Variações sobre um mesmo tema

1

Victor demorou para conseguir abrir completamente os olhos. A sensação que tinha é que havia despertado do mais profundo sono, daqueles nos quais só desfrutamos quando estamos completamente exaustos. Ao invés da cama de seu quarto, com os pôsteres do Nirvana e do Pink Floyd fixados na parede, ele se estava deitado em uma daquelas pequenas camas de hospitais, usando aquelas roupas que o deixavam mais magro do que já era.

Sentado sobre o pequeno sofá, estava seu pai, um homem com cabelo grisalho, que parecia ter envelhecido cinco anos desde a sua última vez em que haviam se visto. A primeira coisa que pensou, era que seu nome deveria ser Johnny Smith e agora iria começar a descobrir que poderia saber “coisas” sobre as pessoas assim que as tocasse, como em Zona Morta. Essa ideia o fez rir, e chamou a atenção de seu pai.

-Filho...Você finalmente acordou... – Disse Paulo, seu pai, deixando brotar um leve sorriso no seu rosto. –Vou chamar sua mãe. – Disse levantando e indo em direção ao corredor. A princípio, Victor estranhou a ação de seu pai, esperava ao menos ganhar um “oi” ou um abraçado. Mas seu pai nunca levara muito jeito em demonstrar certos sentimentos.

Lúcia entrou rapidamente na sala, lágrimas escorrendo pelo rosto, palavras presas na garganta. Parou em frente à cama, em silêncio, numa luta constante contra as lágrimas.

-Oi, mãe. –Disse Victor, com um sorriso desconcertado.

-Filho...Por favor, não faça mais isso... eu..eu...

Pela primeira vez, desde que acordara Victor passou os dedos levemente sobre os pulsos enfaixados.

-Desculpa...É que eu... - Calou-se. Há certas atitudes que não se podem explicar e o que ele tinha feito era uma delas.

-Nunca mais faça algo assim, tu não sabes o que eu e seu pai sofremos, se nós perdermos você eu não sei o que nós vamos...- Lúcia foi acalmada por Paulo, e desandou a chorar novamente. Era o único filho que ela tinha, e não suportaria perder ele. Quando as mulheres chegam a certa idade, a sua vida é a vida dos filhos.

Conversaram por alguns minutos e quando a enfermeira entrou, os pais de Victor se retiram para deixa-lo descansar mais um pouco.

2

Na manhã do dia seguinte, Victor pode caminhar um pouco. Aproveitou para ir a uma das áreas de recreação. Um dos médicos que cuidaram dele era um velho amigo de seus pais, e foi ele que sugeriu que ele desse uma passada por lá. Havia vários pacientes que iam lá, com os mais variados problemas. Segundo o médico confessou a Paulo, isso seria muito bom para ele ver que tem muita gente com problemas piores que os dele.

Naquelas horas da manha, não havia quase ninguém presente, exceto por algumas enfermeiras e meia dúzia de pacientes. Entre eles, estava sentado num dos cantos uma garota de cabelos longos, ruiva com um violão no colo. A garota não parecia ter muito entrosamento com o instrumento, e Victor ficou a fita-la por alguns instantes.

Quando a garota percebeu, corou e imediatamente colocou o violão de lado.

-Continue, só estava observando. – Disse Victor, aproximando lentamente. De fato, era uma garota muito bonita, seu cabelo era liso e longo beirando sua cintura.

-Não sei bem tocar, sabe.., só alguns acordes que meu pai me ensinou. Você sabe tocar?

-Digamos que sim. – Respondeu, enquanto sentava ao lado da garota.

- Pode tocar se você... –Calou-se. Não tinha reparado ainda nas mãos do garoto, e quando se deu conta já era tarde demais.

-Não quis ofender. Desculpa.

-Não foi nada. –Disse abrindo um sorriso em seu rosto.

O primeiro contato, certamente é o mais difícil e o mais importante. Assim que eles passaram por essa barreira, não demoraram muito a conversar como se fossem velhos conhecidos. Descobriram que possuíam muito em comum. A garota se chamava Alice, um belo nome na opinião de Victor e descobriram que se ele não tivesse trocado de colégio poderiam ter se conhecido antes. Ela lera os mesmo livros que ele, e isso levou a várias conversas. Curtiam as mesmas músicas, mesmos filmes e às vezes frequentavam os mesmos lugares. E assim, durante a noite, ambos lamentaram não terem se conhecido antes.

3

A primeira vez que falaram sobre o que havia acontecido para os dois pararem no hospital foi um dia antes de Victor ter alta. Já estava anoitecendo e ambos estavam passeando por alguns corredores, quando pararam para olhar o por do sol em uma das janelas.

-Você vai ir embora amanhã, né?

-Sim. – E pela primeira vez, sentiu um leve aperto no peito, desde aquela noite em que tentara o suicídio. – Mas e você? –Questionou.

-Ainda vou demorar a sair daqui...

- Que pena. –Lamentou Victor, sem saber o que mais poderia dizer para ela. Não era uma situação a qual estava acostumado e pelo pouco que conhecia a garota, dizer que tudo ia dar certo não era algo que faria muito efeito.

-Sabe, amanhã vou fazer uma operação. Eu não te contei, mas eu tenho uma doença desde meus doze anos. Não sei bem como explicar, desisti de compreendê-la, conhecer não vai me ajudar muito a viver mais... Mas posso lhe dizer que é como se fosse um tumor.

-Mas depois da cirurgia, vai ficar bem não é? Prometo que enquanto estiver em recuperação virei te visitar.

- Não tenho tanta certeza. Já viemos evitando a operação há muito tempo, torcendo para que eu não piorasse. Mas agora...se eu quero ter alguma chance de viver, preciso operar, antes que a operação seja completamente inviável.

Alice era uma garota sorridente e foi assim que ela se apresentara a Victor. Aquela seria a primeira vez que ele viu a tristeza estampada em sua face e aquela sensação de se estar perdendo outra pessoa da qual amava tomou conta de seu peito.

- A vida é injusta. – Comentou. – Enquanto você quer viver, eu quero morrer. Deveríamos fazer um pacto com Deus, eu morro e você vive. Assim as coisas seriam justas, não acha?

Os olhos da garota se encheram de lágrimas e ela voltou-se para a janela, olhando para a lua que começava a ocupar o seu espaço no céu. “-seu idiota”, pensou em dizer. Mas Alice preferiu se calar.

Ambos não disseram mais nenhuma palavra.

4

No fim daquela noite, Victor recostou-se contra a parede e pegou quatro cartas que haviam sido deixados sobre o bidê. A ala em que ficava seu quarto estava silenciosa, dando aquele ar melancólico dos contos de Poe. Olhou sem muito interesse para as cartas, primeiramente observou o remetente, havia uma de seus pais, de sua tia e de dois amigos.

-Nenhuma dela? –Perguntou uma voz vinda da porta do quarto. Era Alice. Vestia um pijama verde, um ou dois números maior que o seu e tinha os cabelos soltos por sobre os ombros.

-O que você está fazendo aqui? Não é um pouco tarde para uma pequena garota ficar andando por aí sozinha? –Questionou, esbanjando um pequeno sorriso sarcástico.

- Se ninguém me ver, não será um problema. - Alice apagou a luz e encostou a porta, deixando que a única claridade viesse do corredor, entrando pelo vidro transparente da porta.

-Então, nenhuma dela? – Insistiu a garota sentando-se na beirada da cama.

-Não. –Respondeu, cabisbaixo. - Está tão estampado na minha cara?

- Sim. Não sou boba, posso perceber as coisas. Sabe, muitas vezes vi meus pais chorarem pelos cantos, tentando fingir que estava tudo bem para mim. Amor é sempre amor, independente se é em relação a um filho ou a uma namorada. E digamos que eu sou expert em reconhecer quando alguém está triste por isso.

Victor cruzou as pernas e Alice sentou-se sobre a cama, encolheu as pernas e abraçou os próprios joelhos.

-Sabe... – Começou Victor.

-Você já gostou de alguém a ponto de o tempo ter passado e você não conseguir esquece-la? De você tentar se distrair e nos dia em que você consegue, quando a noite chega, você sonha com ela? Dê sentir-se triste, apenas por lembrar que em certos horários você estaria com ela...

Calou-se. Seus olhos começaram a lacrimejar, e a vontade que sentia era de chorar. Foi assim que se sentiu naquela noite, quando tentara suicídio. Era algo que tomava conta de seu peito todas as noites, um desejo que batia a porta de sua alma todos os dias. Alice ficou apenas a fitar o rapaz. Não mencionou uma palavra se quer naquele momento. Não precisava. A melhor maneira de consola-lo era o deixar falar.

-Sabe, no fundo eu me arrependo de muitas coisas que eu fiz e de não ter feito outras tantas...Devia ter agido diferente, ter sido mais romântico ter dado mais valor...Agora eu simplesmente vejo que não há nada que eu possa fazer. Sabe, eu queria poder abraça-la novamente, dizer que não precisa se preocupar porque tudo dará certo, queria poder deitar ao seu lado mais uma vez e ficar conversando sobre coisas banais, até que ela adormecesse em meus braços e no dia seguinte acorda-la com um beijo e um belo café da manha. Queria ter aprendido antes a dar o espaço que ela precisava, afinal, o amor é como um abraço curto para não sufocar, não é? Queria ter viajado com ela, como tantas vezes comentamos em fazer, ter visto o sol se pôr, em um lugar onde estivéssemos sozinhos sentindo o vento bater contra nossas faces, nós trazendo aquela sensação de liberdade... Deus, como eu queria poder tocar sua música favorita, tantas e tantas vezes só para vê-la sorrir.

As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto, e Victor tratou de limpá-las com a mão.

-Eu só queria mostrar que o que vivemos foi uma grande paixão e poder dizer a ela que a paixão serve pra isso, para aprendermos com os erros e nos preparar para aprender a amar. Só queria provar que eu posso fazê-la feliz, e que por mais que ela goste de outro, ou venha a gostar, eu poderia fazer com que aprendesse a amar.

Alice no fundo sabia do que ele falava. Desde que soube de sua doença evitou se relacionar com outras pessoas. Havia sim, vários pretendentes, mas ela não queria machuca-los e nem a si mesma. Acreditava que o fato de saber que a relação acabaria subitamente com sua morte era assustador. Julgou que o melhor a se fazer era se isolar e esperar que algum dia algum médico pudesse dizer “Você vai viver muitos anos, garota”. No fim, o que ela e Victor sentiam não passava de variações sobre um mesmo tema.

5

Alice estava emocionada tanto quando Victor. A garota ruiva aproximou-se dele, e deu um forte abraço em seu amigo. Afagou seu cabelo e disse baixinho, perto de seu ouvido.

-Tenho certeza de que é capaz disso. Pode ser que um dia ela resolva lhe dar uma chance e se isso acontecer, vocês irão formar o casal mais feliz do mundo. Mas se ela não quiser você encontrará outra pessoa a qual lhe dará uma chance de mostrar o poder que o amor tem. Tenho certeza que com essa pessoa você fará as coisas certas. Não chore, por favor. Eu por exemplo, talvez nunca mais possa ver o pôr do sol, talvez nunca ouça alguém tocar minha música favorita incansavelmente só para me ver alegre e talvez nunca vá viajar com alguém que eu amo e nem poderei dar a chance para alguém provar que eu posso amar e ser feliz.

Victor afastou-se da garota, um leve sorriso surgiu em seu rosto por entre as lágrimas que escorriam de seus olhos. Alice retribuiu o sorriso e continuou a dizer:

-Só me prometa que na próxima oportunidade, tu vai se esforçar ao máximo, certo? Leve-a para sair, viaje com ela, toque quantas músicas forem necessárias e nunca se esqueça de dar o espaço que ela precisa. Garotas não gostam de se sufocadas. -Disse a última frase, esbanjando um sorriso desconcertado.

Victor apenas assentiu com a cabeça. Os dois ficaram em silêncio, apenas olhando um para o outro e após alguns minutos Alice recostou sua cabeça contra o peito de Victor e ele colocou seu braço em volta de seu corpo. Deitaram e ficaram ali, os dois, acordados, olhos aberto, mas em completo silêncio.

-Tome. Um presente para dar sorte amanhã. – Victor retirou uma pequena correntinha com um pingente em forma de cruz que carregava no pescoço e colocou nas mãos de Alice. Ela assentiu, fechando a mão e recostando seu corpo contra o dele.

6

Victor abriu a carta que Alice havia deixado para ele quando estava indo para casa, já dentro do carro de seu pai. Minutos antes de sair do hospital, ele fora abordado por uma enfermeira que lhe deu a triste notícia, Alice não havia sobrevivido à operação. Antes disso, ela havia confiado o envelope a enfermeira, para que fosse entregue a Victor antes que ele fosse embora. Dentro do envelope, havia uma pequena carta, escrita as pressas e a correntinha que Victor havia dado a ela.

“Victor.

Só tenho a agradecer por você ter ficado comigo na noite passada. Acho que embora convivemos apenas alguns dias, eu senti por você algo que há muito tempo não sentia. Já amei outras pessoas, claro, mas devido ao fato de eu saber que poderia não viver por muito tempo acabei optando por viver em solidão. Você me deu momentos alegres, rimos juntos, choramos juntos... Se hoje as coisas derem erradas na minha operação, fique sabendo que morrerei feliz, porque na última noite, você me abraçou e deu um pouco de carinho.

Estou lhe devolvendo o seu presente. Tenho certeza que ficará melhor em você, ou que algum dia você vai dar para outra pessoa que precise mais do que eu Estarei torcendo por você. Lembre-se da nossa conversa e tudo ficará bem. Posso não estar aqui para lhe ver novamente, mas seja onde eu estiver sempre estarei lhe acompanhando.

Com amor,

Alice”.

Naquele entardecer, Victor debruçou-se sobre a sacada de seu apartamento. O sol estava se pondo e aquela vermelhidão havia tomado conta do céu. As vezes, o vento soprava mais forte e podia sentir como se Alice o estivesse lhe abraçando, sussurrando bonitas palavras em seu ouvido. Victor sorriu. Sabia que sempre que sentisse um aperto no coração e com vontade de desistir, precisaria apenas olhar para o céu.

“Deixamos de dizer o que a gente dizia

Deixamos de levar em conta a alegria

Deixamos escapar por entre nossos dedos

A chance de manter unidas as nossas vidas

Amanhã ou depois, tanto faz se depois

For nunca mais... nunca mais”

-Dedico a todas aquelas pessoas, que mesmo estando muito longe, nunca deixam de se importar com as pessoas que para elas são especiais.

Dionatan Cordova
Enviado por Dionatan Cordova em 01/12/2011
Reeditado em 01/12/2011
Código do texto: T3367317
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