Melancolia…

E tudo começou nas ruas meu amor, nas quais num dia como os outros notei que não se falava mais da crise, da inflação de futebol ou das coisas do costume…falavam do fim do mundo…

Sim, parece estúpido, mas falavam do fim do mundo…toda a gente e não apenas as pessoas do costume dos habituais cultos deste tipo de profecias, toda a gente falava, toda a gente sem excepção, e eu antes de começar a falar, antes de saber o que se passava senti-me particularmente estúpido, mais por estar fora do assunto de toda a gente do que pelo fim do mundo…

Depois a meio de duas cervejas, a meio do jogo de futebol essa noticia apareceu de facto na televisão, e eu como sou da geração que só acredito no que vem na televisão por fim acreditei…por fim soube que era realidade e não apenas mais um assunto que se coloca na rua para nos distrair de outras coisas…

Não me peças a data, a hora, que eu não sei…porque quando soube do fim nada mais me interessou a não ser ir ter contigo…

Como entretanto o mundo da comunicação foi desligado ficou apenas a noticia que carece de confirmação…Mas não tenho dúvidas sobre o que vai acontecer…as comunicações nunca foram cortadas, o que é mau pronuncio, reforçado pela luz de uma estrela que se via à distância em pleno dia, e que se ia aproximando, lenta mas de forma segura, o tal asteróide ou mero astro que nos vinha do fim do espaço desconhecido para nos matar…

Acho um absurdo o céu estar há tantos anos a ser vigiado e não terem visto esta ameaça…mas se calhar foi por falta de verbas que deixaram uma parte do céu sem monitorização, ou então o facto desse céu ser tão grande que seria impossível vigia-lo todo…uma parte foi colocada de lado, e foi por essa parte que entrou o nosso assassino…

Eu desde sempre que tive uma noção muito particular da dimensão quase infinita do céu, pelo menos para um humano, pois desde sempre olho esse céu quase todas as noites desde o dia em que tenho consciência do que sou e nunca uma estrela se repetiu perante o meu olhar…e é por isso que eu sei que o céu é demasiado grande e não porque mo dizem os homens da ciência…sei porque o sinto…porque o vejo…

Passaram algumas semanas desde que li e te transmiti a notícia do fim, os dias mesmo de dia são cada vez mais escuros penso que pela sombra do astro homicida estar cada vez maior, o que indica que ele está cada vez mais perto…

Toda a sociedade mergulhou numa depressão colectiva, tudo é sombrio, as pessoas deixaram de socializar, a comunicação entre os seres humanos existe apenas por mera questão de sobrevivência, para se arranjar um pouco de água, de comida, de combustível, mas para mais nada…a morte anunciada começou antes de acontecer, e o que nos fazia realmente humanos, a socialização, morreu de facto já…somos apenas meros seres com corpos mas de alma vazia…o fim físico será apenas mais uma performa…

Até eu perdi essa humanidade, até eu que tanta gala vazia dessa humanidade ao fim ao cabo acabo por ser apenas mais um ser nas ruas que procura instintivamente meios de sobrevivência básicos e mais nada…

Mas no entanto reencontro essa humanidade quando estou ou regresso a casa, reencontro essa humanidade nos teus olhos, nos teus braços, no teu colo no qual me encolho e refugio a chorar pelo medo que tenho de tudo isto, porque na rua posso ser quem nos garante a sobrevivência ao obter o essencial, mas em casa a fortaleza cai por terra e sinto toda a minha fragilidade nos teus braços e nas tuas palavras de consolo, de amparo…porque quando encosto a minha cabeça ao teu colo como derradeira fortaleza, encosto a cabeça ao filho que nunca irá nascer, ao nosso futuro morto no ventre…e eu sinto que não quero sair desse colo, sinto que até tudo ficar demasiado escuro e deixarmos para sempre de sentirmos, sinto que não quero sair desse colo, que quero mergulhar nessa ausência e não mais sair dela…Mas no entanto sei que precisas de viveres, sei que necessitas de madeira para queimarmos na lareira e assim não morreres de frio, sei que vais morrer, mas evito que seja em agonia e que te sintas bem até ao fim, e apesar de estar aterrorizado de morte, por saber que o precisas lá volto às ruas para te garantir a precária sobrevivência, para depois voltar e se repetir todo este ritual de sofrimento ambivalente…

Porque a espera é o que nos mata com mais intensidade, porque é uma agonia lenta que nunca mais parece ter fim, porque apesar de tudo nos faltar, de tudo nos ter sido roubado, negado, o que és para mim, e o que sou para ti faz com que sinta uma espécie de felicidade sem lógica até ao fim…Porque podemos nada ter, mas temo-nos um ao outro, temos um arrepiante lugar comum do amor dito desta forma, temos o amor final não de Deus, mas de um para o outro, a realidade de facto até nos pode ser agora fugidia, mas minha adorada, temos de facto o amor final a que juntos na escuridão demos o belo nome de Melancolia…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 14/11/2011
Reeditado em 14/11/2011
Código do texto: T3334348
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