SONHOS POSSIVEIS DE TEMPOS REMOTOS
Vejodescortinar suavemente pela neblina que dissipa pouco, ainda com poucos passos, os becos e ruas desta cidade incomum. Se vai fazer sol ou o dia restará assim fechado no cinza triste dos alaridos dos bondes cruzando seus trilhos, ou os pregões quase solitários nas janelas quase sempre fechadas não tenho certeza, mas creio que pouco a pouco vai se descobrindo onde se está. Alguem se cansa ao subir uma rua íngreme, sobraçando um pacote morno. O cheiro morno dos pães vem das chaminés das panificadoras queimando lenha em suas fornalhas.
Escuta-se vozes lá na calçada, um ou outro trinar de pássaro, após o silencio deixado pelo bonde que passara. Um “ah” mais alto, de uma ave maior, cortou o céu. Preguiçoso, era um preguiçoso, verdadeiro preguiçoso começou a pensar, teimar com medo do frio. O medo do frio habitual, como o medo de tudo, que o fazia encolher-se para a calçada, cada vez mais para a calçada, quase debaixo das janelas dos prédios que cresciam vertiginosamente. Mas já seu quarto assim cinza gris na penumbra do primeiro palor da manhã o assustava, arregalava os grandes olhos cinzentos e na desordem de suas coisas, entre cabideiros, armários com chapéus por cima amontoados, depositava-se ali entre os livros pelo chãotambém aqueles restos de manequins sem braço, sem cabeça, sem as pernas, apenas um tronco hirsuto e fechado encostado pelos cantos das paredes, perto de um guarda-chuva.
Ewald, escutou seu nome chamado pela voz rouca vindo atrás da porta cerrada, entre os passos arrastados e lépidos do velho. Ewald, está na hora de levantar seu pequeno preguiçoso, disse a voz rouca, tão próxima quanto longínqua. A porta se abriu, a luz entrou, baça como o dia começava ou o dia continuaria. Aos poucos Ewald ergueu-se, viu-se fino e ridículo em seu pijama listrado, e sabia que era assim que começava o dia.
A pequena sala ao mesmo tempo era cozinha. Ficava aquecida perto do fogão aceso. Mas pelo pequeno quadrilátero da janela, Ewald via com seus olhos sonolentos que setembro não desarraigara o verão, e ele se dissipava pouco a pouco com manhãs nevoentas, sol ameno sobre as folhas das arvores do pátio do colégio, o brilho sobre os vidros da torre da igreja ou o reverberar dourado das águas amenas do rio sob a ponte. Sem tirar os olhos da janela, Ewald bebia todo leite, mordia o pequeno pedaço de bolo com um remoto gosto de guardado. O gosto da pequena avareza, humilde avareza do seu avô que lhe sorria com as suíças brancas e pontudas, vergando um terno gasto com tom de sujo e roto, sempre ajeitando o quadro com a gravura de uma cocote em trajes de dançarina numa moldura ali junto ao aparador.
_ Ewald apresse-se, apresse-se rapaz, não temos o dia todo.
_ Avô, me deixa ir sozinho. Eu sei ir sozinho, disse num fio de voz humílimo, pequeno, um miado escondido quase, sorvendo todo resto da caneca como se aprendesse a mesma avareza.
Aqueles olhos empapuçados entre aquele nariz adunco viraram-se perspicazes para o garoto a mesa, com metade do rosto escondido sobre a caneca já vazia.
_ Ah, então já queres ir sozinho, já sabes andar com as próprias pernas. É um homem – e o garoto encolhia-se mesmo sentindo que aquele dedo indicador apontando-o não era acusador. Mas por mais suave que se fizesse a voz do velho alfaiate, o rapaz estava semprea esperar por coque, e assim encolhia a cabeça como um passarinho assustado para dentro do ninho. Talvez o velho dissesse, costurando trajes nos bustos hirsutos daqueles corpos inanimados e sem membros, “É apenas uma criança, uma criança”.
Mas o velho não perdia o prazer de ajeitar-lhe a gravata, a gola do terno, mesmo alisar o vinco da calça, e apertando-lhe o queixo pontudo, disse por fim dando-lhe um sopro no pequeno topete que se fazia seu cabelo, Vá meu querido, vá, já é um homem, pode atravessar o pórtico, do ginásio Imperial e Real, sozinho.
Todos se mantinham em silencio total, após o balbuciar de um ou outro com o vizinho de carteira, quando o professor Sr. Hellmer entrou, muito grande, com poucos cabelos na cabeça, fios raros e brancos, e uma barba branca e pontuda que lhe realçava o queixo dando a impressão de um côvados. Algumas risotinhas se perderam a sua entrada, e ele ficou andando entre o renque das carteiras dispostas, olhando cada um, com as mãos cruzadas nas costas,segurando a palmatória, mas assustava a Ewald aquela barba como complemento do queixo, antes a palmatória. Franz, ao seu lado, olhou-o aflito, as mãos abertas sobre a base da mesa. Uma mecha do cabelo dele, partido ao meio, desmanchava-se na testa suavemente. Franz, seu cabelo, pensou em balbuciar, mas nem atrevia a se mexer. Franz tinha olhos bondosos e assustados, um pouco escuros, num rosto que exprimia medo, respeito e tristeza.
Já de volta a lousa, o Sr.Hellmer ministrava a lição de Alemão, e lançava a sabatina escolhendo aleatoriamente a “vitima” a responder, e Franz de pé, rapidamente, gaguejava, não tinha certeza se respondera certo, sim respondera certo, Mas não gagueje Franz, não gagueje, e lançava outra pergunta apontando-o com uma régua, e Franz de novo de pé tinha que responder sem gaguejar, mas ele atônito de pé, respondia piscando muito os olhos, e gaguejando ainda. Então a figura ameaçadora aproximava-se, ia aumentando, aumentando, seu tamanho parecia vinte vezes maior do que era mesmo . Todosse retraiam em seus ombros,Ewald encolheu-se como pode, a régua bateu com força na mesa, quase junto às mãos de dedos longos de Franz, que deixou escapar um grito de susto, mas um grito quase mudo.
_ Por que gagueja tanto se tens certezas da resposta rapaz?
A voz do homem pesado e imenso assustava a todos, e num tom de voz seco e frágil, Franz respondia, Não sei mestre, não sei. Era medo, medo-respeito, o mestre quase ser supremo, foi enveredando o pensamento trêmulode Ewald. De outra vez, quantas vezes? Fora ele o chamado, assim como também Oskar e Hugo, estes dois mais íntimos de Franz, embora o primeiro risse dele aquela vez, no começo da maturitá. O passarinho estava pousado sobre a janela, o passarinho parecia me olhar, foi por isso, desculpava-se rindo tímido, as mãos enfiadas nos bolsos do colete, Franz, falando com Hugo no pátio liso do colégio, antes que tocasse a sirene de aviso de volta as aulas, e Ewald ouvira assim, assim, caminhando, mais tarde olhando para uma das janelas do ginásio, lá em cima, onde um rosto parecera se mostrar e sumir no mesmo instante como se com medo de que aquele rosto lá embaixo descobrisse-o totalmente.
As mãos de dedos longos de Franz, sempre tão encolhido, tímido, atento ao latim, as cinco declinações, comendo seu lanche bem mais sortido que o parco seu embrulhado num papel cor de embrulho, com um cheiro de coisa guardada. Cheiro da gaveta do vovô, das suas costuras. Ficava muito sozinho também. Somos todos tão sozinhos, pensou Ewald com medo.
Dentro do seu quarto, tentava entender toda aquela saga que eraOdisséia de Homero, com os cotovelos fincados na pequena mesa redonda de madeira gasta entre os moveis mal arranjados do cômodo, assim ele ia tentando decifrar o enigma dos versos homéricos, da viagem de Ulisses de volta para casa.Muito tímido, antes que anunciasse o intervalo da aula,aproximou-se mais de Franz e fez-lhe perguntas sobre o livro. As perguntas foram tão objetivas, mas os olhos tristes e amáveis de Franz hipnotizaram-no, e Ewald só via aquele sorriso difícil explicando devagar, pausadamente, num tom de voz calmo, baixo, baixo, às vezes gaguejando. Esqueceu tudo, gostaria de dizer, enrubesceu pobre Ewald, as pernas muito encolhidas debaixo da mesa, as mãos sobre estes joelhos, torcendo-se, não admitiria o relapso – por conta de que? – era a questão que jamais devesse ser revelada, e o rubor aumentou, aumentou, perturbou mesmo seu lanche. Não comeu aquele pedaço velho de bolo assim tão fácil, seco, seco. Os olhos marejaram certas lagrimas. Franz sorriu-lhe de longe, lá da ponta da mesa, na sagrada Dez horas, com seu paarl quente.
Hugo falava um pouco mais alto, assim como outro rapaz de cabelos louros, um pouco compridos e enorme costeletas. Este era genuinamente alemão em Praga, assim ouviu dizer. Falava mais alto que todos, e sempre muito empertigado, mas o bedel, que passava, também não o poupou do pito, que falassem todos mais baixo, respeitassem a ordem na atmosfera.
O bolo seco, seco, era uma torta salgada. Era? Tinha o gosto dos panos guardados, o cheiro de tudo que o envolvia num leve crescimento perturbado das descobertas.
_ Eu duvido que você faça isto Wolfer – sussurrou Hugo devorando seu paarl com os dedos lambuzados.
_Verás meu caro – e brincou com as própria sobrancelhas como se elas rissem por seus lábios – Franz vai repetir aquele gritinho.
_ Ele é o melhor em Latim, Grego e Literatura, precisamos dele – observou Hugo.
Abaixou mais a cabeça loura Wolfer, os olhos de um azul quase verde, os braços rastejando-se pela mesa do refeitório, os lábios umedecidos de um deboche clássico.
_ Ele não precisa saber que foi a gente – disse.
_ Você - quasegritou Hugo com a boca cheia de salsichas, chamando atenção do quase silencio respeitoso, e a cabeça pontuda do bedel voltando-se para os dois. Wolfer levou dois dedos aos lábios lambuzados e umedecidos de saliva debochada, riu cheio de cuspe, um riso que foi se tornando satírico, baixinho, baixinho, nos olhos sádicos do rosto quadrado de rapaz de outra estirpe.
Franz abriu sua pasta, e entre seus livros veio aquele inseto púrpuro, cascudo, veio escalando-se pela mão dele. A começar por Wolfer, bem lá atrás, o riso foi crescendo entre os garotos, e Ewald que estava ao lado de Franz, arregalou os olhos, mas Franz admirava o inseto em sua mão, olhava-o com intimidade, sem medo, talvez com piedade.
_ Sr. K jogue este inseto no chão – ordenou a voz de trovão do professor, e então Franz assustou-se, causando risadas nos garotos, até mesmo em Ewald. O inseto desapareceu pelo chão entre as botas dos garotos enfileirados em suas carteiras.
_ Se deixa acumular insetos em seus livros é que não anda fazendo bom uso deles, hem – admoestou o mestre o encarando entre os óculos, com o bigode movendo-se como os próprios lábios. E ante a gargalhada geral, ordenou o silencio, e Franz abaixou a cabeça, cruzando as mãos sobre a mesa, um pouco atordoado. Ewald observava-o, e o mestre chamou-lhe a atenção – Sr. P para de prestar atenção no Sr. K e atente-se a minha pessoa agora. Causou uma nova troada de gargalhadas, e Ewald ficou tão atônito, quase sem chão, ali sentado, encolhido, e não teve a coragem de olhar como ficara a face de Franz, mas completamente pálido e melancólico não conseguia prestar atenção na prelação do mestre de voz troante, nem encarar os colegas, sentindo remoer algo dentro de suas entranhas como se as vísceras revirassem.
Na saída, perdeu-se de Franz, não o viu entre o tumulto dos rapazes, e deixou-se ficar assim pelo final, segurando sua pasta, embriagado por uma melancolia amarga. A voz do mestre, “Pare de prestar atenção no Sr. K”, ecoava em sua mente conturbada, e o rubor ardia em oscilação com a palidez. Precisava se encostar-se a algo, e buscou sôfrego aquele poste com cartazes colados. Propagandas de teatros. Espetáculos em iídiche no teatro hebraico, algo assim, foi buscando entre a aflição constante um lenitivo. Mas o que se passara? Todos já não haviam esquecido? E Franz teria ficado tão escarlate quanto ele, ou mais. Desconfiariam? Mas de que? O que havia de tão perverso para se desconfiar no fato de estar embebido pela fisionomiade Franz?
Com que forças chegou a sua casa, atravessou a viela cheia de movimento,encontrou mais os pés descalços do pregoeiro do que os produtos que ele vendia, ouviu foi um berro de aviso sobre os fios que conduziam o bonde, e seu estrondo seco entre os trilhos, antes de chegar a viela, mas nessa viela que atravessou pareceu ver os pés descalços do pregoeiro de novo, respondeu a um bom-dia da Sra Crupell, que até perguntara pelo seu avô, Então, sempre nas costuras, sempre trabalhando bom velhinho, o bom Gepeto, ham-ham, se ia com sua umbrela altaneira e um pouco colorida demais. Com as mesmas pernas bambas atravessou o pequeno pórtico do salão do velho alfaiate, cumprimentou-o com voz engasgada, subiu os lances da escada indo se aquecer sobre o fogareiro aceso, mesmo colocou um bule de chá na trempe. Admirou-se do fogo, do calor daquele fogo, e do frio que o fizera tremer pela estrada de volta da escola.Franz, Franz, com que vergonha não devia estar agora, e pensando dele coisas ultrajantes. Mas que ultraje então poderiase conceber no que dissera o mestre de Literatura latina? Era algo que lhe remoia as entranhas, deixava-lhe assim sem sossego sem alivio, pegando aquele bule de chá com esperança na bebida amarga de preferência, dentro de uma caneca de louça. Quase sem ar, com um terremoto de pranto querendo vomitar pelos olhos e se expelir em berros entre lagrimas e salivas quentes, assim fugiu para seu quarto, abrigado a penumbra aconchegante, embora um pouco úmida e fria, mas nada que um bom cobertor por cima não abafasse os gritos de um pranto desabafado, sacudindo-lhe as espáduas, enchendo-lhe o peito de um sabor amargo que parecia a própria bílis se estourando e contaminando-o inteiro com o fel da infelicidade.