Enquanto Ela…

Cenário recorrente e por demais comum, infelizmente comum…uma crise sobre uma crise, ou o pior dos cenários, o eclipse de alguém que amamos, o sentir nada podermos fazer para evitar essa partida que era bem perto de nós, que seria para bem perto de nós mas que seria ao mesmo tempo para um local distante bem longe de nós…

E a partida deu-se naquela noite…

Havia sinais, há sempre sinais, mas a mente humana por vezes revela-se curiosa ao ignorar sinais de tragédia, e com tal fingir que está tudo bem, mascara a realidade quando não está de facto nada bem…

Mas naquela noite os sinais foram de tal ordem evidentes que ela estava no percurso final do caminho que a levava para a escuridão…

Citando um escritor que escreveu tal depois disto nos acontecer, “eram trevas brancas” para ela que não tinha noção da escuridão, mas eram bem negras para quem a observava rumo ao ocaso…

Negras do tamanho da extinção plena que estava a um pequeno passo de se apossar por completo da sua mente…

Ainda lhe estendi a mão, ainda falei com ela, ainda a toquei para a despertar do ar autómato que lhe tinha comido a humanidade do olhar e por arrasto do corpo, rígido e rigificado, que lhe roubara os gestos suaves e harmoniosos, que lhe matara a espontaneidade e lhe pilhara a alegria…

Mas era tarde demais, e por isso a minha mão estendida, o meu toque, a minha voz eram signos indecifráveis que já nada tinham de significado perante a sua mente que se fechara ao mundo e não apenas a mim…

Para ela eram símbolos mortos a adicionar ao conjunto de símbolos estranhos que constituíam a maior parte da sua mente e a fazia sentir estar num labirinto do qual lutava para sair mas não conseguia de facto…

Mundo hermético sem paredes ou muros onde ela estava encurralada, mundo onde não ouvia sons, onde não ouvia palavras, um mundo cheio, mas ao mesmo tempo sem nada, insustentavelmente sem nada, porque todo o seu mundo passou a ser constituído por um gigantesco vazio…

Prisão sem paredes, a pior das prisões…

Prisão connosco como únicos guardas, por vezes o pior de todos os guardas…

Apercebi-me de tal, tentei lutar contra tal, mas apercebi-me da inutilidade de tal, apercebi-me da derrota embora ela ainda não estivesse consumada por completo…

Naquela noite assistia desesperado pois ao seu derradeiro e final eclipse, rindo-me interiormente com demasiado escárnio e imensa amargura pois recordei que ainda havia imensa gente que pensava e jurava de forma convicta que a loucura não existe, quando a loucura estava prestes a levar para bem longe quem eu mais amava…

A loucura fazia definhar, fazia acontecer nela uma tragédia silenciosa, que sabia à mais desumana amargura por eu ter presenciado a ascensão daquele ser sem asas, a sua subida aos céus e estar a presenciar a sua descida aos infernos de forma literal e não meramente figurada…

Tal como um Ícaro dos tempos modernos, em pleno céu ela apercebeu-se que não sabia voar, que nunca poderia voar, e que por isso só poderia cair, apesar de eu lhe ter afiançado que não havia anjos ou demónios, nem mesmo deuses pelo menos da forma que condicionassem as nossas vidas, os nossos destinos, que as asas que possuíamos éramos nós que as tínhamos criado, e se voávamos era porque sonhámos voar, e como ninguém comanda ou manda no que sonhamos ninguém nos poderia roubar o voo…Somente apenas nós nos poderíamos derrubar se deixássemos de sonhar ou se deixássemos que os sonhos se transformassem em pesadelos…e esse passo terrível teria lugar quando deixássemos a nossa vida ser comandada e gerida apenas e tão somente pelo medo…

Mas ela não me ouviu, não que não o quisesse, simplesmente porque não o podia fazer de facto…tinha já escolhido outra porta, se quiserem outra porta de uma espécie de destino…Destino…uma coisa na qual eu de facto não acredito, mas sim, perante os meus olhos ela optou pelo supremo e derradeiro registo de ausência, de alienação, pela simples razão do seu limiar de dor ter sido atingido à demasiado tempo, por ter desistido de lutar contra tal, por se ter rendido naquela noite, sim, porque o que assisti foi a uma rendição, a uma capitulação…

A ciência diz que o tal limiar é a barreira que separa a loucura da sanidade…mas a ciência diz tanta coisa que eu aprendi a desconfiar dela…

Mas dou razão à ciência neste caso, pois naquela noite ela de facto atingiu essa linha, e escolheu o Outro Lado, de onde eu a poderia ver, a poderia tocar, onde ela me poderia tocar, me poderia ver, mas essa linha era a maior de todas as fronteiras pois impedia-a de Sentir, para sempre de Sentir…

E foi assim que ela partiu…

Foi a partida mais dolorosa de todas, simplesmente porque ela partiu indo estar para sempre a meu lado…

E ao fim ao cabo dei comigo a ter sentimentos ambíguos sobre a sua partida…: por um lado dei comigo a invejar um pouco o seu estado porque de uma forma ou de outra todos nós desejamos ou desejámos termos partido para sempre um dia, não nos faltando a coragem para esse partir e por isso ficámos no mesmo local, ou em locais pouco distantes…

Por outro sentia-me ferido, sentia-me angustiado, sentia-me revoltado, sentia-me triste porque não poderia recomeçar uma vida, porque a amava, porque ela partiu ficando para sempre a meu lado…

E por isso, francamente, esta é a razão de desde essa noite eu não saber definitivamente para onde ir…

Desde essa noite, amanhã e no dia que virá a seguir amanhã, não sei para onde ir…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 23/11/2011
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