A Imprevisibilidade do Amor

Não demorei muito pra pegar no sono, assim como não demorei a acordar com o barulho ensurdecedor do celular, que na minha mesa de cabeceira, tocava aquela música um tanto bizarra: “mãe, cadê o meu ovo mexido?” Abri os olhos, e assustada, o peguei antes que acordasse a vizinhança. Fazia frio, e tentando não tirar meus braços debaixo do cobertor, apertei qualquer tecla e pus no ouvido. O primeiro som que ouvi e consegui entender foi a voz Lucas:

-Bom dia! Olha as flores que eu trouxe pra você, amor… – Cantarolou o trecho de uma música que marcou nossas vidas. Não cantava tão bem quanto um dia pensei, mas só pelo fato de estar me ligando àquela hora e cantando pra mim já me fazia sentir próxima de uma suposta perfeição.

-Ah, é você! O que houve? Aconteceu alguma coisa? – Perguntei assustada.-Não, meu amor… Tá tudo bem. E aí, o que estava fazendo?

- O que você acha que eu estava fazendo às... – tirei o celular da orelha e chequei a hora. – duas e meia da manhã? – Ironizei.

-Ah, sei lá… às vezes você demorou pra pegar no sono, ou ta fazendo algum trabalho da faculdade... Nunca se sabe.

-Pois bem, meu amor, você sabe que tenho certo “problema” com horários… Durmo e acordo cedo. Sempre. – Fui chata.

- Mas, então… Você pretende novamente repousar seus cabelos macios nesse travesseiro que não merece nem um pouco do seu cheiro?

- Lucas, pára com isso, por favor. Você ta realmente me assustando. – Do outro lado da linha, ele riu novamente. - Aonde quer chegar?

-Quero chegar aí na tua casa e te levar pra um lugar novo. – foi direto.

-Lucas, as dez pras três da manhã? – conferi o relógio-

-Sim, exatamente. –foi sincero-

-E, o que seria? – Tentei, sabendo que não iria me dizer.

Deu uma risada fraca, e com uma voz sarcástica, disse:

-Você acha mesmo que eu vou te contar pra onde vamos? Verdade que sou tão imprevisível assim?

- Ah, eu realmente esperava, huh... Mas, tudo bem... – choraminguei.

- Tá, me espere aí na portaria em dez minutos, pode ser?

Assenti.

-E, tem uma roupa específica que você ache melhor, ou qualquer uma está boa?

- Ah, não se preocupe com isso. Por mim, você pode ir sem nada. – Foi mais uma vez sarcástico.

- Engraçadinho. – Disse em tom de risada-

E dessa vez, ele riu sincero.

-Então tá, dez minutos. Não se atrase, porque ficar mais do que isso sem te ver, vai ser como arrancar minhas unhas com alicate.

-Tá bom, seu exagerado. Você sabe que sou pontual; nada mais que dez minutos.

-Então ta, meu amor. Beijo. –despediu-se.

Desligamos. A audácia de Lucas me impressionava cada dia mais. E eu adorava isso.

Joguei o cobertor para o lado, e num pulo, saí da cama. Abri o guarda roupa. Apesar do frio, pus uma regata vermelha, com um shortinho branco. Escovei os dentes, soltei o cabelo e penteei a franja. Passei rímel nos cílios, e um batom, tudo bem discreto. Achei atrás da almofada do sofá, minhas argolas. Corri até o armarinho da área de serviço e calcei a sandália com o salto mais alto. Peguei o casaco de moletom preto, e já estava pronta. Fechei as janelas, tranquei a porta. Apertei o botão do elevador, e poucos segundos, já havia chegado. Abri a porta, entrei, apertei o botão que me levava à portaria. Assim que cheguei, vi através do vidro distante, Lucas, na rua, encostado na moto.

-Boa Noite, Clodoal. – Fui simpática com o porteiro, que assistia atentamente à televisão.

-“Boa Noite”, Senhorita!? – ele olhou o relógio- quase bom dia, não?

Assenti e sorri.

Abri a porta de vidro que separava a portaria da rua. Desci as escadas. E fui correndo até ele, sorrindo, toda feliz. Ele puxou-me pelos braços, apoiou meu corpo no seu, e com as mãos pouco abaixo da minha cintura, reclamou:

-Demorou, hein, amor. – Foi a primeira coisa que ouvi.

-Que nada, menos de oito minutos!

-Errado. -E me mostrou o celular nas mãos, indicando o cronômetro.

-Ah, não acredito! Seu bobo! -Falei fofa.

Dei-lhe um beijo e subimos na moto. Fomos a uma velocidade tão alta, que nem soube dizer de quantos quilômetros.

Poucos minutos depois, chegamos numa rua sem saída, ao que me parecia, do centro da cidade. Lucas desceu da moto, tirou meu capacete e me deu a mão, certificando-se de que desceria de lá sem nenhuma escoriação.

-Onde estamos? – Perguntei assim que meus pés tocaram o chão, e que ele guardou o capacete no baú da moto.

- Em algum lugar do centro da cidade. – Foi áspero.

-Então, nem você sabe onde estamos?

-Pra ser sincero, não. – e sorriu o sorriso mais lindo que já vi.

-Ah, e já ia me esquecendo. – ele foi até a moto, abriu novamente o baú, e de lá tirou um saquinho preto, do qual me entregou. – Aqui. Pode ir pra trás da moto.

Abri o saquinho, e dentro havia uma roupa. Ao que parecia, uma calça e uma blusa. Tirei do saquinho, e perguntei, fazendo-me de desentendida:

-Meu amor… o que é isso?

-É uma roupa, sua tolinha. –sorriu-

-Sério? – fiz-me irônica. Ele assentiu sorrindo e prossegui. – E, o que você quer que eu faça com essa roupa?

-Vista. Tolinha.

Ameacei dar-lhe um leve tapa no ombro, mas hesitei.

-Aonde? E pra quê?

-Não me faça perguntas. Apenas faça o que digo, que vai descobrir meus planos pra essa noite. –Sorriu. – A minha moto ta aí do seu lado, e não há ninguém nas ruas, nem nas janelas...

Logo entendi, e respondi com um olhar acanhado. Saí correndo pra trás da moto. Era uma calça preta de couro, e uma blusa de gola e manga comprida, da mesma cor. Fazia frio, e até que a roupa poderia me esquentar mais. Vesti, e até que tinha me caído bem. O comprimento deu certinho, e se ajeitou ao meu corpo de maneira sutil. Lucas estava de costas e com os braços cruzados, apoiado sob o banco da moto. Levantei de um pulo, assustando-o. Ele olhou pra trás e disse feito um bobo, sem piscar os olhos um único segundo:

-Você está linda! – Fez-se surpreso.

-É… adorei essa roupa! Onde conseguiu?

-Roubei uma roupa sua mais ou menos nesse modelo, e mandei fazer.

-Ah, meu amor! -dei-lhe um beijo no rosto, apaixonada. - Então, agora que já estou linda e maravilhosa, o que vamos fazer?

-Você não ta tudo isso. –brincou.

Eu acreditei. Ele riu.

-Só falta uma coisa pra você ser a garota dos meus sonhos!

-Pensei que eu já fosse, huh. – choraminguei, retribuindo a brincadeira.

Ele soltou uma risadinha, abriu outro saquinho que só agora percebi que segurava nas mãos, e retirou uma touca, pôs em minha cabeça, espalhando meu cabelo pelo colo e ombros.

-Agora sim, está a garota mais bonita do mundo. “Como se já não estivesse antes”. – bufou pensando alto.

Olhei-me no retrovisor da moto, e disse séria:

-Amor, pareço uma bandida.

-Mas você é uma. Não sabe que roubou meu coração? –E ele riu alto, de sua própria piada.

-Deixa de ser bobo, Lucas! –Sorri e lhe dei outro beijo.

Ele olhou em meus olhos, e depois de alguns segundos fitando meu rosto pálido, pegou do mesmo saco outra toca, e pôs na cabeça.

-Pronto! –disse pegando na minha mão e levando-me ligeiramente próximo a um muro. Tirou do bolso duas pistolas de tinta. E me ofereceu. – Vermelha ou branca?

Logo entendi o que pretendia fazer, e neguei.

-Amor, eu não vou fazer isso.

-Ah, vai sim, tolinha.

Balancei a cabeça duas vezes. Lucas repetiu:

-Vermelha ou branca? – Me olhou daquele jeito que sempre faz quando quer se aproveitar de mim, pois sabe que não resisto. Acanhada, peguei a pistola vermelha.

-Por você. Mas juro que se alguém nos pegar aqui, você ta ferrado em dobro!

- Ninguém vai nos pegar, bandidinha. A não ser que você queira. – Luca disse com a voz repleta de malícia, que retribuí com uma careta, tentando parecer sexy, sem sucesso, pois ele riu.

-E o que vamos escrever no muro? – Perguntei curiosa.

- Quase que dizer algo em relação à gente que significa muito pra você.

Assenti com os olhos.

Era uma esquina. Parte do muro da casa pertencia a uma rua, e a outra parte, à

distinta. Cada um ficou em uma das ruas. Pensei no que dizer, e nada me vinha em mente. Fitei o muro cinza escuro, e não acreditei que estava prestes a fazer aquilo. Escrevi, enquanto ouvia o barulho do spray do outro lado do muro. Parei, e disse:

-Pronto. E você? – cheia de ansiedade.

Lucas Assentiu, e trocamos de lugar.

Não acreditei quando li. “eu te amo, minha tolinha.” e enfeitou com alguns corações tortos em volta. Pasmei. Aquela declaração era surpreendente, vindo dele. E eu, que havia escrito algo tão superficial e feio? “pra sempre.” O tipo de coisa que eu mais queria no momento, mas nada comparado a um “eu te amo”. Pus a cabeça na esquina da rua, e ele fitava o muro, com um dos cantos da boca curvado, pelo menos. Dei um largo passo de lado, e com as mãos pra trás, disse culpada, me desculpei.

Lucas apenas virou o rosto e disse com um meio sorriso falso:

-Tudo bem, Nicolle. Você não é obrigada a me amar de volta.

Perdi as palavras; consumida pela culpa.

-Mas ei, - fui até ele e peguei em suas mãos – eu também. Encostei meus lábios nos dele, que não retribuiu nenhuma de minhas palavras. – vem, vamos pra casa. – em silêncio, o levei até a moto. Ele mais uma vez me ajudou a subir, colocamos o capacete, e fomos para casa, sem trocar um único olhar, sequer uma palavra.