Os mais bonitos são os filhotes da coruja
Fora uma bebé desenxovalhada e bonita, tão mimosa que a mãe, olhando-a pela primeira vez, disse para os seus botões e, depois, à família – Rosa! Vai chamar-se Rosa! Se o pai não gostar será, então, Bela, Ana Bela! Também poderia ser Flor ou ter nome de outra qualquer flor. Orquídea? Margarida? Violeta? Havia de traduzir-lhe e confirmar-lhe a graça, o viço, o acetinado da pele tenra, a garridice dos olhos ainda piscos, a fragrância rara… Ah, se Juvenal aceitar a proposta e se a Tina, como madrinha, não vier a opor-se, será Rosa. Rosita a chamaremos porque a minha filha há-de ser sempre uma flor em botão, mesmo quando se venha a abrir à maternidade. Mas… nisso nem quero pensar! – decidiu, antes de , ainda exausta pelo trabalho de parto, adormecer.
Ficou Rosa, portanto. Fora fácil convencer o marido que teria preferido chamar-lhe Gertrudes como a avó; foi menos fácil com a Tina que já havia pensado em crismá-la Leontina, como ela própria. Quanto para o resto do pessoal tanto fazia que a pequena fosse Rosa como Leontina, Gertrudes ou mesmo Otelinda tal como a mãe. Bem demais sabiam todos que nenhuma importância isso teria já que, à força de mimos, haveriam de torcer as sílabas ao nome e a criança haveria de responder a diminutivos com Zita, Ró, ou mesmo Inha como designavam outra Rosa da terra.
A verdade é que a natureza, muitas vezes, nos reserva grossas surpresas. A Rosa acabou por ser pouco tempo Rosita tão firme e carrancudo era o cenho, tão forte de pernas e tronco se mostrava, tão a deitar ares à avó Gertrudes em seu jeito de mulher de buço, opiniosa até à teimosia, capaz de ferocidade nas palavras e nas dentadas com que brindava opositores de ocasião quer fossem clientes da taberna ou vizinhos em disputa pelo horário da rega! Chamavam-lhe mais vezes Rosa, em tom de trovoada e, invariavelmente, com acentos de ira. “ O estupor da miúda” era, também, a designação frequente na boca dos parentes, inconformados com a tenacidade com que a garota rejeitava os impedimentos e as negativas. Quanto à Tina, mesmo a contragosto, deixou de aparecer com a antiga frequência logo que, para experimentar os primeiros dentes definitivos, a Rosa quase lhe levara o dedo indicador, justamente o que ela usava para a admoestar pelo disparate do momento. Via-a pela Páscoa quando a pequena ia levantar o folar e as amêndoas e pelo Natal, quando, após a abertura do presente ela ficava, fula de raiva, a debater-se em lágrimas! Tina nunca conseguira, afinal, corresponder às expectativas da afilhada e nunca acertava nos seus gostos que, para sermos francos, em nada eram compatíveis com as tendências usuais dos petizes da sua idade. Em síntese e porque nesta coisa dos nomes não se pode voltar atrás nos registos, a Rosa ficou mesmo Rosa embora espinhuda e feia como a avó, telhuda como o pai, com o mau carácter do Albino, seu tio materno. E…pronto, cresceu em desafecto e sob ralhos, gritos e pancada que nem a Otelinda pôde evitar.
Na escola era líder não tanto pelos méritos – que não tinha – mas pela força com que esmurrava os colegas e pela avidez com que lhes destruía objectos didácticos ou estampas de colecção. Salvavam-se os santinhos coloridos que o abade distribuía a quem frequentava a catequese mas isso era porque Rosa absorvia as crendices da mãe e lhes tinha medo. Era um temor e não um respeito, devoção ou simpatia. Mas…enfim, as letras acabou por aprender e, mesmo tendo quem a deixasse copiar, acedeu aos mistérios da leitura, da escrita e das quatro operações essenciais. Tinha corpo de mulher feita quando, após o exame da quarta classe, deixou de estudar.
À espera que o tempo a domasse ficou, anos a fio, a Otelinda. Ainda pensou que, depois dos estudos, a menina tomaria outra feição e se faria mais dócil e mais ajuizada. Enfim, caiu em si quando a viu a conduzir o tractor sem que o pai tivesse consentido; quando percebeu que a Rosita nada queria com costura e bordados e que o próprio tear lhe despertava fúrias impossíveis de controlar.
Impotentes, os pais, aceitaram a vontade de Deus e, na mira de alguma paz, ordenavam-lhe só o que previamente sabiam ser a sua vontade. Passou, consequentemente, a fazer os trabalhos braçais mais violentos e a decidir ela quem faria o quê na lida do campo. Fez-se mulher sem arredondar as formas excepto nos seios, único sinal feminino daquele todo possante e brusco.
Aos dezoito anos entristeceu. Deu em ficar muda e em colocar-se pelos cantos, a ruminar palavras sem nexo, com depressões que assustavam toda a gente. Parada como quem pensa no melhor meio de fugir das críticas e das censuras, Rosa parecia sofrer de um mal novo, tão desconhecido como o caminho marítimo para a Índia antes de Vasco da Gama. Emagrecia e Otelinda juraria tê-la visto chorar, sua rica filha, sempre tão pronta a desprezar sentimentalismos e mariquices. Vendo melhor, pensou, talvez a moça estivesse apaixonada! Daí para a frente, Otelinda pegou nos fragmentos que restavam de antigas cogitações e dos velhos sonhos e, “pondo a carroça à frente dos bois”, desatou a imaginar-lhe o futuro. Casaria, como as demais, na Matriz e faria ver às invejosas das primas o que era estar bem, ter posses e ser feliz. Teriam, todos, novos e velhos, a professora, o açougueiro e o padre de engolir os ditos. Olá se tinham! Só não atinava era com o alvo da paixão. Seria o Morgado da Quinta Grande? O filho do farmacêutico? O Ruço? Sim porque não tendo estudos o eventual candidato a seu genro haveria de ter dinheiro, terras, gado e casas, estava bom de ver.
Pondo a questão à comadre e depois à irmã do sacristão, não lhes aceitou conselhos de moderação nem educadas chamadas de atenção para a pouca beleza da Rosa a fazer estranho confronto com tão destacados mancebos. Que pusesse os olhos em moços mais ao seu nível como o Joaquim das Taipas que era pobre mas honesto e trabalhador ou no Mário Ortigas que, mesmo analfabeto e pastor de cabras, tinha alguma coisa de seu… ou, melhor que tudo isso, desse tempo ao tempo para saber o que o silêncio da filha escondia já que até poderia ser justificada de outro modo a atitude da Rosa, uma vez que ninguém a via capaz de amar como qualquer outra mulher da vila.
Durou o impasse de Janeiro até aos Santos. Rosa limitava-se a cumprir as suas tarefas e, a seguir, ficava pasmada o olhar para nada, como quem não vê ou só divisa transcendências. Abusivas, as conjecturas caíam em erro, sucessivamente, e até a mãe se conformou com o seu alheamento. Mal se viam, não trocavam palavra e o clima emocional passou a ser tão agreste como a encosta da serra, tão gelado como a Real Fábrica do Gelo de Montejunto.
Um dia, no entanto, acordou Rosa com outra determinação: -Hei-de ir à Romaria pelo Santo António! – Disse olhando a mãe em desafio – Quero que a Fernanda costureira me faça um vestido e hei-de ser eu a escolher o pano! Quero-o estampado com listas para condizer com os sapatos novos e com o lenço de seda!
Quedou-se a Otelinda em grande pasmo. Sumiram-se-lhe na garganta as palavras e tudo o que pôde articular foi um “pois sim, minha filha”.
E… lá foram para a missa das dez e para a procissão com a Rosa já enfeitada com a roupa que estreava e com o novo corte de cabelo que tão bem lhe ia. A Fernanda costureira, talvez compadecida com toda a tristeza que demonstrava, sugerira-lhe que alindasse o rosto com um pouco de pintura e afirmou até que ficaria muito bem arranjar as sobrancelhas e depilar o buço. “ Temos de ajudar o físico, menina. Olhe que, hoje em dia, só é feio quem quer”. A Rosa estava, consequentemente, irreconhecível. De longe parecia até uma mulher bonita e, de perto, se ela sorrisse, também. Foi uma sensação para todos os devotos – que eram muitos – e até forasteiros perguntavam quem era.
No arraial, postada à beira da pista de dança, Rosa exibia o novo visual e uma quase simpatia pelos vizinhos. A verdade é que, à terceira música, deu-lhe o quebranto: voltou ao mutismo e às lágrimas, dizem que só porque Artur preferira dançar com a prima com quem, de resto, andava em falas diárias.
Recusou todos os pretendentes e quis ir-se embora. Voltaria ao arraial só pelo São Pedro, já refeita da decepção e já disposta a retomar o curso da vida tal como a entendiam as solteiras em geral. Se o Artur não a via, se os bons partidos da vila a receavam, então era preciso ser ela a tomar a iniciativa. Tornava-se, enfim, dentro da ousadia mais prudente para evitar falatórios e atitudes malévolas. Chamou o João da Alda e convidou-o para uma dança. Que não tinha importância o não saber dançar que ela também não sabia; que tomaria a mal se negasse; que poderia tranquilizar-se porque ela só queria bailar uma vez… Dançaram. A princípio não acertaram com o ritmo nem os pés ganhavam leveza mas, depois, muito antes de acabar aquela moda, já ambos pareciam calhados um para o outro. João da Alda, frágil e franzino, tímido e sisudo, abandonava-se à animação geral e já não falava em parar. Foi ela quem decidiu que chegava de bailarico e que talvez fosse bom ir às barracas das rifas. “Sinto-me, hoje, com sorte”, disse-lhe. Assim, pouco depois, foram vistos sobraçando um enorme urso de peluche, dois alguidares de plástico e uma boneca de barro. Foi a última vez que os avistaram no recinto das festas.
Que a Otelinda se não preocupasse que o João da Alda mal algum lhe faria, diziam em ar de troça. A sua rapariga não é dessas e, além disso, não seria aquele trinca-espinhas a ter peito para ela. A verdade é que teve. Dir-se-ia que Rosa, mais por piedade do João que de si própria, se entregara uma e outra vez naquela noite. Raiava o dia quando entrou em casa pronta para respostas duras que não aconteceram; decidida a enfrentar os pais que nada lhe perguntaram; com desespero bastante para desfazer tudo à primeira observação.
Dizia-se á boca pequena que o João da Alda embarcara para França e que, tão cedo, não viria. Havia mesmo quem o pusesse a fugir da Rosa por terras ainda mais longínquas e, ao certo, nem Alda, sua mãe, lhe sabia o paradeiro.
Pelo Natal já Rosa estava pejada de vários meses e, pelas contas que faziam, a criança nasceria em Fevereiro ou no começo de Março. E assim foi. Teve-a de parto natural no armazém das forragens, sem ajuda de ninguém. Quando Otelinda deu pela coisa já nem valia a pena chamar a parteira porque a Rosa já se refizera do parto e já tinha embrulhado a sua filha.
- Que nome lhe vais por, Rosa? Perguntou. Ainda não sei, mãe, mas Rosa, Margarida, Orquídea, Violeta ou coisa quejanda, Não! Nomes desses parece que atraem a feiúra e eu quero que esta seja uma menina bonita ainda que os pais sejam…como são.
João da Alda voltou para a romaria dos Santos e dançou todas as noites com uma mulher morena que, pela descrição, eu afiançaria ser... a Rosa!
Fim