A Mulher Que Reclamava

Era sempre assim, bastava pegar a vassoura que todos ficavam nervosos e apreensivos, e até sobressaltados, pois tinham que ficar imóveis em seus lugares enquanto ela descrevia as suas recomendações. Na verdade não eram bem recomendações, eram imposições mesmo: chinelos na mão, tv desligada, revistas no cesto, roupas no balde, controles sobre a mesa, bundas no sofá e pés suspensos, afinal de contas, a “hdf” (hora da faxina) ia começar. E não adiantava argumentar em nada, pois eram inúteis as tentativas de ajuda e colaboração. O melhor mesmo era que todos se calassem...

— Como posso varrer essa casa, se nem as cadeiras vocês tiraram da sala...?!

— Mamãe...! Por que primeiro a senhora não varre a área e...

— Mas vocês não tão vendo que eu tô com a vassoura é na sala...?! Vocês bem que podiam...

— Mas a senhora não disse nada...!

— E precisa...?!

— Claro mãe...!

— Claro o quê...?! Vocês não enxergam não...?!

— Ora mãe... ninguém podia adivinhar... por quê a senhora não falou...?!

— Falou o quê...?! Tá teimando comigo...?! No meu tempo os filhos não teimavam com os pais não, viu?

— Teimando o quê, mãe...! Puta merda...!

— Boquinha doce, né...?!

— Calma... calma Júnior! Interfere a irmã. Tu não conheces a mamãe... tudo sempre não é do jeito dela! Tu retrucas por que queres!

— Mas Vanessa... a mamãe também...! Vou te dizer... viu, eu... eu... eu já tô pra ficar é doido...! Assim não dá!

— Quem que tá ficando doida... heim...? Explodiu a mãe. Isso é jeito de falar...?! E o respeito...?!

— Mãe, a senhora acha que eu a chamei...

— Eu ouvi perfeitamente.

O clima ficou tenso, os ânimos acirrados, até que...

— Ele não falou com você, não, meu amor! Interpela o marido ao sair do banheiro.

— Tu sabe de nada...! Falso... mentiroso...!

— Você tá me chamando de mentiroso, minha filha...! Eu vi que o garoto não falou assim... e nem com você!

— Falso, mesmo... “meu amor, meu amor”, só falsidade.

— Tá bom, saio fora dessa confusão, não dou mais nem uma palavra...! Tchau.

— É melhor mesmo, é o melhor que tu faz...! E... oh meu Deus do céu... desse jeito eu não agüento...! Olha só...! Todo molhado...! Como é que uma pessoa sai do banheiro pingando desse jeito...! Querem me fazer mesmo é de escrava... tudo eu, tudo eu...! Desse jeito eu vou...! Eu vou...

Aconteceu.

“Todo molhado e pingando desse jeito”... na verdade, alguns ralos pingos... condição normal de quem sai de um banheiro, mas o suficiente para acender o estopim de quem está prestes a explodir.

Mais um pingo e... estava armado o barraco! Dali a pouco a casa desabaria. Com as mãos sobre a cabeça e aos prantos, não respondia mais por si. Os problemas, os reclames e as lágrimas lhe vinham aos montes, e a cada vez, mais dramáticos, ao mesmo tempo em que assoava o nariz num chororô sem fim. Aquelas reclamações, embebidas de desabafo, eram uma eternidade; parecia que não iam mais acabar. Ali estava um documentário de família; ali eram relembradas coisas que não faziam mais sentido... e aí, as ex-namoradas do marido (dizia que eram todas “bolo-fofo”); ali eram ditas frases nunca verdadeiras, como: “ninguém gosta de mim”, ou “ninguém tem pena de mim”, quando amor não era o que faltava àquela família, e... “ter pena de mim” não fazia sentido ser cobrado, quanto mais, demonstrado.

Aquela família tinha muito amor, a bem da verdade, excesso de amor, tanto por aquela mãe, como por aquela esposa. Um amor traduzido de proteção e bem-estar; exibido nos cuidados e segurança; refletido na exclusividade e domínio e cobrado na organização e limpeza.

Dona Deuza, era sim, aquela mulher. Em primeira vista não aparentava ser nervosa, nem impaciente, ou melhor, não era nervosa. A família sabia muito bem que sua complacência superava em muito a sua impaciência. Por muitas vezes, o amor que exalava de si era tão grande, que era impossível marido e filhos relembrarem momentos passados de desarmonia. Daí por que, sabiam que aquele momento, embora não parecesse, era como fogo de palha, ou seja, passageiro. Preocupação com os parentes, solidariedade e presteza eram a marca de dona Deuza.

Quando alguém dos seus ou algum parente adoecia... lá estava ela com seus remédios caseiros; se um irmão seu exagerava na bebida e/ou maltratava a esposa e os filhos... era dona Deuza que o cobria de conselhos. Como não lembrar do seu sobrinho que chegou de Brasília, o Alan, sem eira nem beira, puxando a cachorrinha conforme oseu comentário, e sem ter quem o hospedasse... foi mais uma vez dona Deuza quem o acolheu. E logo depois, cuidou de azucrinar os ouvidos do marido para que arranjasse um emprego lá na Obra do HBB onde trabalhava, para o sobrinho. E ele conseguiu. Aquele outro... um irmão adotivo criado por sua mãe, não tinha colégio que o aceitasse mais, de tão mal-criado e mal-ouvido que era... dona Deuza puxou para si a incumbência de acompanhar e tocar os estudos do garoto. Como...?! Novamente o marido. É...! Seu marido era rígido nestas questões de educação e leitura; não à toa, seus filhos dali a poucos anos seriam doutores, e ela acreditava, o Rodrigo também poderia ser. Para isso, teria que passar pelas mãos do seu Elber e enfrentar sua carranca.

Como mãe, era uma felina que não arredava da vigilância, não se deixava abater e protegia sua prole com muito afinco, nem que para isso, tivesse por muitas vezes que contrariá-los ou desagradá-los. Como esposa, bem... uma mulher que morria de amores pelo marido. Era dessa forma que sua família a tinha e a amava, pois sabia que aquelas broncas não passavam de alguns minutos desconsideráveis.

— Mas a culpa é toda tua, tua...! Quando eles eram pequenos, tu os impedia de fazerem alguma coisa ou de me ajudarem, era só estudar... estudar...! Ficaram grandes e não sabem fazer um café sequer. Onde já se viu isso...?! Só aqui... só comigo... só...

— E eu estava errado, estava?! Interfere o marido. Claro que não! E você sabe disso. Afinal, logo...logo, teremos uma cirurgiã dentista e um Advogado. Por isso minha filha, não me venha...

— Tá... tá... tá bom...! Eu sei... eu sei...! Concorda ela.

E assim era todos os dias, e em horário certo, logo depois de aprontar o almoço, entre as onze e meia e meio dia e meia. Seu marido nunca conhecera uma pessoa assim, onde o riso e o choro eram levados ao extremo, mas a admirava. Tanta reclamação e tanta maldizência, eram atreladas também a muitas palavras certas, embora muitas vezes não oportunas. Quando não oportunas, eram desgastantes e entediantes. Era como se o mundo inteiro estivesse certo e apenas aqueles três errados. E a cada gesto de concordância era uma chateação. Por isso não adiantava nada tentar ajudá-la, socorrê-la ou animá-la, seriam frustradas as tentativas. Por várias vezes o marido se fez meditar o motivo de sua postura. Seria nervosismo... seria ansiedade... seria um simples descontrole emocional...?! Como uma pessoa seria tão emotiva ao extremo...?! Como uma pessoa poderia chorar descontroladamente daquele jeito...?! Uma música para relaxar seria o ideal; ou uma palavra de carinho, talvez; que nada...! Naquele momento tudo a incomodava. E todos ao seu redor permaneciam mudos e abismados. Talvez sua história... sua infância... ele pensava. Quando criança, aos oito anos, ela cuidara de onze irmãos, todas as vezes que sua mãe tinha de ir até a quitanda do "compadre Zé Alves" num lugarejo distante de onde morava. Sua mãe só vinha dois dias depois. "Até aí era moleza", contara ela ao marido. Duro foi quando sua mãe teve de tratar-se na cidade mais próxima, de uma gravidez compicada. Dona Conceição teve que passar quase um mês no hospital.

"Pobre Deuzinha...! Tão pouquinha e já segurando uma barra dessas...!" Diziam os vizinhos. "Cuidar de onze irmãos... lavar, passar, dar de comer e botar pra dormir." Completavam. Ainda por cima, o marido também sabia, ela ainda aguentava os abusos do irmão mais velho, (o Zeca) de onze anos. “Pra gente só faltava tirar o rabo”, ela o teria dito. “Eu que era magrinha, fiquei só o “espírito de manjuba”... e quando eu me banhava, se contava quatro cabelos na minha cabeça...!" Choramingara.

E o pai da Deuzinha... não tinha...?! Tinha sim, “seu João”, um homem de poucos recursos, mas muito sério e honesto. Seu João trabalhava como diarista numa ilha distante e só aparecia em casa uma vez por mês trazendo mantimentos. Quando estava com a Deuzinha, botava cabrestos nos diabinhos.

Relembrando todas aquelas histórias da vida da esposa, contadas por ela mesma, seu Elber está emocionado. Uma criança fazendo comida para crianças, o que sairia...?! Ele matutava. Foi o que aconteceu quando Deuzinha esqueceu de botar sal no peixe... pra quê...! Foi aquela gritaria. Os meninos-cão começaram a reclamar, a gritar... e quase bateram na Deuzinha. Por sorte, naquele dia estava o seu João, que gritou bem acolá: “Ei... ei... ei...! O que é isso?! Que baderna é essa?! Tão reclamando do quê?! Tem nada ruim aqui não...! Quem não quiser comer, que não coma...! Pode deixar tudo que eu como." E aproveitou para acalentar a pequena dona de casa: "Nunca vi uma comida tão boa como essa, minha filha." A Deuzinha, tadinha, se derretera em choro! Antes que dona Conceição viesse da cidade após o tratamento, seu João partiu. Quase não deixa Deuzinha viva. Dona Maria, a vizinha da frente chegou a alertar: “Seu João... quando Ceição chegar, tem que internar a Deuzinha." Pobre Deuzinha!!!

Por tudo isso, os momentos das lamúrias seriam aparados por qualquer investida que rompesse aquele chororô desmilinguido. E o antídoto?! Bem, tinha um antídoto.

— Meu amor...! Pare de chorar!!! Você não vê que isso não resolve nada! As suas reclamações só complicam mais ainda.

Ele, repito, era o amor da sua vida, e sem dúvida, também a amava muito. Por isso mesmo, mais do que ninguém, o mentor de tantas discussões e tanto choro, era também o pivô que contornaria aquela situação. Era o único capaz de arrancar-lhe um sorriso ou no mínimo fazer-lhe calar. E isso viria, ele sabia, com frases vaporosas, frases de preenchimento, ou seja, embora verdadeiras, ditas de forma que lhe resgatasse o bom humor. Procurava responder-lhe sempre com lisonja e completar suas frases com gestos mimosos.

—Meu doce...!

— Vai te catar...! Tô precisando da tua opinião não.

— Minha filha... não é assim que se procede!

— Vai-te a merda...! Vai encher o saco doutra!

— Calma... calma minha filha...! Seja doce... seja meiga... seja fina...! Eh... eh... eh... eu preciso de uma mulher fina!

— Pois procura outra... que eu não sou assim não.

— Mas eu não quero outra... eu quero é você...! Basta que você mude!

— Mudar como...?! Tu me conheceu não foi assim...?!

— Gostaria de tê-la meiga, carinhosa, dócil...!

— Dócil... dócil...! Dócil é cachorro. Tu tá me chamando de cachorra é...?!

— Meu amor...! Seja paciente, compreensiva...! Ah sim... não se fala “tu”, se fala “você”.

— E por acaso tu é desse jeito...?!

— Claro, minha filha... olha só como eu estou falando com você?!

— Fingido... isso é que tu é!

— Não fale assim...! Se tem uma coisa que eu não sou, é fingido. Ainda mais em se tratando do meu amor por você.

— Nem mente...?!

— Meu amor, olhe pra mim... olhe aqui...! Eu te amo!

— Sai... sai... pára...! Ôôô... que coisa...! Sai... (fica)...!

E já quase atingindo o ápice, o marido apela:

— Olhe aqui... filha... por favor... olhe aqui...! Ande... ande... olhe aqui nos "meu zoinho” e diga que me ama...!

— Cachorro...!!!

Perfeito. Funcionou. Arrancar-lhe um, “cachorro...!!!” naquele momento, era como um prêmio por todo aquele esforço; era tudo que, por mais incrível que pareça, estava faltando. Até nisso, um "cachorro" se fez o melhor amigo do homem. Depois, um canto de boca puxado aqui... um sorriso acanhado ali, mas um sorriso, acompanhados de três palavras que selariam a paz e a tranqüilidade:

— Ah bicho falso!!!

Daí em diante, se seguiram momentos da mais pura harmonia.

— Vanessa...! Gritou já bem mais moderada. Olha só a bagunça que tá no teu quarto?! Não tá vendo que tem que arrumar não, heim...?! Deixa de ser relaxada menina!

— Amorzinho, interpelou o marido, é assim que você fala com sua filha...?! Por quê você não diz, “minha filha... vá arrumar seu quarto!”

— Não sou nem fresca!

— Isso não é frescura, isso é carinho e afeto. Isso é amor.

— Tá dizendo que eu não tenho amor por quem saiu de mim...?!

— Claro que você tem, e muito! Disso, eu não tenho dúvidas. O que está faltando é só um pouco de... de... de dengo, digamos assim!

— Ah não...! Isso já é frescura de mais! Eu nunca fui assim com ninguém...?!

— Só que você não está falando com ninguém, você está falando com nossos filhos, afinal, eles são parte de nós.

— Ah, tá... tá... tá!!! Tu deixa de frescura também!

— Ô... ô... ô...! Tu não, você!

— Mas tu... você é besta né...?! Sai... sai...! Sai do meio “João-do-meio”, deixa eu passar!

Nesse momento, tomou-a para si, e...

_ Venha cá...! Dê-me um beijo... hummm...!

E, não imune às alegações do marido, dona Deuza se derramou em seus braços. Em seguida...

— Meu amor, você sabe que eu sou louca por você...! Você é minha vida! Às vezes não me controlo e me destempero, mas... e nossos filhos, eles são tudo para mim, quer dizer, para nós né...?! Desculpa, tá?! Te amo!

— Te adoro!

Finalmente...

—ÊÊÊhhh...! Esse é o papai!!! Aplaudiram os filhos.

FIM

HELDER C ROCHA
Enviado por HELDER C ROCHA em 19/11/2011
Reeditado em 12/12/2020
Código do texto: T3345454
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