Melancolia…- Versão longa -

Houve um dia em que tudo o que nos preocupava ou tudo o que nos movia deixou de fazer sentido, houve um dia em que apenas Tu passaste a fazer sentido…

Não foi um dia isolado, foi O Dia dos Dias que veio para ficar para sempre parado no tempo…

Foi um dia particularmente diferente, porque a notícia que mudou tudo não apareceu nas redes onde tudo se anunciava por vezes com meses antes de chegar à realidade, o anúncio de tal tive-o nas ruas meu amor, nas quais num dia como os outros notei que não se falava mais da crise, da inflação de futebol ou das coisas do costume…falavam do fim do mundo…

Sim, parece estúpido, mas falavam do fim do mundo…toda a gente e não apenas as pessoas do costume dos habituais cultos deste tipo de profecias, toda a gente falava, toda a gente sem excepção, esse passava por ser o único assunto de todas as pessoas, de todas as classes, um assunto democrático porque envolvia a vida e o destino de toas as pessoas, e por isso me senti algo mal por não estar a par de tal de imediato, senti-me socialmente mal por ter sido ultrapassado pela rapidez dos acontecimentos, logo eu que me vangloriava perante colegas e amigos por estar sempre na vanguarda de todos os assuntos, por saber destes antes de toda a gente, e assim antes de saber o que se passava me senti estúpido por desconhecer o assunto que levava toda a gente a falar dele, e mesmo depois de saber que se tratava do fim do mundo não tive noção de tal de imediato, ficando irritado por só saber do fim do mundo depois de toda a gente...

Continuei a não ter noção, a rede não tinha nada de concreto, e por isso me enfiei no café da nossa rua onde tinha combinado ver um jogo de futebol qualquer com alguns amigos, mas depois a meio de duas cervejas, a meio do jogo de futebol essa noticia apareceu de facto na televisão, e eu como sou da geração que só acredito no que vem na televisão por fim acreditei…por fim soube que era realidade e não apenas mais um assunto que se coloca na rua para nos distrair de outras coisas…e como entretanto a tal rede que tinha substituído a televisão pelo seu impacto ficou também inundada por essa notícia, essa notícia passou a ser a única notícia, de tal ordem que até o jogo foi interrompido, acordando quem ainda estava ausente de tal para a realidade…

Coisas como estas são raras, aliás, não acontecem, e por isso deveria ter fixado a hora em que soube de tal, mas não me peças a data, a hora, que eu não sei…porque quando soube do fim nada mais me interessou a não ser ir ter contigo…

Como entretanto o mundo da comunicação foi desligado ficou apenas a notícia que carece de confirmação absoluta, como por exemplo aparecerem os técnicos esperados a explicarem-nos ao pormenor o que se passava, o que levou a isso….não o que se iria passar, porque todos nós sabíamos o que se iria passar…Mas não tive dúvidas sobre o que iria acontecer…: as comunicações nunca tinham sido cortadas, o que era um mau pronuncio, o pior dos sinais, reforçado pela luz de uma estrela que se via à distância em pleno dia, e que se ia aproximando, lenta mas de forma segura, o tal asteróide ou mero astro que vinha do fim do espaço desconhecido para nos matar…

Claro que algumas pessoas se tinham apercebido daquele brilho invulgar, mas como não nos tinham dito que era anormal, julgámos ser normal, e só quando soubemos o que era, só quando as luzes das cidades passaram a serem mais fracas é que realmente percebemos e interiorizámos o fim que se apresentava no imediato e não a prazo…

E houve uma fase inicial de estupefacção, de revolta, antes da tal interiorização e o capitular perante a evidência de um fim ao qual não podíamos escapar.

E nessa fase de indignação, nessa fase de revolta pensei tantas, demasiadas coisas…Achei por exemplo um absurdo o céu estar há tantos anos a ser vigiado e não terem visto esta ameaça…achei que se calhar foi por falta de verbas que deixaram uma parte do céu sem monitorização, ou então o facto desse céu ser tão grande que seria impossível vigia-lo todo…uma parte foi colocada de lado, e foi por essa parte que entrou o nosso assassino…

Eu desde sempre que tive uma noção muito particular da dimensão quase infinita do céu, pelo menos para um humano, pois desde sempre olho esse céu quase todas as noites desde o dia em que tenho consciência do que sou e nunca uma estrela se repetiu perante o meu olhar…e é por isso que eu sei que o céu é demasiado grande e não porque mo dizem os homens da ciência…sei porque o sinto…porque o vejo…

E depois sobreveio a fase da resignação, ao constatar que nem toda a ciência, nem todo o poder do homem poderia ter evitado esse fim, elemento unificador da espécie, elemento democrático pois todos iríamos partilhar tal, ninguém ficaria imune a tal…

E sobreveio por fim a fase mais dolorosa, a fase da espera…

Passaram algumas semanas desde soubemos do fim, os dias mesmo de dia são cada vez mais escuros, quer pelo colapso de parte da sociedade tecnológica, quer pela evidência lógica da sombra do astro homicida estar cada vez maior, o que indica que ele está cada vez mais perto…

Toda a sociedade seguiu o caminho previsível deste tipo de cenários de fim dos tempos, toda a sociedade mergulhou numa depressão colectiva, tudo é sombrio, as pessoas deixaram de socializar, a comunicação entre os seres humanos existe apenas por mera questão de sobrevivência, para se arranjar um pouco de água, de comida, de combustível, mas para mais nada…a morte anunciada começou antes de acontecer, e o que nos fazia realmente humanos, a socialização, morreu de facto já…somos apenas meros seres com corpos mas de alma vazia…o fim físico será apenas mais uma performa…E toda a sociedade deixou de o ser porque o instinto primário de sobrevivência acabou com a ordem que nos equilibrava e a lei que predomina é previsivelmente a do mais forte, e só os mais fortes conseguem o que pretendem…os outros ou desapareceram já devorados pelos mais fortes ou ainda sobrevivem por mera simpatia ou comiseração dos mais aptos que ainda se dão a esse luxo, a esse vestígio de humanidade…

E até eu perdi essa humanidade, até eu que tanta gala vazia dessa humanidade ao fim ao cabo acabo por ser apenas mais um ser nas ruas que procura instintivamente meios de sobrevivência básicos e mais nada…até eu devoro os mais fracos, até eu faço coisas que seriam impensáveis e inconcebíveis até há pouco tempo atrás…

Sim, afinal era de facto verdade que quando está em causa a sobrevivência de um ser este perde a sua humanidade e deixa vir ao de cima o tal instinto de preservação que torna reais actos até ai inconcebíveis…

Não se trata já de nos termos transformado em monstros, a sociedade colapsou e somos todos monstros que se matam entre si por uma mera questão da mais elementar sobrevivência…

E no entanto ainda sou um homem, ainda reencontro essa humanidade quando estou ou regresso a casa, reencontro essa humanidade nos teus olhos, nos teus braços, no teu colo no qual me encolho e refúgio a chorar pelo que fiz nas ruas, mas a chorar sobretudo pelo medo que tenho de tudo isto, porque na rua posso ser quem nos garante a sobrevivência ao obter o essencial, mas em casa a fortaleza cai por terra e sinto toda a minha fragilidade nos teus braços e nas tuas palavras de consolo, de amparo…porque quando encosto a minha cabeça ao teu colo como derradeira fortaleza, encosto a cabeça ao filho que nunca irá nascer, ao nosso futuro morto no ventre…e eu sinto que não quero sair desse colo, sinto que até tudo ficar demasiado escuro e deixarmos para sempre de sentirmos, sinto que não quero sair desse colo, que quero mergulhar nessa ausência e não mais sair dela…Mas no entanto sei que precisas de abastecimentos, sei que necessitas de madeira para queimarmos na lareira e assim não morreres de frio, sei que vais morrer, mas evito que seja em agonia e que te sintas bem até ao fim, e apesar de estar aterrorizado de morte, por saber que o precisas lá volto às ruas para te garantir a precária sobrevivência, para depois voltar e se repetir todo este ritual de sofrimento ambivalente…

Sei que em tempos normais jamais admitirias que alguém fosse prejudicado para estares bem, mas os tempos deixaram de serem normais, e por isso somos insensíveis ou meramente ausentes ao sofrimento dos outros, tudo em prol da bendita auto-preservação, do sagrado instinto de sobrevivência que nos é nato e que só espera uma oportunidade para dar cabo em pouco tempo de milhares de anos de sociedade, de coabitação mais ou menos pacifica e civilizada…

E o pior é de facto esse maldito momento se arrastar de forma interminável, nunca mais chegar de facto…

Porque a espera é o que nos mata com mais intensidade, porque é uma agonia lenta que nunca mais parece ter fim…

E no entanto algo de absurdo ainda prevalece…algo de imensamente forte ainda domina tudo o resto e monopoliza os meus sentires, evitando que me transforme de facto numa besta…: Porque apesar de tudo nos faltar, de tudo nos ter sido roubado, negado, o que és para mim, e o que sou para ti faz com que sinta uma espécie de felicidade sem lógica até ao fim…Porque podemos nada ter, mas temo-nos um ao outro, temos um arrepiante lugar comum do amor dito desta forma, temos o amor final não de Deus, mas de um para o outro, a realidade de facto até nos pode ser agora fugidia, mas minha adorada, temos de facto o amor final a que juntos na escuridão demos o belo nome de Melancolia…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 14/11/2011
Código do texto: T3335481
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