Troca de destino
A Vila era aquilo, uma centena de casas cor de terra, sem prumo, parecendo agachadas para alçar voo ou rentes ao solo como quem anseia por se misturar, assim, sem rasgo e sem graça, ao castanho que desenhava a aridez de matos secos e pedras. Curvadas sobre si mesmas, fugindo de uma perpendicularidade nunca alcançada, as construções faziam fronteira a ruelas e caminhos que acabavam no único largo do lugar. O espaço, acanhado, enche-se com o templo cristão, velha matriz do século XIV, de rosácea cega e paredes grossas, onde a torre baixa acomoda dois sinos e se remata com a cruz, actualmente inclinada pelo peso do tempo. A Norte, a Câmara Municipal, antigo solar de dois pisos, exibe, encimando o portal, um brasão inclinado, sinal de bastardia assumida, ainda opulente. Ao lado, o café, de porta rasgada até meio da fachada ocre e, fechando os restantes ângulos da praça, a loja dos Machados, de alvenaria e revestida de azulejos aligeira o sombrio do todo arquitectónico. Era ali o centro da Vila porque ali se concentrava o poder de Deus, do padre e dos homens. Retirada, mas ainda em lugar de destaque como lhe cabia pela influência social, a Farmácia via-se como uma sequência de portas e janelas debruadas a azul desbotado. Em som cavo soaram as seis no sino da igreja. Chiando, a camioneta travou após a curva da entrada e para lá correram as mulheres da descarga dos víveres. Sons roucos, saias longas, xailes escuros e os lenços a segurarem as sogras em que apoiam as canastas e as sestas. Batiam as socas no chão empedrado e os homens, logo empoleirados no tejadilho da caminhoneta, faziam descer duas malas e várias caixas de cartão depois de as desamarrarem das cordas de sisal. Já fora da viatura o motorista abrira o ventre do autocarro e, de lá, fizera saltar o resto das bagagens. “ Cuidado com esse saco, senhor” disse a única passageira do dia, mulher ainda nova mas de rosto duro e fechado. Sim, senhora professora, está tudo inteiro, respondeu o homem arrastando agora outros volumes para a berma do passeio. A professora dirigiu-se ao café onde estaria a dona da casa em que se hospedaria. Olhou para o homem do balcão, encomendou o café e sentou-se para a espera. Pouco depois chegou, sobraçando uma molhada de legumes, a mulher que ali dava guarida a todos os professores contratados. Venha por aqui para dizer qual é sua bagagem e não se preocupe que eles lha entregam daqui a pedaço, disse-lhe a mulher acenando com um molho de cenouras. Eu sou Piedade com quem falou ao telefone e já sei que é a D. Amélia Cuca, a nova professora. Saíram do Largo contornando o templo pela esquerda, subiram a rua calcetada e atravessaram um terreiro de terra poeirenta antes de chegarem à casa de Piedade. Este é o seu quarto, disse mostrando-lhe um compartimento vasto no qual a cama de casal se sobrepunha à restante mobília constituída por uma mesa, uma cadeira e uma estante amparada por duas poleias. O espelho, quadrangular, ficava sobre a arca que ladeava um armário para a roupa. Quando chegar a hora do jantar mando chamá-la. E saiu sem dizer mais nada e sem sequer ajustar o valor da mesada.
Os primeiros dias foram de adaptação penosa e os seguintes uma lenta agonia na tentativa de se acomodar às exigências de quem ali, ditava as regras. Dois banhos quentes por semana, luz acesa só até às dez da noite, recolha de roupa para lavar às sextas. O resto foi a escutar os comentários e fragmentos de conversas que aprendeu. Para a necessidade de isolamento que sentia, valia-lhe o seu quarto ter porta para a rua por ser mais fácil entrar e sair sem ter de cruzar-se com o restante pessoal da casa. E ali estava Amélia Cuca, sozinha, fechada e sem amigos. Olhavam-na com curiosidade mas ninguém tinha ido além de um cumprimento leve. Amélia nascera morena, ligeiramente estrábica, com espessas sobrancelhas que se uniam sobre a cana do nariz adunco. Vestia roupa justa de cores neutras e usava sapatos de design masculino a que chamava práticos. Descuidada com o corpo era uma mulher feia e desinteressante. Introvertida, tinha gosto pelo rigor das análises e usava de método para concluir sobre tudo o que lhe parecesse fundamental. Depois que abandonara a casa da mãe onde se tornara antipática aos olhos do padrasto, precisava trabalhar e não hesitou aceitar leccionar naquele fim de mundo para poder fazer face às despesas. Gostava da profissão e sentia que, ali, as crianças eram, pela avidez de conhecimento e pela dureza da vida, absolutamente receptivas e amáveis. Apesar disso sentia-se infeliz. Saíra ainda jovem de casa e esta terra era só uma das dez localidades por onde, nos últimos anos, peregrinara. O usual era leccionar o ano inteiro, efectuar os exames e sair como quem nada mais tem a fazer na cidade, na vila ou na aldeia. Para trás deixava alunos especiais e as pessoas que conhecera de mais perto. Na regra os colegas eram acintosos, irónicos e raras vezes conseguira fazer, entre eles, amizades válidas. Desta vez não seria diferente mas começava a cansá-la andar com as coisas às costas sem um canto a que pudesse chamar a sua casa, sem alguém que a esperasse com afecto, sem cão nem gato, sem filhos… E dera consigo a chorar. Rolavam-lhe pelo rosto, grossas lágrimas e a boca crispava-se para não soluçar. Na verdade, olhando-se no espelho do quarto, achava-se pouco feminina, deselegante e feia. Sem o viço da juventude, a pouca harmonia do rosto, desaparecera por completo deixando-lhe sulcos vincados e um esgar que traduzia um espírito atormentado. Como poderia tentar ser agradável metida num tal corpo, assim vestida, com a voz raspada que lhe saía sempre que a ansiedade lhe ditava o nervosismo sendo isso tão frequente? Como, por outro lado, teria coragem para se mudar radicalmente assumindo uma postura oposta à que os outros conheciam, reconheciam e que estava consensualmente aceite? Onde e quando, finalmente, acharia a amiga sincera e leal para a acompanhar numa virtual transformação se, como suspeitava, o seu espírito aceitasse estar, nessa mudança, a solução de alguns dos seus problemas mais graves? E, perante tantos obstáculos, Amélia, uma vez mais, se entregou a um pranto silencioso que a deixou de cara inchada. Nesse dia não saiu, não tomou as refeições na sala, não contactou com ninguém. Chorava a sua sorte, a solidão, a impossibilidade de ser como toda a gente na busca de conforto, normalidade e alegria de viver. Não participou nos festejos do Magusto, ocasião propícia a novos conhecimentos e potenciadora de amizades nem alinhou na romaria de São Romualdo que, ali, celebravam, como os bárbaros, na encosta da serra onde se erguia, solitária, a minúscula capela. Sabia-se de quem aguardava o ano inteiro por aquela ocasião em que a maioria, usava toscas máscaras de madeira e palha de trigo, para a devoção ao santo dos camaldulenses por um dia. O anonimato sugeria o não cumprimento da lei ou das regras, tal como fizera o santo na juventude e cada um extravasava como podia, tensões e libido, de maneira impune. Quanto ao santo só podia abençoar por lhe ser vedado o direito de punir sem saber a quem. Tradições que o povo alimenta na necessidade de atenuar o rigor dos comportamentos numa sociedade já tão duramente castigada por carências e tirania. À festa iam todos os tímidos, os sem eira nem beira, aqueles que precisavam de, ao menos naquele dia dedicado aos sem identidade, sentir que a vida poderia ser gratificante, ainda que só pelo avesso da verdade. E comia-se do bodo geral, bebia-se de qualquer caneca, apertavam-se seios e nádegas de quem assim favorecesse a intimidade que se consumava nas matas da cercania. No regresso, que só acontecia com noite fechada, retiravam-se as máscaras no interior da capela e cada um já saia metido na sua própria pele e pronto para enfrentar outro ano de crítica e de maledicência. Claro que para soluções de vida não servia o encontro mas era uma das raras datas que interrompiam o castigo de viver ali com três meses de calor de inferno e os restantes em briga contra a natureza tão pródiga de ventos, temporais e nevões nos invernos agrestes. Viver ali, demasiado bem sabia Amélia, era arrostar com tudo o que a interioridade do País consente e ter de aceitar que o ciclo vicioso seria difícil de romper para quem, como ela, se acostumara a pedir pouco e a nunca se rebelar contra a mediocridade dos dias. Pela primeira vez desde que se conhecia por gente, Amélia punha a hipótese de mandar aquela vida às malvas e de correr riscos. Tinha com que se manter uns tempos sem fazer nada e estava pronta para mudar.
No dia seguinte, à hora de sair para a Escola, a porta não abria tanta era a neve acumulada no exterior. A Janela, estreita e alta, não lhe permitia que saísse por ela sem ajuda e o resto da casa com portas e janelas trancadas para evitar o frio, estava isolada pelo que, nem apelos nem gritos, trouxeram quem lhe pudesse valer. Muito depois das dez, alguém estranhara a sua falta e viera saber o que se passava. A seguir veio a caminhoneta da Câmara e os homens que começaram a retirar a neve do local. Quando por fim pôde sair, aceitou o braço forte de um deles para se por a salvo de uma queda no barranco contíguo à porta. Olhou-o ruborizada e, pela primeira vez em muito tempo, percebeu algum interesse no homem que a segurava com vigor. Apanhado pela viuvez, Heraldo Castanho, trinta anos, operário municipal, tinha dois filhos de dois e cinco anos mas vivia, sem família, numa dependência da casa paroquial. Sujeito aos rigores da vila e sem mulheres livres para refazer a vida, ali mourejava para moer o corpo e dormir, sem sonhos, até à alvorada de um novo dia. Se algum fosse a Espanha mendigava o transporte e ia para se desforrar nos bordéis. Se não, rodava pelas romarias em busca de aventuras e voltava a casa irritado consigo e com o mundo. De estatura meã, entroncada e de rosto agradável onde brilhavam, como brasas, dois olhos negros atrevidos, o homem tinha jeitos de ter alguma instrução e, porque falava bem, o colocavam para resolver pendengas onde fosse preciso. No dizer da criada do padre, assinava como um doutor, e apresentava-se limpo e bem vestido. Mistério era saber quem lhe engomava os colarinhos, impecáveis, sempre que ia passear para a Vila ou a Espanha. Falava-se na Donzília, mas nunca os viram à fala.
Amélia, era solteira e professora e isso punha-os nos antípodas um do outro - meditava ele - mas, por outro lado, era mais velha e pouco bonita. Por certo que não teria muitos por onde escolher. Daí o interesse e a ousadia de Heraldo, daí, também o rubor da mestra perante uma situação a todos os títulos invulgar como era esta em que ele a abraçava com firmeza e ela se lhe agarrava ao braço forte com medo de cair. Olharam-se. Amélia sentira-se devassada e ele achou que, naquela noite, ele estaria no pensamento da solteirona. E esteve. Desfeito o amplexo e resolvido o problema, Amélia foi dar aulas e Heraldo voltou ao seu trabalho no armazém da Câmara. Aparentemente estava tudo bem e tudo tranquilo. Na verdade, ela fervia de emoção e expectativa e ele animava-se supondo ser possível voltar a ter motivo para se alegrar. Como se iria aproximar dela, era, justamente, no que ele pensava. Decidiu-se por lhe pedir explicações e, ainda que ela lhas não desse, haveria de a comprometer a um outro encontro. Quando o atenderam na casa de D. Piedade, com o ar mais sereno deste mundo, ele disse que tinha duas palavras a dar à senhora professora. Convidado a entrar, aguardou um bom bocado antes que Amélia conseguisse acalmar o coração, lavar o rosto com água fria e por um nico de alfazema no pescoço. Quando o viu, fingiu naturalidade mas o estrabismo acentuara-se dramaticamente. Estendeu-lhe a mão que ele segurou excessivo tempo facto que a levou a corar violentamente. A seguir, Heraldo, debitou o discurso muitas vezes ensaiado. Para ele, disse, era mais importante saber que ter diplomas e, portanto, pensara em estudar com quem o orientasse, com quem definisse um programa de leitura, com quem lhe ensinasse a redigir mais e melhor estando a pensar ter uma hora de explicação diária. Queria saber se poderia contar com ela e quanto lhe iria custar a disponibilidade da professora. Dentro do que fosse razoável, pagaria o que ela entendesse por bem. A princípio pensara em receber as explicações com outras pessoas interessadas mas, se ela não visse inconveniente, preferia estar a sós com ela, rematou jogando-lhe, propositadamente, toda a força sedutora dos olhos negros. Amélia emudeceu de emoção. Tossiu para disfarçar mas as palavras acabavam presas na garganta. Indicou-lhe uma cadeira e tentou ganhar tempo enquanto se acomodavam. Só depois, já sentada, levantou para ele o rosto e balbuciou qualquer coisa parecida com: pois, não estava à espera e tenho de pensar no assunto. Não sei se a D. Piedade autoriza as explicações aqui, se seriam viáveis noutro lugar. Compreenda… E ele respondeu que sim, que compreendia e disse-lhe, também, que voltaria no dia seguinte para a resposta mas acreditava que ela não iria decepcioná-lo. Ao sair cruzou-se com o Nunes, colega de serviço, e com ele trocou um olhar que o dispensava de mais justificação. Quando, atrasado, chegou ao serviço, tinha um ar exuberante e feliz.
Amélia aceitou dar as explicações com a condição de terem início só a partir do mês seguinte. Reservava para si mesma os derradeiros dias de Dezembro por sentir que o tal projecto de mudança pessoal teria, forçosamente, de acontecer e por pensar que seria bom iniciá-lo fora da Vila, nas férias de Natal. Entretanto uma barafunda de emoções e de sentimentos, perturbava-a como nunca antes. Uma esperança sem limites no futuro, um renovado optimismo, uma permanente vontade de branquear a ousadia de Heraldo, já davam como saldo uma significativa simpatia pelo aluno potencial. Primeiro porque a escolhera a ela para as lições, depois porque sentia que se não olha assim para toda a gente e, finalmente, por saber de intuição, que poderia ter sucesso aquela experiência. Jurava a si mesma tudo fazer para que dali nascesse a feição que lhe justificaria a existência. D. Piedade, sempre ávida de novidades e com muita vontade de dinamizar a actividade da sua casa como fosse possível, logo adiantou que não se importaria de ceder a sala de jantar para as explicações uma vez que estava fora de discussão que tivessem lugar no quarto de Amélia. Evitavam-se ditos, rematou, sorridente. Embora… disse brejeira, antes de sair, ambos estivessem em boa altura para outras conversas…
E os dias seguintes voaram a uma velocidade espantosa. Amélia fez o que nunca lhe passaria pela cabeça fazer, designadamente entregar-se nas mãos de profissionais de um instituto de beleza do Porto, cidade onde, acompanhada de uma tia, procedeu à renovação do seu guarda-roupa. Foram verdadeiros dias de loucura desejada e temida. A coragem de assumir a transformação foi o mais difícil mas sem a crítica castradora dos parentes e amigos e longe do seu quotidiano, tudo lhe pareceu empolgante e aceitável. Não se reconhecia e, para ser franca, estava apaixonada pela nova imagem que tinha. O corte do cabelo, o arranjar das sobrancelhas, os tratamentos de pele, a dieta de emagrecimento, as aulas de andar e postura, as de aconselhamento e maneiras bem como as muitas conversas com a psicóloga que também quis consultar, faziam dela uma mulher interessante, diferente, confiante. Talvez Heraldo não gostasse mas era um risco que queria correr. Quando se sentou no autocarro para regressar a Trás-os-Montes, à Vila perdida e à penúria social e humana do seu dia-a-dia, sentiu-se outra mulher. O motorista só a custo a reconheceu e nos seus olhos leu admiração e aplauso. A pintura era discreta, o cabelo tinha um corte elegante e o saia casaco cinzento, sobre a blusa levemente estampada, garantiam-lhe uma serena beleza. Ninguém ficou indiferente à sua chegada e quando meteu a chave à porta, já a D. Piedade a esperava do alto da varanda do primeiro andar. Alguém a alertara para as mudanças da professora e a curiosidade fizera-a descurar todas as tarefas. As línguas corriam soltas na localidade pobre de notícias. Até Heraldo teve conhecimento delas e dir-se-ia que não gostava só por temer perder o terreno que já entendia ter conquistado. E…chegou o dia da primeira aula. Amélia preparara um apequena introdução para o programa que achava ser adequado ao aluno, valorizando conhecimentos práticos, regras essenciais de português e leitura. Interpretação de textos e redacção bem como bases de cálculo fariam parte do que seriam valores a defender. Falou-lhe nisto mas sentiu, na sua concordância, que o homem ainda se não conseguira refazer do espanto e que se mostrava agora retraído e tímido. Uma impressão forte avisava-a da eminência de perigo e o seu sexto sentido fazia-lhe notar que a sua nova imagem, a menos que fosse já explicada e atenuado o impacto, faria com que Heraldo não voltasse a querer aproximações com quem, agora, se mostrava de nível muito superior ao seu. Amélia, que falava de pé para evitar intimidades precoces, sentou-se na cadeira à sua frente e olhou-o de forma firme e directa. Entre os dois, um caderno de folhas pautadas e a jarra com flores eram o grande obstáculo que teria de ser arredado para que se vissem. Encontraram-se, no arredar da jarra, as mãos de ambos e, ao reencontro dos olhos, a intimidade voltou. Amélia esqueceu a cronologia da lição e falou, longamente, das pessoas a quem a imagem remete para um dia a dia infernal. Falou no seu caso e nas dificuldades que tinha no relacionamento com os alunos e com as demais pessoas. Acabou por lhe perguntar se, em seu entender, era condenável uma mulher pretender uma vida mais agradável para si. Agora era ao homem que faltavam palavras. Tossiu e pigarreou, limpou o suor da testa com o lenço de xadrez e, finalmente, disse: se a senhora não mudou por dentro, por fora já se vê que melhorou. Eu cá gosto. Chame-me Amélia, pediu, pegando-lhe no braço, antes da primeira leitura.
Casaram em Maio seguinte. A princípio ainda quiseram aguardar pelas obras da casa mas Amélia decidiu que já tinham perdido muito tempo.
FIM