Amiga fácil

Ainda sinto falta dos nossos joguinhos internos de poder. Gostava de ouvir sua voz firme e suave tocando meus ouvidos e me dando pequenas ordens que eu, às vezes, vinha a acatar. Quando tinha energia demais armazenada em meu corpo me opunha só para que quando finalmente terminássemos eu pudesse me deitar exausta ao seu lado e adormecer imediatamente. Que dupla formidável formávamos, que dupla...

Então, agora que estamos envelhecendo você não pensa em ficar? Sempre imaginei a chegada desse dia, depois de uma série de idas e vindas descompromissadas iniciar um verdadeiro relacionamento ao seu lado. Sei que parece ruim, para nós que sempre fomos tão livres, ter algo real um com o outro. O que acontece, porém, é que minhas asas já se cansaram, não me importaria se você me prendesse e as cortasse. Na verdade, até queria me livrar do pesado fardo da independência. O que você acha, heim? Adornaria bem a sua sala de estar?

Eu poderia ser a mãe dos seus filhos, poderia ajudar com as contas de casa. Seria divertido ou não? Uma vida de casados, você me apresentaria a seus familiares, eu te apresentaria aos meus. Escolheria um vestido branco que respeitasse meus quase quarenta anos e, apesar do desconforto religioso mútuo celebraríamos com uma cerimônia discreta. Nunca sonhei com nada assim, mas depois de uma vida tão intensa como a que vivemos deve ser natural ceder a algum comodismo.

Poderia dar certo entre nós, pelos meus cálculos. Quer dizer, a gente se conhece tão bem e somos tão parecidos! Jamais julgaríamos um ao outro pela vida que levamos, pois ambos nunca entendemos os relacionamentos convencionais, sempre soubemos que um ser humano jamais poderia pertencer a outro. Posto isso nós evitávamos ao máximo os namoros e suas opressivas regras de conduta. Solteiros convictos, bons amantes, isso nós eramos e acreditávamos que assim continuaríamos para sempre.

Ao contrário do que pensam os outros não acho que essas escolhas tenham a ver com uma necessidade física demasiada e pérfida. Pelo menos para mim, que cheguei a passar anos jovens evitando os homens só pela curiosidade de ver como é ficar sem um por muito tempo. A sensação de liberdade nunca foi uma meta, era mais algo que sempre me pertenceu, e como me fazia bem eu zelava para mantê-la comigo.

É engraçado, não acha? Nos vivíamos abdicando dessa liberdade nos nossos velhos jogos de dominação. Tenho uma teoria sobre isso, quer ouvi-la? É assim, da mesma forma que o escravo sempre anseia pela libertação os livres também sentem inveja das correntes. Mesmo que por um momento, mesmo que só durante uma pausa efêmera, nós nos permitíamos experimentar um pouco da outra realidade em sua face mais intensa.

Não contava para ninguém sobre como realmente desejava que as coisas acontecessem na intimidade. Você foi o único que, sem aviso prévio, me permitiu vivenciar todas as insanidades que pairavam na minha mente fértil. Você que abandonou os modos carinhosos e sedutores e mostrou como podia ser violento e sádico. Logo depois me ensinou como representar esse papel, e começamos a revezá-lo.

Passei a querer você bem mais do que queria qualquer outro dos meus amantes. Você, por outro lado, me via apenas como mais uma, não é mesmo? E um dia arrumou uma namorada e não deu mais notícias. Fiquei triste, mas me conformei. Na vida de amiga fácil essas coisas acontecem com uma frequência desagradável. Eu mesma me aventurei, algumas vezes, a tentar uns relacionamentos de verdade, mas nunca deu certo para mim, e também acabou dando errado para você.

Confesso que meu coração saltou quando você apareceu perdido como um cachorro de rua na porta da minha casa e mostrou seu lado mais frágil! Havia rompido com a sua amada e agora se sentia solitário. Só daquela vez não se convidou a entrar, ao invés disso me chamou para um jantar e eu tive o prazer de ouvir sobre suas frustrações amorosas e as indecisões que você enfrentava.

E como boa amiga tentei te dar concelhos. Vi que a garota era importante para você e disse que deveria tentar recuperá-la. Você tentou, mas então era tarde, ela já tinha outro. Sua frustração foi tamanha que, nesses últimos anos, você não interrompeu nossa amizade por nenhuma outra mulher.

Entre nós algumas coisas mudaram com o passar do tempo. Os jogos cessaram naturalmente, nossa intimidade se converteu em uma rotina mecânica que não parecia ter outra justificativa além de nos passar uma sensação de segurança sexual. As conversas, por outro lado, se tornaram mais longas e profundas. Madrugadas ao seu lado, você acendendo um cigarro e devaneando sobre a vida, sobre como ela pode ser monótona ou incrivelmente exitante dependendo do momento.

Quando fecho os olhos e fico inerte ao seu lado você pensa que estou dormindo e me diz as coisas mais inacreditáveis. Meus ouvidos, ao contrário do que você pensa, permanecem sempre atentos a cada palavra sua. Você me conta sobre suas experiências mais absurdas, e sobre como venceu a si mesmo e se tornou uma pessoa segura e, para nossa perspectiva, integra.

As vezes sou eu quem falo, e você quem escuta. Só que você não é de ouvir em silêncio, está sempre questionando, me interrompendo com repreendas amigáveis e tentando me coagir com o seu ponto de vista. Acho interessante, embora que não abale as minhas poucas convicções, ver alguém com tantas opiniões formadas.

Não crio caso, não sou de ter argumentos, minha visão do mundo se molda a partir do que eu sinto, e isso nem sempre é lógico ou palpável. Assim sendo, permito a você ser o dono da razão, isso fere a muitos, mas não a mim.

Ainda assim acho esses momentos preciosos. Mesmo que você não me permita fazer um simples desabafo, sem reflexões ou coisa que o valha, ainda assim é uma oportunidade para me abrir e me expor. Gosto de você por causa disso, por ter se tornado não só um amigo fácil, mas também um verdadeiro amigo.

Não ria, mas tenho algo engraçado para te dizer: Você é o único agora. Talvez porque todos os meus velhos amantes estejam casados, talvez porque com a minha idade eu não seja mais aquela mulher atraente de anos atrás. A verdade é que depois do seu retorno não me aventurei mais, e assisti passivamente meus antigos “amigos” saindo da minha vida .

Minha intenção ao contar isso não é cobrar nada de você. Estou apenas constatando, sem querer te tomei como meu marido, apesar de não saber se você me tomou como sua esposa. Em suma, é mesmo um pedido de casamento, minha intenção é uma união formal e estável, bem a moda dos meus pais.

Um pedido? Prefiro dizer que é um convite. Gosto mais dessa palavra, me tira do posição de alguém que implora, que necessita de um sim. Não me sentiria humilhada se a afirmativa não viesse, estou perfeitamente aberta a uma recusa. Então, o que acha? Pode dar certo, ou seria pedir demais?

Auriam
Enviado por Auriam em 27/10/2011
Reeditado em 27/10/2011
Código do texto: T3301340