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Eram cinco da tarde e o trânsito na Avenida Presidente Vargas, principal via de ligação entre o centro do Rio e a zona norte, já começava a ficar bastante confuso. Como de costume nesse horário, ônibus e carros brigavam por algum espaço na volta pra casa, carregando pessoas ansiosas por algumas horas de descanso após um dia exaustivo de trabalho.
Sentado no banco próximo ao cobrador do coletivo, Bernardo observava sonolento a pista ao seu lado através da janela. Cansado, tentou apoiar sua cabeça no vidro, porém a vibração do veículo o fez desistir. Olhou para o lado e notou que algumas pessoas já dormiam tranquilamente em seus bancos. Particularmente, ele achava aquilo uma cena ridícula. Bocas abertas, cabeças cambaleantes caindo sobre os ombros de desconhecidos e pernas que se abriam automaticamente quão mais profundo o sono ficava. Não havia cansaço no mundo que o deixaria se permitir fazer aquela cena.
Estalou o pescoço e voltou sua atenção para a pista novamente. Passou a observar os motociclistas que passavam ao lado da janela. Achava impressionante - mesmo odiando motos - a maneira como eles costuravam o trânsito da cidade. Não havia engarrafamento que os prejudicassem. Quase arrancando retrovisores, quase arranhando latarias, eram verdadeiros malabaristas das estradas.
Quando chegou à altura do bairro da Lapa, ele se pegou fitando a lateral de uma Kombi branca. Ficou olhando para a logo que ilustrava o carro. “Soraia Tintas e Materiais”. Ao volante da Kombi, dois homens mal encarados devolviam os olhares de Bernardo que mal notava que parecia hipnotizado. Mas ao perceber que estava sendo encarado, desviou rapidamente seus olhos para dentro do ônibus novamente e mexeu algumas vezes em sua mochila tentando disfarçar.
Assim que a Kombi passou à frente, o nome Soraia ficou na cabeça do rapaz. Aquele nome lhe trazia boas lembranças. Aquele nome o carregava até uma época de sua vida qual ele nunca esquecera verdadeiramente. Tentou fazer as contas de quantos anos haviam passado. Talvez uns cinco ou seis. Só lembrava que tinha quinze anos na época. Tentou refazer os cálculos e chegou à conclusão que faziam oito anos desde que falara com Soraia pela última vez. Por onde ela andaria? Com o pode deixa-la sumir dentro de suas lembranças, sendo resgatada através de uma logomarca de uma loja de tintas? Rapidamente sua linha de raciocínio foi quebrada após notar que uma idosa passava pela roleta do ônibus. Disfarçadamente olhou para a cor do banco onde estava sentado. Como presumira, era amarelo, e ele teria que se levantar para dar lugar a ela.
Levantou e se espreguiçou ao mesmo tempo. Educadamente, e como forma de agradecimento, a senhora pediu para segurar sua mochila. Bernardo cuidadosamente entregou-lhe a bolsa e ficou de pé ao seu lado. Foi então que mergulhou nas lembranças de Soraia.
Sentado no banco próximo ao cobrador do coletivo, Bernardo observava sonolento a pista ao seu lado através da janela. Cansado, tentou apoiar sua cabeça no vidro, porém a vibração do veículo o fez desistir. Olhou para o lado e notou que algumas pessoas já dormiam tranquilamente em seus bancos. Particularmente, ele achava aquilo uma cena ridícula. Bocas abertas, cabeças cambaleantes caindo sobre os ombros de desconhecidos e pernas que se abriam automaticamente quão mais profundo o sono ficava. Não havia cansaço no mundo que o deixaria se permitir fazer aquela cena.
Estalou o pescoço e voltou sua atenção para a pista novamente. Passou a observar os motociclistas que passavam ao lado da janela. Achava impressionante - mesmo odiando motos - a maneira como eles costuravam o trânsito da cidade. Não havia engarrafamento que os prejudicassem. Quase arrancando retrovisores, quase arranhando latarias, eram verdadeiros malabaristas das estradas.
Quando chegou à altura do bairro da Lapa, ele se pegou fitando a lateral de uma Kombi branca. Ficou olhando para a logo que ilustrava o carro. “Soraia Tintas e Materiais”. Ao volante da Kombi, dois homens mal encarados devolviam os olhares de Bernardo que mal notava que parecia hipnotizado. Mas ao perceber que estava sendo encarado, desviou rapidamente seus olhos para dentro do ônibus novamente e mexeu algumas vezes em sua mochila tentando disfarçar.
Assim que a Kombi passou à frente, o nome Soraia ficou na cabeça do rapaz. Aquele nome lhe trazia boas lembranças. Aquele nome o carregava até uma época de sua vida qual ele nunca esquecera verdadeiramente. Tentou fazer as contas de quantos anos haviam passado. Talvez uns cinco ou seis. Só lembrava que tinha quinze anos na época. Tentou refazer os cálculos e chegou à conclusão que faziam oito anos desde que falara com Soraia pela última vez. Por onde ela andaria? Com o pode deixa-la sumir dentro de suas lembranças, sendo resgatada através de uma logomarca de uma loja de tintas? Rapidamente sua linha de raciocínio foi quebrada após notar que uma idosa passava pela roleta do ônibus. Disfarçadamente olhou para a cor do banco onde estava sentado. Como presumira, era amarelo, e ele teria que se levantar para dar lugar a ela.
Levantou e se espreguiçou ao mesmo tempo. Educadamente, e como forma de agradecimento, a senhora pediu para segurar sua mochila. Bernardo cuidadosamente entregou-lhe a bolsa e ficou de pé ao seu lado. Foi então que mergulhou nas lembranças de Soraia.
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2
Ao abrir os olhos a primeira coisa que veio na cabeça foi ir ao mercado. Levantou-se e olhou para o relógio preso na parede bem de frente para a sua cama. Tentou se levantar sem pisar em seu irmão mais velho que dormia na cama debaixo da sua. Cuidadosamente após passar por ele, correu para o banheiro. Estava atrasado.
Eram assim todos os domingos. Às dez da manhã, Bernardo se levantava e às onze estava no mercado apenas para poder vê-la. Não sabia seu nome, nem onde morava. Mas sabia que todos os domingos comprava pão, suco de abacaxi em garrafa e alguns bolinhos Ana Marias.
Escondido entre prateleiras, ou fingindo procurar algo em seções que não lhe despertavam o menor interesse, Bernardo sentia-se bem por estar perto dela. Não sabia até quando aquilo duraria. Mas gostava daquele clima. Sentia-se inocente, e jamais comentara com seus amigos sua paixão secreta pela menina do mercado. Seria ela mais velha? Ele tinha quinze, quantos ela teria? Será que era metida? Será que era inteligente? Bernardo perdia minutos por minutos no supermercado, na maioria das vezes saindo somente com a satisfação de vê-la e a ansiedade de que o próximo domingo chegasse o mais rápido possível.
Foi então que certa vez, durante uma longa espera na fila nas proximidades do natal, ele sem querer esbarrou em alguém. Cabisbaixo devido Às notas baixas no colégio, nem se deu conta de que havia esbarrado justamente na sua musa do mercado.
-Desculpa!- disse uma voz feminina, complementando. - Ei, você vem sempre aqui né? Acho que não é a primeira vez que o vejo...
Rapidamente os olhos do rapaz se ergueram. Tão rapidamente quanto esse movimento, seu coração acelerou e suas mãos suaram. Precisava falar alguma coisa, mas não sabia o que.
-Domingos... - respondeu balbuciante com a primeira coisa que viera a sua cabeça.
-Seu nome é Domingos?- perguntou a menina ajeitando as compras dentro do carrinho, mas sem desviar os olhos de Bernardo.
Ele então percebeu a situação e despertou do choque.
-Não... – respondeu sorrindo constrangido. –Geralmente te vejo aqui aos domingos. Meu nome é... Esqueci... – disse isso num tom de voz que mostrava claramente que havia se surpreendido com o branco mental que lhe ocorrera naquele instante.
A menina sorriu. Pode ver que o rapaz na sua frente parecia nervoso. Como poderia esquecer o próprio nome? Era o típico sinal de nervosismo. E já havia reparado que na maioria das vezes, aos domingos, ele a seguia e saía sem nada nas mãos de dentro do mercado.
-Meu nome é Soraia. O seu, pelo que entendi, é Esqueci?
Ele sorriu de novo, e fez um som terrível dessa vez. Sentia-se bobo. Tentou se acalmar mentalmente.
-Não... Meu nome é Bernardo Tavares Liberato...
-Uau! Você é bem formal! Não queria saber seu nome todo... Vai me dizer seu CPF também? Deixa eu pegar uma caneta para anotar...
Os dois ficaram em silêncio. Por uns instantes ele achou que ela estava falando sério. Ao reparar isso, Soraia sorriu e empurrou carinhosamente Bernardo, que aos poucos sorriu também, porém tentando não fazer sons estranhos.
Os dois ficaram ali no mercado conversando. Enquanto falava, o rapaz tentava entender como aquilo acontecera. Não era domingo, era apenas terça-feira. Deus havia escutado seus pedidos de que a encontrasse antes dos finais de semana. E ali estava ela. Soraia. Agora sabia seu nome. Sabia que era simpática e ainda mais linda de perto. Sabia que mesmo que rapidamente, estava apaixonado por alguém que havia falado pela primeira vez naquele dia.
Bernardo e Soraia trocaram telefones, MSN’s e Orkuts (sim, eles ainda tinham nessa época) e dali a poucas horas, os dois conversavam pelo computador. O rapaz ficara pregado na cadeira, até mesmo discutindo com seu irmão que pediu para rapidamente conferir uma coisa no site de sua faculdade. Não queria sair dali, e quando finalmente a viu on line...
BERNARDO diz: -Olá, moça do mercado!
SORAIA diz: -KKKKK Olá, moço distraído! Qual seu nome mesmo? É Esqueci, né?
BERNARDO diz: -Rsrsrsrs.. Não, meu nome é Bernardo. Eu pareci muito nervoso?
SORAIA diz: - Muiiiiiiiiito! Mas você é um fofo! Mora aqui pelo bairro?
BERNARDO diz: - Moro sim. Do lado do mercado e você?
SORAIA diz: - Nossa! Somos quase vizinhos. Moro do outro lado da rua.
Houve um silêncio. Enquanto Soraia procurava uma foto para postar em seu fotoblog, Bernardo pensava no que dizer a seguir. Não queria deixar a conversa morrer. Precisava falar com ela. Mas não aparecia na tela que ela estava digitando algo.
BERNARDO diz: Tá ocupada? Tô atrapalhando?
SORAIA diz: Nada! Pode falar. Só tô procurando uma foto aqui. Mas me diga... O que você curte.
BERNARDO diz: Ah, um pouco de tudo. Não sou de sair não. Sou mais caseiro.
SORAIA diz: Ah tá. Eu também não saio muito. Meus pais me prendem muito, sabe? São muito rígidos, criados na roça...
BERNARDO diz: Entendo... Poxa, a gente podia conversar ao vivo aí perto da tua casa. Você fica na praça?
SORAIA diz: Não muito. Mas podemos sim. Olha, agora tenho que sair. Amanhã a gente conversa. Tá? Muito bom falar com você... Precisava conhecer o menino que tanto me olhava no mercado. KKkkkKKkkk!
BERNARDO diz: rsrsrsrsrs Tudo bem. Vai lá... Ah, e não pense que sou um maníaco perseguidor, hein!
SORAIA diz: -Pode deixar. Você tem cara de bonzinho!
BERNARDO diz: -Isso aê! Grande bjo!
SORAIA diz: Bjossssssss e até mais, esquecido!
SORAIA AGORA ESTÁ OFF LINE...
Eram assim todos os domingos. Às dez da manhã, Bernardo se levantava e às onze estava no mercado apenas para poder vê-la. Não sabia seu nome, nem onde morava. Mas sabia que todos os domingos comprava pão, suco de abacaxi em garrafa e alguns bolinhos Ana Marias.
Escondido entre prateleiras, ou fingindo procurar algo em seções que não lhe despertavam o menor interesse, Bernardo sentia-se bem por estar perto dela. Não sabia até quando aquilo duraria. Mas gostava daquele clima. Sentia-se inocente, e jamais comentara com seus amigos sua paixão secreta pela menina do mercado. Seria ela mais velha? Ele tinha quinze, quantos ela teria? Será que era metida? Será que era inteligente? Bernardo perdia minutos por minutos no supermercado, na maioria das vezes saindo somente com a satisfação de vê-la e a ansiedade de que o próximo domingo chegasse o mais rápido possível.
Foi então que certa vez, durante uma longa espera na fila nas proximidades do natal, ele sem querer esbarrou em alguém. Cabisbaixo devido Às notas baixas no colégio, nem se deu conta de que havia esbarrado justamente na sua musa do mercado.
-Desculpa!- disse uma voz feminina, complementando. - Ei, você vem sempre aqui né? Acho que não é a primeira vez que o vejo...
Rapidamente os olhos do rapaz se ergueram. Tão rapidamente quanto esse movimento, seu coração acelerou e suas mãos suaram. Precisava falar alguma coisa, mas não sabia o que.
-Domingos... - respondeu balbuciante com a primeira coisa que viera a sua cabeça.
-Seu nome é Domingos?- perguntou a menina ajeitando as compras dentro do carrinho, mas sem desviar os olhos de Bernardo.
Ele então percebeu a situação e despertou do choque.
-Não... – respondeu sorrindo constrangido. –Geralmente te vejo aqui aos domingos. Meu nome é... Esqueci... – disse isso num tom de voz que mostrava claramente que havia se surpreendido com o branco mental que lhe ocorrera naquele instante.
A menina sorriu. Pode ver que o rapaz na sua frente parecia nervoso. Como poderia esquecer o próprio nome? Era o típico sinal de nervosismo. E já havia reparado que na maioria das vezes, aos domingos, ele a seguia e saía sem nada nas mãos de dentro do mercado.
-Meu nome é Soraia. O seu, pelo que entendi, é Esqueci?
Ele sorriu de novo, e fez um som terrível dessa vez. Sentia-se bobo. Tentou se acalmar mentalmente.
-Não... Meu nome é Bernardo Tavares Liberato...
-Uau! Você é bem formal! Não queria saber seu nome todo... Vai me dizer seu CPF também? Deixa eu pegar uma caneta para anotar...
Os dois ficaram em silêncio. Por uns instantes ele achou que ela estava falando sério. Ao reparar isso, Soraia sorriu e empurrou carinhosamente Bernardo, que aos poucos sorriu também, porém tentando não fazer sons estranhos.
Os dois ficaram ali no mercado conversando. Enquanto falava, o rapaz tentava entender como aquilo acontecera. Não era domingo, era apenas terça-feira. Deus havia escutado seus pedidos de que a encontrasse antes dos finais de semana. E ali estava ela. Soraia. Agora sabia seu nome. Sabia que era simpática e ainda mais linda de perto. Sabia que mesmo que rapidamente, estava apaixonado por alguém que havia falado pela primeira vez naquele dia.
Bernardo e Soraia trocaram telefones, MSN’s e Orkuts (sim, eles ainda tinham nessa época) e dali a poucas horas, os dois conversavam pelo computador. O rapaz ficara pregado na cadeira, até mesmo discutindo com seu irmão que pediu para rapidamente conferir uma coisa no site de sua faculdade. Não queria sair dali, e quando finalmente a viu on line...
BERNARDO diz: -Olá, moça do mercado!
SORAIA diz: -KKKKK Olá, moço distraído! Qual seu nome mesmo? É Esqueci, né?
BERNARDO diz: -Rsrsrsrs.. Não, meu nome é Bernardo. Eu pareci muito nervoso?
SORAIA diz: - Muiiiiiiiiito! Mas você é um fofo! Mora aqui pelo bairro?
BERNARDO diz: - Moro sim. Do lado do mercado e você?
SORAIA diz: - Nossa! Somos quase vizinhos. Moro do outro lado da rua.
Houve um silêncio. Enquanto Soraia procurava uma foto para postar em seu fotoblog, Bernardo pensava no que dizer a seguir. Não queria deixar a conversa morrer. Precisava falar com ela. Mas não aparecia na tela que ela estava digitando algo.
BERNARDO diz: Tá ocupada? Tô atrapalhando?
SORAIA diz: Nada! Pode falar. Só tô procurando uma foto aqui. Mas me diga... O que você curte.
BERNARDO diz: Ah, um pouco de tudo. Não sou de sair não. Sou mais caseiro.
SORAIA diz: Ah tá. Eu também não saio muito. Meus pais me prendem muito, sabe? São muito rígidos, criados na roça...
BERNARDO diz: Entendo... Poxa, a gente podia conversar ao vivo aí perto da tua casa. Você fica na praça?
SORAIA diz: Não muito. Mas podemos sim. Olha, agora tenho que sair. Amanhã a gente conversa. Tá? Muito bom falar com você... Precisava conhecer o menino que tanto me olhava no mercado. KKkkkKKkkk!
BERNARDO diz: rsrsrsrsrs Tudo bem. Vai lá... Ah, e não pense que sou um maníaco perseguidor, hein!
SORAIA diz: -Pode deixar. Você tem cara de bonzinho!
BERNARDO diz: -Isso aê! Grande bjo!
SORAIA diz: Bjossssssss e até mais, esquecido!
SORAIA AGORA ESTÁ OFF LINE...
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3
Foram poucas palavras, mas o suficiente para Bernardo se apaixonar ainda mais. Dali pra frente ele dormiria tarde, passaria horas e mais horas diante do computador. Às vezes em vão quando Soraia não aparecia, às vezes compensado por apenas cinco minutos de papo com ela. Com o tempo, os dois foram ficando íntimos. Descobriu que sua mãe não era sua mãe biológica. Descobriu que aos domingos ela ia ao mercado para sua vizinha idosa na maioria das vezes. E não só Bernardo se interessava em saber sobre ela. Soraia também via no rapaz um ótimo amigo. Alguém que podia contar seus segredos, revelar sonhos, e falar sobre tudo por mais idiota que fosse.
Um ano se passou. Os dois estavam mais próximos do que nunca. As intimidades eram enormes. Ele já a chamava de idiota todas as vezes que falava algo que não fazia sentido. Ela o constrangia com perguntas sobre suas namoradas anteriores. Bernardo contou como fora sua primeira vez no sexo, aos catorze anos. Contou detalhes. Soraia adorou saber. Tinha medo de como seria a sua. Mas lendo as palavras do amigo, se sentiu confortada. Mentalmente desejou que seu primeiro parceiro fosse alguém como Bernardo, se não o próprio. Mas nunca o contou.
Outro ano se passou. Os dois se encontravam às vezes aos domingos. Iam rápido ao mercado, e depois sentavam na praça para conversarem. Falavam de coisas repetidas, sorriam de coisas já ditas. Pareciam duas crianças felizes com seus brinquedos. Lembrava-se de brincadeiras, de desenhos animados antigos e de comidas preferidas. Falavam mal dos outros, das pessoas que passavam e de si mesmo. Brincavam com tudo, e um amor foi crescendo dentro dos dois. Um amor jovem. Bernardo e Soraia tinham a mesma idade, compartilhavam dos mesmos pensamentos e muitas vezes das mesmas opiniões. Cada vez mais íntimos, ficava difícil esconder a paixão que surgia após dois anos.
Numa segunda-feira, Bernardo foi surpreendido por um telefonema. Pegou seu celular e viu o nome de Soraia no identificador de chamadas. Atendeu imediatamente. A menina parecia nervosa, e pediu para que dali a dez minutos, ele a encontrasse na praça. Não tinha como ele recusar tal convocação, e se arrumou num instante.
Saiu de casa correndo e atravessou a rua sem mesmo olhar para os lados. Em menos de dez minutos já estava sentado no banco de madeira ao lado do escorrega. Pôde nota Soraia chegando lentamente e com um olhar estranho. Ela foi se aproximando. Aproximou-se mais um pouco. Um pouco mais. Até que se sentou ao lado de Bernardo.
-Que desespero foi esse?- perguntou o rapaz aliviado ao ver que aparentemente não era nada sério. – Aconteceu algu...
Com um beijo nos lábios Soraia o interrompeu. Um beijo sem respiração, mas com sentimentos acumulados por quase dois anos. Parecia que estava preso dentro dos dois, e finalmente livre. As crianças no parque os observavam curiosos e sorrindo. Já estavam assim há minutos. O beijo parecia não ter fim. Mas o oxigênio foi faltando.
-Eu precisava fazer isso. –disse a menina sorrindo e com os lábios brilhantes devido a saliva.
-O que aconteceu? Do nada assim? Eu quase gritei estupro! – brincou ele segurando as suas mãos.
Soraia novamente encostou seus lábios ao dele, mas um pouco mais rápido dessa vez.
-Bernardo, eu gosto muito de você. E estava insuportável não ter essa certeza. Estava com medo de a nossa amizade mudar, mas acho que somos amigos o suficiente. Acho que podemos “ficar” sem atrapalhar as coisas... – revelou Soraia falando sem tomar ar.
Bernardo parecia não acreditar. Rapidamente lembrou-se da época em que perseguia Soraia aos domingos no mercado. Se o Bernardo atual encontrasse o do passado, provavelmente teriam uma conversa descrente.
-Por mim ótimo, Soraia. Não sei o que dizer. Eu queria isso há anos. Mas... Mas nunca achei que você fosse me dar ideia. Que você fosse se interessar por mim.
Ela o beijou levemente.
-Bê, você é um cara incrível! Poucos rapazes de dezessete anos pensam assim. Eu tento conversar com meus amigos da escola, mas nenhum sabe falar assim como você. Sabe? Você me entende. Parece comigo, só que de calças!
-Você fala cada coisa. Mas tem razão. Acho que temos muito em comum, Soraia. E por mim será ótimo que a gente se “pegue” de vez em quando.
Soraia abaixou os olhos. Parecia ter pensando em algo desmotivador. Seu amigo levantou levemente seu queixo.
-Que foi? Falei merda?
-Não... É que...
-Vai dizer que já se arrependeu de me beijar? Pelo amor de Deus, hein...
Ela sorriu, mas logo voltou a parecer preocupada.
-É que provavelmente teremos que “ficar” escondidos. Meus pais não vão me deixar “ficar” com um amigo. Vão achar que somos namorados, o que vai dar a entender que logo iremos fazer sexo... Eles irão te odiar!
-É... – parou fingindo pensar sobre o assunto. -Isso é assustador. Já imaginou? A gente se beijando aqui na praça, aí vem um carro preto, saem homens encapuzados e me metralham? Que tragédia no bairro...
-Meu pai não é assassino! Idiota!
-Eu sei, Soraia. Mas ele seria capaz de fazer isso, se soubesse que a filhinha dele, que ele julga santinha, está se “pegando” na praça com um desconhecido!
-Ah, então tudo bem. Esquece o que te falei! A gente não fica ma...
-...Não! Não termine essa merda de frase! Eu estava bricando! Estou zoando! Calma! Por mim tudo bem a gente ficar escondido, Sô! Proibido é mais gostoso.
E assim foi. Duas, às vezes três vezes por semana, os dois se encontravam e beijavam-se o maior número de vezes possíveis. Às vezes na praça, às vezes na seção de vegetais do mercado (a mais escondida, por se localizar no fundo da loja), e às vezes ela ia até a escola dele, só para conversarem através das grades na hora de seu intervalo. A amizade foi se fortalecendo. A paixão dentro deles também. Pareciam namorados. Os pais dele já desconfiavam que a tal Soraia que sempre ligava para a casa da família às nove da noite, todos os dias, era a namorada de Bernardo. Mas esperariam ele anunciar o namoro.
Já os pais de Soraia nem faziam ideia de que ela estava se relacionando com um rapaz. Isso seria muito ruim, principalmente para os estudos dela. Soraia gostava do seu amigo. E queria muito que um dia, se tornassem namorados. Mas algo a prendia, e era justamente o medo da reação de seus pais.
Um ano se passou. Os dois estavam mais próximos do que nunca. As intimidades eram enormes. Ele já a chamava de idiota todas as vezes que falava algo que não fazia sentido. Ela o constrangia com perguntas sobre suas namoradas anteriores. Bernardo contou como fora sua primeira vez no sexo, aos catorze anos. Contou detalhes. Soraia adorou saber. Tinha medo de como seria a sua. Mas lendo as palavras do amigo, se sentiu confortada. Mentalmente desejou que seu primeiro parceiro fosse alguém como Bernardo, se não o próprio. Mas nunca o contou.
Outro ano se passou. Os dois se encontravam às vezes aos domingos. Iam rápido ao mercado, e depois sentavam na praça para conversarem. Falavam de coisas repetidas, sorriam de coisas já ditas. Pareciam duas crianças felizes com seus brinquedos. Lembrava-se de brincadeiras, de desenhos animados antigos e de comidas preferidas. Falavam mal dos outros, das pessoas que passavam e de si mesmo. Brincavam com tudo, e um amor foi crescendo dentro dos dois. Um amor jovem. Bernardo e Soraia tinham a mesma idade, compartilhavam dos mesmos pensamentos e muitas vezes das mesmas opiniões. Cada vez mais íntimos, ficava difícil esconder a paixão que surgia após dois anos.
Numa segunda-feira, Bernardo foi surpreendido por um telefonema. Pegou seu celular e viu o nome de Soraia no identificador de chamadas. Atendeu imediatamente. A menina parecia nervosa, e pediu para que dali a dez minutos, ele a encontrasse na praça. Não tinha como ele recusar tal convocação, e se arrumou num instante.
Saiu de casa correndo e atravessou a rua sem mesmo olhar para os lados. Em menos de dez minutos já estava sentado no banco de madeira ao lado do escorrega. Pôde nota Soraia chegando lentamente e com um olhar estranho. Ela foi se aproximando. Aproximou-se mais um pouco. Um pouco mais. Até que se sentou ao lado de Bernardo.
-Que desespero foi esse?- perguntou o rapaz aliviado ao ver que aparentemente não era nada sério. – Aconteceu algu...
Com um beijo nos lábios Soraia o interrompeu. Um beijo sem respiração, mas com sentimentos acumulados por quase dois anos. Parecia que estava preso dentro dos dois, e finalmente livre. As crianças no parque os observavam curiosos e sorrindo. Já estavam assim há minutos. O beijo parecia não ter fim. Mas o oxigênio foi faltando.
-Eu precisava fazer isso. –disse a menina sorrindo e com os lábios brilhantes devido a saliva.
-O que aconteceu? Do nada assim? Eu quase gritei estupro! – brincou ele segurando as suas mãos.
Soraia novamente encostou seus lábios ao dele, mas um pouco mais rápido dessa vez.
-Bernardo, eu gosto muito de você. E estava insuportável não ter essa certeza. Estava com medo de a nossa amizade mudar, mas acho que somos amigos o suficiente. Acho que podemos “ficar” sem atrapalhar as coisas... – revelou Soraia falando sem tomar ar.
Bernardo parecia não acreditar. Rapidamente lembrou-se da época em que perseguia Soraia aos domingos no mercado. Se o Bernardo atual encontrasse o do passado, provavelmente teriam uma conversa descrente.
-Por mim ótimo, Soraia. Não sei o que dizer. Eu queria isso há anos. Mas... Mas nunca achei que você fosse me dar ideia. Que você fosse se interessar por mim.
Ela o beijou levemente.
-Bê, você é um cara incrível! Poucos rapazes de dezessete anos pensam assim. Eu tento conversar com meus amigos da escola, mas nenhum sabe falar assim como você. Sabe? Você me entende. Parece comigo, só que de calças!
-Você fala cada coisa. Mas tem razão. Acho que temos muito em comum, Soraia. E por mim será ótimo que a gente se “pegue” de vez em quando.
Soraia abaixou os olhos. Parecia ter pensando em algo desmotivador. Seu amigo levantou levemente seu queixo.
-Que foi? Falei merda?
-Não... É que...
-Vai dizer que já se arrependeu de me beijar? Pelo amor de Deus, hein...
Ela sorriu, mas logo voltou a parecer preocupada.
-É que provavelmente teremos que “ficar” escondidos. Meus pais não vão me deixar “ficar” com um amigo. Vão achar que somos namorados, o que vai dar a entender que logo iremos fazer sexo... Eles irão te odiar!
-É... – parou fingindo pensar sobre o assunto. -Isso é assustador. Já imaginou? A gente se beijando aqui na praça, aí vem um carro preto, saem homens encapuzados e me metralham? Que tragédia no bairro...
-Meu pai não é assassino! Idiota!
-Eu sei, Soraia. Mas ele seria capaz de fazer isso, se soubesse que a filhinha dele, que ele julga santinha, está se “pegando” na praça com um desconhecido!
-Ah, então tudo bem. Esquece o que te falei! A gente não fica ma...
-...Não! Não termine essa merda de frase! Eu estava bricando! Estou zoando! Calma! Por mim tudo bem a gente ficar escondido, Sô! Proibido é mais gostoso.
E assim foi. Duas, às vezes três vezes por semana, os dois se encontravam e beijavam-se o maior número de vezes possíveis. Às vezes na praça, às vezes na seção de vegetais do mercado (a mais escondida, por se localizar no fundo da loja), e às vezes ela ia até a escola dele, só para conversarem através das grades na hora de seu intervalo. A amizade foi se fortalecendo. A paixão dentro deles também. Pareciam namorados. Os pais dele já desconfiavam que a tal Soraia que sempre ligava para a casa da família às nove da noite, todos os dias, era a namorada de Bernardo. Mas esperariam ele anunciar o namoro.
Já os pais de Soraia nem faziam ideia de que ela estava se relacionando com um rapaz. Isso seria muito ruim, principalmente para os estudos dela. Soraia gostava do seu amigo. E queria muito que um dia, se tornassem namorados. Mas algo a prendia, e era justamente o medo da reação de seus pais.
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4
4
Após jantar, Bernardo se deitou na cama e ficou observando o céu pelo pouco que dava pra ver daquela posição. Tentava se concentrar, mas uma ideia fixa prendia seus pensamentos a um assunto. Soraia. Não queria, mas seus pensamentos precisavam se organizar. Não conseguia mais ficar naquela situação. Queria ver Soraia mais vezes, e sem o medo de ser pego. Queria estar com ela por mais horas. Mas falar sobre isso poderia custar tudo que tinham. Sua dúvida era: se contentava com o que tinha, ou arriscava tudo para ter mais?
Na casa de Soraia, o telefone tocou ao meio dia do dia seguinte. Ela estava fazendo as unhas com sua irmã mais velha, e correu para atender. Um sorriso se formou em seus lábios ao notar que a voz era de Bernardo. Mas logo se fecharia, devido ao conteúdo da ligação.
-Precisamos conversar.
-Pode falar, Bernardo. Estava pensando em voc...
-Eu quero falar com seus pais.
-O quê?
-Eu quero falar com seus pais sobre a gente. Acho que estamos preparados para namorar...
-Calma! Esqueceu o que eu falei sobre eles? Não vão aceitar, cara. Eles vão me prender ainda mais. É uma coisa a ser pensada com cuidado.
-Soraia, tá difícil! Eu estou... Estou apaixonado por você. Eu não quero mais viver escondido. Estar te beijando e no meio de um beijo, você sair correndo por que estão te ligando. Ou então beijar você com olhos entreabertos para vigiar se alguém se aproxima. Isso é horrível! E o que mais dói, é parecer que só eu me incomodo!
-Não fala besteira! Eu quero muito. Sou louca por você! Mas não pode ser assim...
-Assim como, Soraia? Assim como? A gente tá nessa há dois anos, acho que é tempo suficiente para uma relação. Pessoas se casam com muito menos tempo. Só pela satisfação de estar junto de quem se gosta.
-Eu gosto de você...
-Não parece. E quero falar com seus pais. Marca um dia.
-Não...
-Soraia, marca um dia!
-Não pode ser assim... Preciso prepará-los...
Houve silêncio. Bernardo estava irritado. Mas não conseguira convencer a moça. Desligou o telefone sem dizer “Beijo...Tchau!”, como sempre fazia. Soraia sentiu que ele realmente estava chateado
Por mais alguns dias houve insistência da parte dele e rejeição da parte dela. Ambos queriam e também sabiam que seria o melhor. Mas Soraia tinha medo. Medo não só de ter dificuldades para ver seu amigo, mas também de que a amizade se perdesse. Sabia que namoros mudam as coisas. Entram em cena o ciúme, a saudade e o medo da perda. Entram em cena a insegurança e a irritação aos telefonemas sem respostas. A raiva por não ser lembrada ou reparada quando usasse uma roupa nova ou cortasse os cabelos. Soraia tinha medo. E o medo foi fazendo-a se afastar. Cada vez mais. Até que um dia, ela resolveu simplesmente tirar Bernardo de sua vida.
Numa conversa rápida no supermercado, ela explicou sua situação. Falou sobre seus pais, sobre sua educação. Havia comentado por alto com sua mãe sobre o fato de começar um namoro um dia. E ela reagira de forma rude. Falou sobre a prioridade nos estudos e das responsabilidades. Não aprovou.
Bernardo ficou triste. Foi como um banho de água fria. Durante a conversa, disse coisas que se arrependeria mais tarde. Falou sobre os dois. Sobre como a Soraia amiga era mais simpática que a Soraia “ficante”. Ela respondeu, dizendo que se soubesse que ele era no fundo um ogro, jamais teria esbarrado de propósito nele no mercado. Tal revelação, ao mesmo tempo em que deixou Bernardo com ainda mais raiva do momento, fez surgir nele um sentimento angustiante. Parecia que estava prestes a perdê-la e que não a conhecia tanto quanto julgava conhecê-la.
E de fato, era o que aconteceria. Uma amizade de dois anos, cheia de revelações e confissões, estava se encerrando ali. Durante uma conversa que deveria mudar para melhor a relação de ambos.
-Não me procure mais, Soraia. Se você gostasse de mim, arriscaria. Você lutaria para ser minha namorada. Mas você tá simplesmente fechando as portas para a oportunidade. Isso não é gostar...
-Bernardo, você não entende. Não posso te segurar. Se quiser ir, se acha que é o certo a ser feito. Não vou te impedir.
A frieza com que as palavras foram ditas magoaram o rapaz, que se virou disposto a nunca mais falar com sua ex-amiga. E tudo porque ela desistiu de tentar.
Na casa de Soraia, o telefone tocou ao meio dia do dia seguinte. Ela estava fazendo as unhas com sua irmã mais velha, e correu para atender. Um sorriso se formou em seus lábios ao notar que a voz era de Bernardo. Mas logo se fecharia, devido ao conteúdo da ligação.
-Precisamos conversar.
-Pode falar, Bernardo. Estava pensando em voc...
-Eu quero falar com seus pais.
-O quê?
-Eu quero falar com seus pais sobre a gente. Acho que estamos preparados para namorar...
-Calma! Esqueceu o que eu falei sobre eles? Não vão aceitar, cara. Eles vão me prender ainda mais. É uma coisa a ser pensada com cuidado.
-Soraia, tá difícil! Eu estou... Estou apaixonado por você. Eu não quero mais viver escondido. Estar te beijando e no meio de um beijo, você sair correndo por que estão te ligando. Ou então beijar você com olhos entreabertos para vigiar se alguém se aproxima. Isso é horrível! E o que mais dói, é parecer que só eu me incomodo!
-Não fala besteira! Eu quero muito. Sou louca por você! Mas não pode ser assim...
-Assim como, Soraia? Assim como? A gente tá nessa há dois anos, acho que é tempo suficiente para uma relação. Pessoas se casam com muito menos tempo. Só pela satisfação de estar junto de quem se gosta.
-Eu gosto de você...
-Não parece. E quero falar com seus pais. Marca um dia.
-Não...
-Soraia, marca um dia!
-Não pode ser assim... Preciso prepará-los...
Houve silêncio. Bernardo estava irritado. Mas não conseguira convencer a moça. Desligou o telefone sem dizer “Beijo...Tchau!”, como sempre fazia. Soraia sentiu que ele realmente estava chateado
Por mais alguns dias houve insistência da parte dele e rejeição da parte dela. Ambos queriam e também sabiam que seria o melhor. Mas Soraia tinha medo. Medo não só de ter dificuldades para ver seu amigo, mas também de que a amizade se perdesse. Sabia que namoros mudam as coisas. Entram em cena o ciúme, a saudade e o medo da perda. Entram em cena a insegurança e a irritação aos telefonemas sem respostas. A raiva por não ser lembrada ou reparada quando usasse uma roupa nova ou cortasse os cabelos. Soraia tinha medo. E o medo foi fazendo-a se afastar. Cada vez mais. Até que um dia, ela resolveu simplesmente tirar Bernardo de sua vida.
Numa conversa rápida no supermercado, ela explicou sua situação. Falou sobre seus pais, sobre sua educação. Havia comentado por alto com sua mãe sobre o fato de começar um namoro um dia. E ela reagira de forma rude. Falou sobre a prioridade nos estudos e das responsabilidades. Não aprovou.
Bernardo ficou triste. Foi como um banho de água fria. Durante a conversa, disse coisas que se arrependeria mais tarde. Falou sobre os dois. Sobre como a Soraia amiga era mais simpática que a Soraia “ficante”. Ela respondeu, dizendo que se soubesse que ele era no fundo um ogro, jamais teria esbarrado de propósito nele no mercado. Tal revelação, ao mesmo tempo em que deixou Bernardo com ainda mais raiva do momento, fez surgir nele um sentimento angustiante. Parecia que estava prestes a perdê-la e que não a conhecia tanto quanto julgava conhecê-la.
E de fato, era o que aconteceria. Uma amizade de dois anos, cheia de revelações e confissões, estava se encerrando ali. Durante uma conversa que deveria mudar para melhor a relação de ambos.
-Não me procure mais, Soraia. Se você gostasse de mim, arriscaria. Você lutaria para ser minha namorada. Mas você tá simplesmente fechando as portas para a oportunidade. Isso não é gostar...
-Bernardo, você não entende. Não posso te segurar. Se quiser ir, se acha que é o certo a ser feito. Não vou te impedir.
A frieza com que as palavras foram ditas magoaram o rapaz, que se virou disposto a nunca mais falar com sua ex-amiga. E tudo porque ela desistiu de tentar.
*
5
De volta a sua cama, Bernardo fitava o teto lembrando-se de Soraia. Usava o teto como uma tela onde seus próprios olhos se faziam de projetor, como nos cinemas. Na tela eram projetados os momentos com Soraia e suas qualidades. Seu jeito meigo, o modo como falava. Estranhamente, ele nunca havia percebido seu corpo até então. Era belo, tinha formas belas. Seu carinho por ela passava por cima dos desejos carnais. Passava por cima da vontade de possuí-la na cama, como todos os seus amigos diziam querer, sem saber que o mais próximo daquela menina que passava cabisbaixa perto deles, era o próprio Bernardo. Sem nunca tirar vantagem de tê-la como amiga. De beijá-la levemente. Sem nunca contar vantagens de sempre às nove da noite, todos os dias, receber uma ligação dela querendo saber de seu dia. Foi seu amigo e “ficante” às escondidas.
Conforme a raiva e a mágoa foram passando devido ao alto número de lembranças boas, Bernardo tentou se reaproximar de Soraia, porém, ela já não falava com o mesmo fervor. Já não lhe atendia. Parecia que não era mais a mesma menina. Parecia que o havia esquecido. E isso só ficou mais evidente quando, um ano depois passeando pela praça, avistou-a aos beijos com outro rapaz, e com sua mãe ao lado. Logo sua mãe, que há um ano havia sido contra namoros. Aquilo foi o ato final daquela história. E Bernardo excluiu-a de tudo. Orkut, MSN, e por fim, do mais importante e fatal, a excluiu de sua vida.
Conforme a raiva e a mágoa foram passando devido ao alto número de lembranças boas, Bernardo tentou se reaproximar de Soraia, porém, ela já não falava com o mesmo fervor. Já não lhe atendia. Parecia que não era mais a mesma menina. Parecia que o havia esquecido. E isso só ficou mais evidente quando, um ano depois passeando pela praça, avistou-a aos beijos com outro rapaz, e com sua mãe ao lado. Logo sua mãe, que há um ano havia sido contra namoros. Aquilo foi o ato final daquela história. E Bernardo excluiu-a de tudo. Orkut, MSN, e por fim, do mais importante e fatal, a excluiu de sua vida.
*
6
Até resgatá-la do poço de memórias após ler seu nome na lateral de um carro.
Finalmente se aproximando do ponto aonde ia descer, pegou sua bolsa com a senhora idosa e agradeceu. Foi caminhando até o fundo do ônibus tentando não pisar nos pés alheios, e desviando dos inconvenientes que permaneciam com suas mochilas imensas nas costas, que dificultavam ainda mais a passagem.
Desceu finalmente, seu peito parecia angustiado e ele sabia o motivo. Aquela ligeira regressão ao seu passado havia cavado jardins já cobertos. Colocou a mochila nas costas e atravessou a rua. Passaria antes no mercado para comprar alguma coisa para comer na manhã seguinte. Seu irmão geralmente comia os pães e biscoitos o dia inteiro, pois trabalhava em casa, e assim, detonava a geladeira e o armário da cozinha.
Ao entrar no mercado sentiu o ar-condicionado relaxar seus músculos. Foi diretamente a seção de biscoitos, depois a de refrigerantes. Lembrou-se em cima da hora que precisava de desodorante. Escolheu um que não deixava manchas brancas nas axilas, pelo menos prometia isso. Era caro, mas era o melhor entre todos.
Foi para a fila.
Finalmente se aproximando do ponto aonde ia descer, pegou sua bolsa com a senhora idosa e agradeceu. Foi caminhando até o fundo do ônibus tentando não pisar nos pés alheios, e desviando dos inconvenientes que permaneciam com suas mochilas imensas nas costas, que dificultavam ainda mais a passagem.
Desceu finalmente, seu peito parecia angustiado e ele sabia o motivo. Aquela ligeira regressão ao seu passado havia cavado jardins já cobertos. Colocou a mochila nas costas e atravessou a rua. Passaria antes no mercado para comprar alguma coisa para comer na manhã seguinte. Seu irmão geralmente comia os pães e biscoitos o dia inteiro, pois trabalhava em casa, e assim, detonava a geladeira e o armário da cozinha.
Ao entrar no mercado sentiu o ar-condicionado relaxar seus músculos. Foi diretamente a seção de biscoitos, depois a de refrigerantes. Lembrou-se em cima da hora que precisava de desodorante. Escolheu um que não deixava manchas brancas nas axilas, pelo menos prometia isso. Era caro, mas era o melhor entre todos.
Foi para a fila.
*
7
O destino prega peças. Ninguém pode negar isso, pois todos nós já fomos vítimas das brincadeiras do dele em algum momento de nossa existência. Seja com pequenas demonstrações, ele sempre arruma um jeito de nos impressionar com suas artimanhas. Além disso, ele nos dá poderes que poucos sabemos possuir. É o caso de quando pensamos muito em uma coisa, ou alguém, e de alguma forma, seja por outra pessoa, por uma foto que cai da agenda, nos faz ter contato com isso.
-Bernardo?- disse uma voz feminina fazendo-o parar de tentar achar o preço da sardinha em lata e desviar os olhos para o lado.
Mal podia acreditar. Ali ao seu lado, estava Soraia. Usando um vestido curto florido e de mãos dadas a uma criança.
-Bernardo! Não acredito... Faz tanto tempo!
Colocou a lata de sardinha de volta na prateleira e se aproximou com um leve sorriso. Havia algo de diferente nela.
-Nossa! Como você mudou! Já foi mais bonito, hein... - Comentou enquanto puxava a criança que tentava se desprender.
-Você também... Tá bem diferente... Nem lembro quanto tempo faz. Acho que uns seis, por aí!... Não, acho que oito!
-Nossa, muito tempo mesmo. E aí, continua aquele românticozinho birrento? Não me esqueço de você falando comigo, brigando porque eu não queria falar com meus pais sobre a gente.
As mãos de Bernardo deslizaram de volta para a prateleira. Pegou novamente a lata de sardinhas e voltou a procurar seu preço. A partir daí, respondia as perguntas de Soraia apenas com simples “Sim”, “Não”, e quando precisava de mais palavras, resumia ao máximo possível. Aos poucos Soraia viu que não era bem vinda. Que talvez, nesses tantos anos, Bernardo tivesse mudado, tivesse a esquecido. Educadamente se despediu sem ao menos tentar abraçá-lo.
Saiu do mercado e entrou no carro de seu namorado. A criança se sentou ao seu lado e abraçou-a. Minutos depois seu namorado entrou no carro com alguns pastéis da lanchonete do estacionamento e logo notou a expressão de Soraia.
-Aconteceu alguma coisa, amor?
-Sabe aquele rapaz que te falei ontem? Que eu quase namorei quando tinha dezessete anos? E que paramos de nos falar?
-Sim, o Bernardo, né?
-Você acredita? Maior coincidência! Acabei de encontrá-lo lá dentro! Mas ele estava estranho, mudou tanto.
-Uau! Estou namorando uma menina com superpoderes! Pensa aí no número da Mega Sena, mas pensa com vontade. Quem sabe nós não terminamos essa semana milionários! – brincou enquanto ligava o carro.
Ela sorriu, mas por dentro estava magoada. Porque será que Bernardo não parecia feliz em vê-la? Será que no fundo, depois de tanto tempo ainda guardava mágoas? Ela nunca saberia, e só o veria vez ou outra no mercado, mesmo assim, fingindo não percebê-lo passar.
Bernardo estava visivelmente decepcionado. Como alguém muda assim, e deixa se perceber isso em poucas palavras. Ao invés de risos, o que se viu fora uma enxurrada de brincadeiras e ofensas maldosas. Nem de longe Soraia parecia a menina meiga de seis anos atrás. Rude nas palavras, olhar audacioso, ofensiva e inconveniente, parecia outra pessoa. Era interessante por um lado, pensar numa pessoa, reviver em flashs toda uma história passada, e de repente, encontrar a mesma, só que numa versão diferente. Era como descobrir que aquela atriz da novela, a mocinha, era na vida real, fora dos estúdios, uma bruxa. Sentia-se enganado. Sentia que tudo que vivera e estimara foi em vão.
Caminhou para a fila do caixa, pensativo. Desencantado. Sua cabeça pesava com o excesso de perguntas, as mesmas de sempre. Lembrou-se mais um pouco do passado e de como era ruim saber que nada mais seria como antes. Soraia estava namorando e aparentemente já tinha um filho. Nunca iria imaginar a meiga mocinha amamentando um filho que não fosse seu. As promessas de se entregar primeiro a ele também estavam ali desfeitas. Era como acordar de um daqueles sonhos em que às vezes são pesadelos, e logo em seguida se emendam num mais tranquilo e agradável.
Pagou as compras e saiu do mercado com a bolsa. O calor estava forte, abafado, e suas costas suavam com a mochila pendurada. Não via a hora de chegar em casa. Sabia que iria pensar naquilo tudo antes de dormir. Pensar em como as coisas se encaixam nas nossas vidas e nem percebemos. Durante anos esquecera-se de Soraia. Durante anos viveu sua vida ignorando a paixão avassaladora que vivera na adolescência. De repente, num dia comum, ela volta ao seu pensamento junto com tudo que viveram. Todas as cenas passando como um flash-back de final de filme. Quem iria adivinhar que dali dos pensamentos, ela se materializaria totalmente diferente do passado bem na sua frente.
Antes de dormir, Bernardo chegou a conclusão de que às vezes devemos deixar o passado do jeito que é. Talvez seja a vontade de Deus, ou do próprio destino, se considerarmos ele uma entidade. Por isso não somos capazes de criarmos máquinas do tempo que possam nos levar e alterar o que já foi feito. Talvez por isso Soraia tenha sido apagada de sua memória por esse tempo. Para ser mantida como a menina meiga que sempre fora. As lembranças que tinha da moça alimentavam aquele suspiro que damos quando nos lembramos de pessoas as quais nos apegamos, mas que saíram de nossas vidas temporariamente, ou para sempre. Mas encontrá-la ali, fez com que muito desse carinho se enfraquecesse.
Soraia conseguiu com poucas palavras apagar muito do carinho e saudade que Bernardo tinha dela. Provavelmente demoraria a que ele tivesse outro surto de memória e lembrasse dos detalhes, como a música que escolheram para os dois. Como os presentes e cartões de natal que trocaram. Mas queria deixá-la apagada. Queria guardar o pouco que sobrou da menina de quinze anos que ele seguia aos domingos. Pela qual fora obcecado. Pela qual nutriu e dedicou um amor incomparável em sua vida.
Não mais tocaria no passado. Deixaria o caminho livre para o futuro, e aproveitaria tudo que pudesse, da melhor maneira possível, até que outro engarrafamento, música, ou cheiro o levasse de volta a um tempo que não voltaria mais.
Finalmente aprendeu a trancar as gavetas da vida e só abri-las no único lugar seguro para fazer isso: Nas lembranças.
-Bernardo?- disse uma voz feminina fazendo-o parar de tentar achar o preço da sardinha em lata e desviar os olhos para o lado.
Mal podia acreditar. Ali ao seu lado, estava Soraia. Usando um vestido curto florido e de mãos dadas a uma criança.
-Bernardo! Não acredito... Faz tanto tempo!
Colocou a lata de sardinha de volta na prateleira e se aproximou com um leve sorriso. Havia algo de diferente nela.
-Nossa! Como você mudou! Já foi mais bonito, hein... - Comentou enquanto puxava a criança que tentava se desprender.
-Você também... Tá bem diferente... Nem lembro quanto tempo faz. Acho que uns seis, por aí!... Não, acho que oito!
-Nossa, muito tempo mesmo. E aí, continua aquele românticozinho birrento? Não me esqueço de você falando comigo, brigando porque eu não queria falar com meus pais sobre a gente.
As mãos de Bernardo deslizaram de volta para a prateleira. Pegou novamente a lata de sardinhas e voltou a procurar seu preço. A partir daí, respondia as perguntas de Soraia apenas com simples “Sim”, “Não”, e quando precisava de mais palavras, resumia ao máximo possível. Aos poucos Soraia viu que não era bem vinda. Que talvez, nesses tantos anos, Bernardo tivesse mudado, tivesse a esquecido. Educadamente se despediu sem ao menos tentar abraçá-lo.
Saiu do mercado e entrou no carro de seu namorado. A criança se sentou ao seu lado e abraçou-a. Minutos depois seu namorado entrou no carro com alguns pastéis da lanchonete do estacionamento e logo notou a expressão de Soraia.
-Aconteceu alguma coisa, amor?
-Sabe aquele rapaz que te falei ontem? Que eu quase namorei quando tinha dezessete anos? E que paramos de nos falar?
-Sim, o Bernardo, né?
-Você acredita? Maior coincidência! Acabei de encontrá-lo lá dentro! Mas ele estava estranho, mudou tanto.
-Uau! Estou namorando uma menina com superpoderes! Pensa aí no número da Mega Sena, mas pensa com vontade. Quem sabe nós não terminamos essa semana milionários! – brincou enquanto ligava o carro.
Ela sorriu, mas por dentro estava magoada. Porque será que Bernardo não parecia feliz em vê-la? Será que no fundo, depois de tanto tempo ainda guardava mágoas? Ela nunca saberia, e só o veria vez ou outra no mercado, mesmo assim, fingindo não percebê-lo passar.
Bernardo estava visivelmente decepcionado. Como alguém muda assim, e deixa se perceber isso em poucas palavras. Ao invés de risos, o que se viu fora uma enxurrada de brincadeiras e ofensas maldosas. Nem de longe Soraia parecia a menina meiga de seis anos atrás. Rude nas palavras, olhar audacioso, ofensiva e inconveniente, parecia outra pessoa. Era interessante por um lado, pensar numa pessoa, reviver em flashs toda uma história passada, e de repente, encontrar a mesma, só que numa versão diferente. Era como descobrir que aquela atriz da novela, a mocinha, era na vida real, fora dos estúdios, uma bruxa. Sentia-se enganado. Sentia que tudo que vivera e estimara foi em vão.
Caminhou para a fila do caixa, pensativo. Desencantado. Sua cabeça pesava com o excesso de perguntas, as mesmas de sempre. Lembrou-se mais um pouco do passado e de como era ruim saber que nada mais seria como antes. Soraia estava namorando e aparentemente já tinha um filho. Nunca iria imaginar a meiga mocinha amamentando um filho que não fosse seu. As promessas de se entregar primeiro a ele também estavam ali desfeitas. Era como acordar de um daqueles sonhos em que às vezes são pesadelos, e logo em seguida se emendam num mais tranquilo e agradável.
Pagou as compras e saiu do mercado com a bolsa. O calor estava forte, abafado, e suas costas suavam com a mochila pendurada. Não via a hora de chegar em casa. Sabia que iria pensar naquilo tudo antes de dormir. Pensar em como as coisas se encaixam nas nossas vidas e nem percebemos. Durante anos esquecera-se de Soraia. Durante anos viveu sua vida ignorando a paixão avassaladora que vivera na adolescência. De repente, num dia comum, ela volta ao seu pensamento junto com tudo que viveram. Todas as cenas passando como um flash-back de final de filme. Quem iria adivinhar que dali dos pensamentos, ela se materializaria totalmente diferente do passado bem na sua frente.
Antes de dormir, Bernardo chegou a conclusão de que às vezes devemos deixar o passado do jeito que é. Talvez seja a vontade de Deus, ou do próprio destino, se considerarmos ele uma entidade. Por isso não somos capazes de criarmos máquinas do tempo que possam nos levar e alterar o que já foi feito. Talvez por isso Soraia tenha sido apagada de sua memória por esse tempo. Para ser mantida como a menina meiga que sempre fora. As lembranças que tinha da moça alimentavam aquele suspiro que damos quando nos lembramos de pessoas as quais nos apegamos, mas que saíram de nossas vidas temporariamente, ou para sempre. Mas encontrá-la ali, fez com que muito desse carinho se enfraquecesse.
Soraia conseguiu com poucas palavras apagar muito do carinho e saudade que Bernardo tinha dela. Provavelmente demoraria a que ele tivesse outro surto de memória e lembrasse dos detalhes, como a música que escolheram para os dois. Como os presentes e cartões de natal que trocaram. Mas queria deixá-la apagada. Queria guardar o pouco que sobrou da menina de quinze anos que ele seguia aos domingos. Pela qual fora obcecado. Pela qual nutriu e dedicou um amor incomparável em sua vida.
Não mais tocaria no passado. Deixaria o caminho livre para o futuro, e aproveitaria tudo que pudesse, da melhor maneira possível, até que outro engarrafamento, música, ou cheiro o levasse de volta a um tempo que não voltaria mais.
Finalmente aprendeu a trancar as gavetas da vida e só abri-las no único lugar seguro para fazer isso: Nas lembranças.
FIM.
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Muito obrigado pela leitura, e espero que realmente tenham se divertido,se emocionado ou até se identificado com o texto!
Rafael Velloso
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