável, despediu-se de seu companheiro, agradecendo-o com uns nacos de carne que trazia no bolso. O gato agradeceu com uma grande reverência e deu-lhe as costas, sumindo de um salto pela janela aberta.

O pierrot então tirou do casaco a última peça que faltava, a que tanto procurara pelas caixas no dia anterior: os dois botões mais redondos e belos que já vira na vida; eram verde-brilhantes, e pareciam duas esmeraldas reluzindo sob os raios de sol da tarde. Tomando muito cuidado para não acordá-la, ele costurou-os no rosto da boneca com os olhos mareados, murmurando-lhe bem baixinho algumas palavras no ouvido. Terminado o trabalho, recolheu sua agulha e seu carretel e retornou para seu lugar isolado na prateleira mais alta.

Quando ela abriu os olhos, todos os brinquedos do quarto a rodeavam. “Meu Deus, como você está linda!” era a exclamação geral na multidão à sua frente. Até mesmo as bailarinas lhe dirigiam olhares de inveja, o que na linguagem torpe delas queria dizer que estava tão bonita que até poderia fazer-lhes frente. Mas era mentira; aquelas loiras anoréxicas nunca conseguiram ser tão belas quanto ela, mesmo que todas suas vidas fossem exclusivamente dedicadas às aparências.

Ela não se lembrava de nada, os acontecimentos dos últimos dias um completo branco em sua mente. Mas lembrava-se que não era tão bonita assim; afinal, era careca e encardida, e distribuía sorrisos sem graça para todos aqueles que não paravam de elogiá-la. Quando Ursinho lhe trouxe um espelho, não se reconheceu: era ela mesmo? Os cabelos compridos e volumosos; a pele clara e macia; os lábios bem vermelhos, congelados num sorriso de menina travessa; os olhos profundos de joia rara. Não sabia como, mas estava tão bonita como quando era nova; até mais bonita do que quando havia acabado de ser criada. E saber disso, e ver que todos ao seu redor também o sabiam, a fazia sentir-se melhor consigo mesma.

Alguns dias depois, ao final do período de luto, a sala finalmente foi aberta e as crianças voltaram a enchê-la de vida; sete dias que para eles, crianças e brinquedos, parecera uma eternidade.

As meninas ficaram loucas quando viram a boneca de pano, e todas queriam tomar chá com ela e chamá-la de fiinha. Todas concordavam que era a boneca mais bonita da sala, e se revezavam para que pudessem brincar um pouquinho que fosse com ela. E a boneca, como sempre, sorria seu sorriso de menina travessa, e sentia-se querida como nunca fora antes.

Algumas vezes uma melancolia, uma tristeza que não sabia de onde vinha, começava a tomar conta dela, e tudo o que queria era ficar sozinha junto à janela e chorar. Mas nessas horas, quando achava que aquela sensação iria tomá-la por completo, seu peito começava a arder como chama, o calor tomando conta de seu corpo, espalhando-se por cada junta e membro, enquanto uma estranha voz em sua cabeça lhe dizia “você é meu arco-íris...” E ela voltava a sorrir, e se sentir bem, e se sentir querida.

E, no alto da estante, sentado na prateleira mais inacessível, o pierrot, abraçado à sua agulha e seu carretel, a observava.

Apenas observava...