Alfredo

ALFREDO

Hoje acordo com a sensação de vazio. Pergunto-me: Como levarei a vida sem Sônia? Ela se foi. Porque quis. Mas será que fui seu par? Levanto-me. Busco viver minha vida, não adianta ficar estilhaçando pensamentos. Jogo água nos olhos, no rosto. Quero o hoje. O espelho parece dizer-me: “se alguém se vai de nossa vida temos responsabilidade nisso”. Que nada. Não quero saber de espelhos. Visto-me diferente. Desejo o outro homem que deverei ser sem Sônia. Não ando pela casa. Tomo café numa padaria próxima. Chego ao banco e pareço estar acompanhado da sombra de Sônia, que espírito! No trabalho tudo vai mal. Por mais que faça, a lembrança da tão recente ausência de minha mulher não se dissipa. Saio do emprego, já tarde. Sinto uma imensa vontade de comprar flores para ela que havia partido. Um nó na garganta me aperta também o peito. Quantas vezes eu poderia ter lhe dado flores? Agora eu quero comprar milhares de flores, flores que não as dei. Suas mãos delicadas as acolheriam em formas de surpresas raras e encantadas. O que fazer? Voltar para o lar? Ler jornal com o ruído de quais passos? Resolvo passar por um bar, onde alguns amigos têm o hábito de ir. Sinto um certo alívio. Contamos piadas. Comentamos sobre mulheres, até olho para uma que se fixa na porta de saída. Ela iria. Quando a cerveja me transforma um pouco, chego a acreditar que minha casa não se apresenta vazia. Que cama grande. Jogo-me de um lado a outro. Pareço um gato miando por comida. Mal tocara no almoço e não tinha jantado. Vou à cozinha, procuro um alimento qualquer, talvez seja esse o motivo de minha insônia. A imagem de Sônia é viva e fala comigo: “-Alfredo, nós continuamos vivos. Tudo entre nós se passou. Tivemos momentos felizes. Mas eu não podia mais agüentar o seu silêncio, suas ausências dos problemas de nossa casa. Devo ter errado. Não soube trazê-lo para perto de mim. Agora tudo se desgastou. Devemos cada um seguir seu próprio caminho. Não me mande flores. A hora delas já passou”. Na geladeira não há nada que agrade minha necessidade de apetite. Volto ao quarto. Preciso dormir. Urgentemente imagino-me noutra cama. Não consigo. Aquele cheiro me entra pelos pulmões. Os sinais no colchão desenham o corpo de minha mulher, ainda minha mulher, insisto crer. Abala-me mais fortemente a saudade, quando reconheço esses contornos, tanto que abraço tateante os vazios fundos. E quando estreamos esta cama? Havia sido um dia muito engraçado, de peraltices. Dançávamos em cima do móvel coberto, cobertor: nem duro, nem macio. Descíamos da cama, dando pulos como crianças. Pegava minha amada em meus braços e a jogava na cama. Nosso amor de riso e êxtase em gargalhada. Por que os momentos bons não apagam os ruins? Sento na cama. Meu corpo estirado torna as lembranças mais doídas. Ainda é muito cedo para conseguir fazer do passado feliz, uma nota musical que me acalanta o sono. Havia parado de fumar, mas sem pudor acendo cigarros e os trago na ânsia de queimar erros, enganos, mágoas. Sinto mágoas. Sônia nunca poderia ter ido embora. Por que ela não me acordou? Sabia tanto de nós. Eu, ali, centro de nosso lugar, e ignorante de nossas de nossas melhores possibilidades. Poderia ter sido bom se ela tivesse esperado. Eu acabaria descobrindo que não era o marido que ela nem mesmo eu precisávamos que fosse. -“Sônia, você tentou, não me esqueço, nunca poderei me esquecer. Fazia-me surpresa com sua presença, ia, inesperadamente, me ver no banco. Usava vestidos que eu teria elogiado se houvesse prestado atenção. Deixava bilhetinhos em meus papéis, como: “Você é a criatura mais especial deste mundo”. “Tenho você em meu corpo e coração”. Ela me tinha em seu corpo e eu já não sabia fazer amor. Isso não é noite. Desisto de dormir. Sem sono, entro no pesadelo de minhas faltas. Deveria ter valorizado minha mulher. Minha mulher. Ela não é mais “minha”. Sônia me abandonou. Não, não foi ela que me abandonou. Fui eu quem distrai e a deixei esquecida dela mesma, não encontrando a si como encontrar a mim? Aquela linda mulher voa agora para dentro de si mesma. Vai construir verdades e esquecer o quanto menti ao ignorá-la. Ela era uma verdade para mim. No entanto, a tratei como uma pedra em sua solidez. E não, Sônia é líquido que flui... efêmera, assim como eu, assim como qualquer um. Não me atinei sequer pela qualidade mais comum de minha companheira. Por que fiz isso? Acreditei que seria para sempre. Acreditei nela como todas as horas do dia. Era o relógio que batia as horas certas. Quando, então eu, precisando daria uma olhadinha para o braço e saberia as horas, os minutos. Minha fé em Sônia era a dos religiosos que não praticam a religião. O dia amanheceu. Não consegui dormir. Telefono para o banco e digo que não poderei ir trabalhar, Saio, bem desperto, depois de um banho demorado e procuro Sônia na casa de sua família. Ela foi embora para os Estados Unidos, é a resposta que tenho. Só me resta esquecer o jardim que gostaria de plantar para ela. O meu dia é branco, tão branco como alguém que vive sem história. Minhas páginas sem linhas caem ao chão. De repente, duas lágrimas as molham em sua claridade.

Neusa Azevedo
Enviado por Neusa Azevedo em 28/10/2011
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