Devaneios
Ele chegou quando eu já nem esperava, pois depois de passar o dia inteirinho na rua nem esperava que ele voltasse mais hoje. Mas ele voltou, e olhou para mim como se estranhasse a minha presença na sua sala, na sua casa, na sua vida.
Deixei-o passar como se não o tivesse visto, como um desconhecido que passa pela gente na rua sem nem nos olhar nos olhos ou mesmo ensaiar um “oi”. Continuei a assistir o programa sem graça que passa na rede local com o mesmo entusiasmo que o trabalhador que é forçado a trabalhar em pleno carnaval. Nem sei quanto tempo passei ali a olhar a TV e nem reparar no que passava, parecia que estava pairando sobre mim, a olhar a mulher estranha de cabelo escuro e rosto pálido, não me reconheci naquele corpo estendido no sofá cheio de dobras que outrora não tinha e, de repente, voltei a mim e me deu uma vontade louca de sair de novo e fugir para sempre daquela rotina entediante e exaustiva na qual me atolei.
E realmente saí, fui da sala a cozinha e depois voltei à sala e fiquei espiando a vida acontecer lá fora, enquanto eu continuava parada, parada numa época que, ao observar agora, percebo que fui empurrada a acolher. E sem que eu queira dentro de mim uma vontade aflora, vontade voltar a viver a vida que um dia sacrifiquei. E voltar a sorrir, a dançar, a cantar com minha voz desafinada sem ouvir reclamações e ver ouvidos serem tampados, correr de vez em quando e também vestir minha malha vermelha e malhar, voltar a ver olhares a me seguir e não me sentir culpada por ser bonita e, por que não, voltar a sentir prazer e focar em me satisfazer e não apenas satisfazer o ego ou a vontade de alguém.
Foi quando como um balde de água fria ouvi o relógio marcar 02:00 horas e para aumentar meu desespero eu lembrei que teria que estar de pé às 06:00 da manhã. Então fui para o quarto, somente porque não consigo dormir sem meu travesseiro e lá está ele dormindo como uma criança que nada fez de errado. Não sei por que, mas vê-lo ali tão a vontade sem sentir minha falta, como se eu fosse um absorvente que já perdeu a utilidade e agora deve ser descartado, me ira e ao mesmo tempo me enche de medo e de uma tristeza que tenho a sensação de perder um pedaço indispensável de mim e passo a me sufocar.
Saio do quarto porque sei que se ficar ali por mais um breve segundo vou desaguar, derramar as lágrimas que durante anos me privei de verter para que ele não percebesse o quanto a sua indiferença e ausência me afetam, mas a sensação de abandono aumenta e logo me vejo tão só, tão triste com esse caminho que nem percebi que trilhava. E lá estou eu refletida no espelho que parece zombar de mim. E esse rosto não é meu, esse corpo cheio de dobras e rugas não parece com aquele que eu amava, essas roupas tão sombrias e cafonas não me fazem sentir feliz ou desejada. Decididamente não sou eu nessa imagem refletida, é apenas uma caricatura, um retrato desfocado que alguém tirou distraidamente, é qualquer coisa feita por acaso ou de mal gosto. Qualquer coisa menos eu.
E ali me vendo tão desfigurada e distante do ser que eu amava, acordei do meu transe ao ver um reflexo atrás de mim. Lá estava ele, me olhava como se eu fosse a criatura mais adorável que ele já vira, e isso me desarma, ele percebe se aproxima e me abraça, funga em meu pescoço, diz que sou sua princesa e que não está conseguindo dormir sem mim. Leva-me pela mão como se eu fosse uma criança, me abraça, afaga minha cabeça e me deixa ali aninhada em seu peito como se eu pertencesse aquele lugar. Sei que devia lutar, me afastar e procurar um novo rumo, mas ao deitar ao seu lado volto a me sentir a menina que fui e antes que eu perceba mergulho num sono profundo.