A FORÇA DIVINA DE UM SORRISO

7 - A FORÇA DIVINA DE UM SORRISO.

Aclibes Burgarelli

Pensamento. Os animais irracionais, por instinto, realizam a preservação da espécie e sucumbem se a natureza não lhes for favorável. O ser humano, diferentemente, comporta-se em detrimento da própria espécie e contribui para que a natureza seja desfavorável a todos.

Por qual razão determinada espécie, qualificada na racionalidade, haveria de agir contrariamente ao equilíbrio ordenado do sistema natural, no qual as espécies não racionais assim não reagem?

Há que haver uma explicação plausível para a realidade descrita e, na busca dessa explicação, seguem as linhas recomendadas.

Junior e Rosa conheceram-se quando jovens; apaixonaram-se, contraíram matrimônio e, dessa união tranqüila, nasceram quatro filhos: Lucas, Silvestre, Kauê e Alice.

Sob o mesmo teto foram amados, educados, festejados e elogiados; Lucas, contudo, apesar da educação familiar que recebera, trilhou o caminho das drogas.

Rosa não encontrou justificativa para a rebeldia precoce de Lucas que, ao nascer, exibia olhos tão puros que um nome do apóstolo de Cristo lhe fora dado.

Nos primeiros contatos com coleguinhas do pré-primário insurgia-se contra alguns, ferindo-os com ataques inexplicáveis, ou deles tirava, a força, as guloseimas que levavam nas lancheiras.

Alice, a filha do meio, tinha estranho comportamento de apatia e, desajeitada; desde os seis anos de idade dava mostras da obesidade que se anunciava. Por essa razão, mais tarde, quando cursou o colegial, entregou-se ao hábito nocivo do cigarro; como desculpa, dizia que fumava para evitar engordar mais.

Silvestre, o terceiro filho, revelava-se o menino prodígio, extraordinário por seus atos e decisões. Desde a tenra idade tecera considerações apropriadas a adultos de boa índole. Revelava sentimentos nobres de mansidão, tolerância e caridade. Uma vez que não suscitava preocupações maiores aos pais, estes manifestavam cuidados especiais com Lucas e Alice. Os cuidados, entretanto, não eram pautados à luz dos conteúdos religiosos, mas sim relacionados com o que poderiam pensar outras pessoas, a respeito da rebeldia de Lucas ou do desmazelo de Alice.

No tocante ao filho Kauê, de sua parte, manteve-se ele ao longo da convivência familiar, fiel ao desejo de conhecer o mundo tão logo oportunidade surgisse.

Certo é que no quadro descrito os filhos de Junior e Rosa cresceram. A distância de idades entre o primeiro, Lucas, e o último, Kauê, era pouco mais de cinco anos.

A caminhada de Lucas foi terrível. Sequer concluiu os estudos do colegial, por ter-se entregue inveteradamente às drogas. Na fase de adolescente, tornou-se hábil nos furtos de bens da família; agressor físico da mãe; enfrentamento desmedido ao pai e recluso habitual das casas reservadas a menores infratores. Tão logo completou a maioridade civil, cometeu o primeiro homicídio que, somado aos anteriores, não o surpreendeu.

Causou-lhe sim aborrecimento a nova vida carcerária, porquanto teve de sofrer agressões terríveis no cárcere para se firmar como valente. Mas o que fazer? Cumpria penas das leis humanas e cumpria, outras, das leis naturais, em especial da lei de causa e efeito.

Alice conseguiu concluir o colegial, entretanto parou por aí, por causa da discriminação que sofria por causa de seu corpo gordo, desengonçado e gelatinoso ao andar.

Rosa limitava-se apenas a recomendações vagas, descompromissadas a respeito da alimentação da filha, contudo sem uma iniciativa efetiva.

Diferentemente do irmão Lucas, Alice era pura de coração e sentia-se bastante atraída ao perdão e à pacificação, dentre aqueles em que ela percebia a presença de ódio ou a possibilidade de esperança.

O modo adotado na família, no relacionamento mãe e filha, restringiu-se às vazias admoestações sem que houvesse um só momento reservado para congraçamento mais elevado. E assim, aos 20 anos, Alice era a mulher de serviços da casa, para quem o lazer não ia além de novelas na televisão.

Kauê, quando próximo dos 15 anos, conseguiu, através de amigos, cujos pais eram membros de entidades internacionais de serviços e benemerência, uma espécie de estágio no Canadá, para onde viajou, estudou, gostou e lá permaneceu após conseguir a cidadania do país. Os contatos com os pais rarearam, porque não era de seu interesse manter vínculo com o irmão criminoso, com a irmã problema e com os pais desprovidos de calor no coração. Pode-se dizer que a família reduziu-se na pessoa de Junior, Rosa, Silvestre e Alice. Esta em nada influía.

Junior não suportou as adversidades e a pressão de Rosa que muito falava e em nada ajudava, quanto aos rumos dos filhos. Ao contrário, em relação aos que mais concentrou seus métodos, Lucas e Alice, estes foram os que caíram na estrada da vida.

Fora indiferente em relação a Silvestre e Kauê e estes foram os que conseguiram, por conta própria, retirar as pedras do caminho e garantir o dia da chegada, sem tristezas.

Junior, impedido psicológica e estruturalmente de tomar uma decisão vigorosa, deixou-se abater; ganhou peso; tornou-se hipertenso e acometido de fulminante infarto sucumbiu.

Rosa já não tinha autoridade sobre quem quer que fosse, visto que seus discursos, para os filhos adultos, Silvestre e Alice, eram havidos mais para o lado cômico do que para o fim que ela pretendia impor.

Rosa tornou-se idosa de corpo aos 45 anos de idade.

Silvestre concluiu o curso universitário de engenheiro ambiental e chefiava importante programa de preservação da mata atlântica em determinada região, onde passou a residir com a mãe e a irmã.

O filho acolhedor não descuidou da irritada e desajustada mãe; tampouco o fez a bondosa e magnânima Alice.

Enquanto Lucas esteve preso, Alice o visitava e se submetia ao achincalhe dos funcionários do presídio e de alguns presidiários que para ela olhavam com desprezo.

Para Lucas, Alice e Silvestre eram os únicos que por ele se importavam e esse fato o fazia, às vezes, quando estava sóbrio, pensar a respeito de sua vida.

As preocupações da mãe nunca surtiram efeitos em Lucas; quanto ao pai, Lucas sequer sentia algo por ele. Tinha consciência plena de sua inútil vida, tanto quanto estava certo de que nunca fizera algo de bom. Poderia até dizer que seu pai era bom, mas exatamente por isso nada produzira e encontrara a morte.

Lucas soube do procedimento de Kauê e o tinha como membro familiar apenas na lembrança. Soube da morte do pai e o tinha apenas na lembrança. Soube do desajuste da mãe e estava certo de que também ela permaneceria somente na lembrança. Nada mais.

Quanto a Silvestre e a Alice, não queria que ficassem eles apenas na lembrança. Tentou traçar um plano de roubo milionário para agir quando deixasse a prisão e, dessa maneira, deixaria aos irmãos expressiva fortuna. Guardou a idéia para o momento oportuno, uma vez que estava próximo à concessão de benefício penal que o colocaria nas ruas, junto aos comparsas já preparados na prisão.

Como sempre o fazia, em um domingo de visita, Alice, patrocinada por Silvestre, compareceu ao presídio, munida de belas fotos da natureza, cujas cores bordavam o lugar onde residia com os demais familiares.

Em conversa com o irmão prisioneiro, a ele fez uma revelação sincera. Considerou, com muita humildade, que ela também estivera presa a um vício, o tabagismo o qual, em proporções diferentes, retirara dela todo o controle e a possibilidade de abandonar tão terrível hábito.

Lucas deixou escapar um sinal de alegria àquela que se submetia à discriminação de presos abjetos, para prestigiar o irmão delinqüente.

Alice prosseguiu e ponderou que não havia dúvida de que as drogas que Lucas consumia eram mais terríveis do que o cigarro, no entanto, de um modo ou de outro, ambos levam à morte.

Prosseguiu e informou que havia deixado de fumar, porque se preocupava com Lucas, com a mãe a quem servia nos afazeres do lar, com Silvestre que estudava e com seu próprio corpo que Deus lhe concedera para transpor uma etapa de existência.

Finalmente concluiu que se assim não agisse, poderia sucumbir por força do uso inadequado de um elemento da natureza (o fumo) e não teria a oportunidade de dedicar-se à salvação da mesma natureza, de sua mãe, de Silvestre, das visitas a Lucas e de seu próprio espírito.

Enfim, revelou como era feliz no lugar em que passara a residir. Deixou escapar estas breves palavras:

- Se você pudesse estar lá, seria tão bom!

Pela primeira vez, em tantos anos de vida no cárcere, na aspereza de sua alma e no vazio da vida, Lucas sentiu algo diferente como que a permitir dizer:

- Vamos para lá, imediatamente!

Lembrou, nesse instante, do plano de roubo, dos asseclas que o esperavam, das contas a acertar, enfim viu que uma muralha o impedia de prosseguir.

Terminou a visita, as fotos foram deixadas com ele, de modo que teve a oportunidade de meditar olhando para a cena real, fotografada.

Em uma das fotos estava Alice, com seu corpo obeso, gelatinoso, porém secundário ante o sorriso puro que exibia felicidade.

Nesse exato momento, Lucas fechou com força os olhos, levou as mãos ao rosto e pensou em Deus. Percebeu que a irmã deixara um vício, por amor aquele corpo disforme e o teria feito sob a forma de agradecimento ao corpo que Deus lhe dera.

Lucas chorou copiosamente e decidiu que a natureza, transformada em cocaína ou outra droga, não o mataria e, para não mostrar vingança, passaria a cuidar da natureza tal qual Deus a criara.

Reservou para si a decisão com temor de fracasso. Não sabia orar, mas aprendeu, com a irmã, a força de um agradecimento a Deus. Durante todo o período que esperou pelo beneficio penal, olhava para o sorriso da irmã e falava consigo:

- Deus misericordioso, obrigado por ter mantido minha querida irmã feliz, porque essa felicidade foi dividida comigo!

- Daí-me força para cuidar da natureza e que dela eu não seja vítima!

Lucas obteve o benefício penal e foi recebido pela família bem junto à natureza. Adotou a prática de, ao por do sol de cada dia, ajoelhar-se sob frondosa figueira e proferir sua oração. Os raios do sol punham-se aos poucos e ao reinar a noite Lucas punha-se em pé e guardava a fotografia da irmã no bolso e caminhava com um largo sorriso nos lábios.

aclibes
Enviado por aclibes em 06/10/2011
Código do texto: T3261210
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