Flor do Inverno

“Se você fechar a porta, a noite pode durar pra sempre. Deixe a luz do Sol se extinguir e diga oi para o nunca”.

(After Hours by: Velvet Underground)

É inverno, meu Caro. Tudo no mundo muda com essa estação, e até mesmo eu, que vivi incontáveis anos em minha eterna juventude, sinto algo aqui dentro.

Em anos, séculos, viagens e destinos, pessoas, lugares e rumos eu ando por entre os mortos e viventes dessa raça. Vivenciando os lapsos rápidos, não raros, porém brilhantes e encantadores que é a vida da espécie humana, a qual me dá forma e que tanto me faz sentir parte de algo maior e com certeza, sem explicação.

Assim eu fui, venho sendo, sou e de forma incontrolável sempre serei.

Ando entre os mortais, e sim, conheço todos seus vícios, suas virtudes e crenças, e sei também que minha quase-existência é desconhecida por uma maioria esmagadora das pessoas que caminham por esse universo.

Claro, lendas existem, porém não me vejo assim, não sou uma lenda, nem sequer tenho a pretensão de ser. Eu quase vivo para viver, e quase morro por merecer, e nesse dia, posso dizer a você, meu caro, que minha vida está completa nesse instante, e que a essência da flor mais bela mora dentro do meu peito, nesse instrumento estranho que bombeia a vida e a luz tão clara que é o que me mantém entres vocês, ou quase. E hoje vocês saberão que a mais estranha forma de vida, pode sim se tornar tão humana como a mais baixa classe entre vocês homens e mulheres que vivem nesse plano.

Independentemente de onde eu venha ou pra onde eu pretendo ir, assim como todos os seres similares ou de energia parecidas com a minha e que circulam por entre os mundos, existe uma única regra, uma única regra que não pode ser quebrada, e que por mais forte ou desapegado que você seja não conseguirá fugir, ou melhor, não vai querer.

Você pode viver anos sem saber o que é. Pode até mesmo passar pela vida sem o conhecer, porém, quando o encontra, sabe que o seu destino é se dobrar de bom grado a ele, sem ao menos relutar.

E é exatamente aqui, que começa a minha história.

A história de um Arlequim que viveu por séculos a fio, vagando entre os mortais visíveis e invisíveis, e que encontrou por um mero acaso do destino, o fim, ou quem sabe o começo do processo que torna um ser como eu, que sempre foi metade de qualquer coisa, um inteiro, um todo, um só.

Minha vida sempre foi simples, e isso é o que todo mundo procura, uma vida simples e bela. Andei por entre pessoas, conheço seus medos, brinco com elas, e isso sempre me fez feliz.

Em minha invisibilidade, danço com as folhas que giram com o vento, flutuo com ele, e o ar frio dessa estação me deixa feliz, pois o mundo toma as cores que mais me agradam. As manhãs são cinza, gélidas e nem mesmo o Sol ousa estragar o espetáculo proporcionado pelo orvalho cristalizado, que aos poucos se desfaz e transforma a madrugada em dia. Os dias são mais claros, porém, a abóbada celeste fica completamente visível em sua falta de nuvens, e quando vêm à tarde, as pessoas saem de seus trabalhos, ávidas para encontrarem seus companheiros e amigos, para um chocolate, ou mesmo para chegarem a suas casas e manterem-se aquecidos no conforto e aconchego do lar.

E as noites, ah sim, as noites de inverno, onde casais andam juntos e abraçados, onde as pessoas saem para passear e o amor flutua por entres elas, por entre os parques. O amor flutua com as folhas, que flutuam comigo, girando e dançando ao sabor do vento.

E eu não sou diferente. Pra mim o inverno é o período em que minha quase-vida sempre se alegrava. Seguia os passos das mais belas garotas, cheirava seus cabelos, acariciava seus lábios com os meus, e elas apenas sentia, o calafrio da minha presença, e isso sempre me faz sentir vivo. Adoro a convivência humana, e sempre me atraio pela beleza das mulheres dessa raça, e mais que adorar, eu simplesmente vivi para conquistar a paixão das belas e nem sempre solitárias mulheres, e pra elas, apenas pra elas, as apaixonadas por mim, eu revelei minha existência, minha avidez por sua irresistível beleza, cheiro e forma.

E minha quase vida sempre seguiu assim, sou um incansável amante, um perseguidor, um rastreador infalível quando encontro minha futura paixão, e mais do que isso eu sei exatamente o que faz uma mulher se sentir atraída por mim, e com isso, tomo a forma que mais agrada minha nova amante, e esse sempre foi um processo natural para mim. Porém, qualquer ser vivente tem um motivo pra estar aqui nesse, ou em qualquer mundo, e eu não poderia ser uma criatura diferenciada. Tudo que existe no universo tem um por que, tudo tem uma razão, e eu não sou diferente de vocês nesse ponto.

Mas qual seria a minha Razão de existir? Eu estou aqui apenas para viver paixões tão rápidas quanto meus encontros? Estou aqui apenas para vagar entre as pessoas sem sentir esse tal amor, que está por todos os lados nessa época fria?

Eu posso ver a cor dele, a verdadeira cor dele, mas não o sentia. Nunca o havia sentido e isso com toda certeza, fez e sempre fez eu me sentir um quase.

Quase vivo... Quase humano, quase feliz, quase ser, quase humano... Quase um ser inumano... Apenas um...

Ser incompleto... Fora de controle, meus riscos, sempre calculados, um tipo imprevisível, indeterminado... Incerto e impreciso, mesmo quando planejado, tanto indefinido quanto inevitável.

Mas o inverno... O inverno sempre é a época de surpresas, sempre muda tudo no mundo, e meu mundo, não só ele, como também minha existência mudou quando me deparei com ela, com minha metade do inteiro, com a razão da minha existência.

Quando a vi pela primeira vez, eu soube que era a pessoa certa, e todo o mundo ao meu redor se congelou como numa cena pausada de um filme antigo. E meus olhos não podiam ver mais nada além dela. Era tão bela, tão leve... Tão linda... Uma flor em um jardim de pedras, entre luzes e avenidas, sacadas e veículos, um arco-íris no final da tempestade, minha luz no fim desse imenso túnel, que era minha vida antes dela.

E ela estava ali, andando sozinha entre as pessoas, com os olhos mais brilhantes e expressivos que já vi em toda minha longa existência. Caminhava rapidamente entre a multidão, com as mãos no bolso de seu casaco cinza de inverno, provavelmente as mãos mais delicadas que já existiram em toda a criação.

Por onde ela passava, eu via o inverno mudar de cor, e mesmo naquela tarde fria, ela conseguia me fazer imaginar girassóis, e esses girassóis não conseguiam de maneira alguma retratar a cor de seus cabelos, que eram claros como a luz do próprio Sol.

E Sol se ia ao horizonte, tímido, e já sem forças para conter o obscuro avanço da noite, que vinha carregando em seus ombros a foice celestial, e essa, iria banhar de prata a pele clara da minha metade até então perdida.

Passos suaves e etéreos como uma da minha própria espécie, com as formas mais belas, que apenas divindades poderiam imaginar e moldar, e enquanto ela caminhava, pequenas ondas de vapor emanavam e giravam uma sobre a outra saindo de seus lábios sem pintura alguma. E que pintura humana seria vil o bastante para macular aqueles lábios?

Naquela tarde eu descobri que o amor não tinha apenas cor, mas sim forma e cheiro, e o cheiro me acompanhou por toda aquela noite. Eu, pela primeira vez caminhei lentamente pelo parque, com minhas alegres amigas folhas girando ao meu redor. Senti-me humano, tremi quando o vento frio tocou meu rosto e não consegui definir o que sentia, só sei que daquele dia em diante simplesmente nada seria igual. Sentei-me no alto da torre de transmissão da cidade e ali fiquei sozinho com aquela sensação... Queria ela por perto, queria saber tudo dela, se gostava de ler, que música ouvia, gostaria de sentir seu cheiro pra sempre, queria olhar aqueles olhos e me ver neles, e foi então que me dei conta de que nem ao menos sabia como era sua voz, seu nome, ou endereço. E me dar conta disso doeu. Doeu por medo de não a ver, doeu por medo de na hipótese de ao vê-la, não conseguir dizer nada.

Logo eu, que sempre fui o maior dos amantes, o Arlequim que durante anos seduziu mulheres ao redor do mundo, hoje me sentia como um animal acuado, pensando em milhares de hipóteses, sobre aquela aparição no centro da cidade. Normalmente eu saltitaria e dançaria ao redor delas, lançando meu encanto, cantarolando em seus ouvidos, acariciando seu rosto, e ela simplesmente seria minha, mas naquela noite, naquele momento, eu senti que jamais iria conseguir fazer isso.

E mais uma vez senti aquela dor. Dor de receio. Dor de não poder estar ao lado dela. A dor das hipóteses.

Foi então que a dor se misturou com as duvidas e num turbilhão de emoções me aconteceu algo que jamais havia sentido ou presenciado. Uma vertigem tremenda se abateu sobre mim, e do alto da torre eu despenquei atingindo o gramado com um baque surdo, meu peito doía muito e o resto do corpo também. Lentamente me levantei ainda meio tonto e percebi que minha roupa estava manchada de sangue na altura do peito. Na luz da Lua, percebi que a mancha era na forma de um losango assim como o resto dos retalhos da minha camisa branca de losangos azuis. Abri os botões e me sobressaltei:

Meu peito estava aberto.

Eu jamais havia sangrado em toda minha existência, mas naquela noite eu sangrei. E não apenas estava sangrando, tinha um buraco em meu peito. Um buraco!

Sangrar é um privilegio dos vivos e seres materiais, e eu não sou vivo, nem material. Sou um quase.

Rapidamente abri os botões da camisa e pude ver meu coração. Ele pulsava intensamente e com mais vigor do que jamais pulsou, aquilo era realmente estranho, não vi sentido nenhum naquilo.

Tomei o músculo com minhas mãos em forma de copas, e o olhei fixamente na luz prateada daquela noite sem nuvens, e percebi que tinha uma marca azougue que brilhava com a luz da Foice. Não consegui entender o que aquilo queria dizer.

A vertigem veio de novo.

Recoloquei meu coração no peito, fechei a camisa e tentei voltar pra cidade. No quarto passo o mundo girou e eu novamente desfaleci.

Acordei no dia seguinte sem sentir nada, como se nada tivesse acontecido, porém o losango vermelho permanecia em minha pele, marcando-a e mostrando pra mim que a noite anterior foi real. Levantei-me decidido a encontrar minha metade do todo, então corri pra cidade e comecei minha busca caminhei sobre os prédios, olhava pelas janelas, corria sobre as águas, sempre atento ao cheiro marcante que não conseguia mais esquecer. Perguntei pro vento e para o céu se eles haviam a visto passar, descrevi em detalhes toda a beleza e esplendor que ela representava a meus olhos, porém não obtive resposta. Ela simplesmente havia sumido.

Decidi então sentar-me no mesmo lugar onde estava quando a vislumbrei na tarde anterior. As horas passaram demoradamente e ela não apareceu. Passaram-se dias e eu continuei indo pra lá todos os dias, no mesmo horário, esperando que ela surgisse em meio à multidão.

Nada mais me chamava atenção, nenhuma das belas mulheres que me encantavam me atraiam, nenhuma criança me dava vontade de atentar com minhas peças, eu só queria acalmar meu coração, só queria saber o que realmente significava tudo aquilo que me acontecia, só queria mostrar pra ela que ela era o que eu precisava pra ser inteiro.

Decidi então dançar com minhas folhas, correr com o vento entre as pessoas e apreciar à tarde de inverno que estava cada vez mais fria, e aquilo me alegrava, acalentava minha recém adquirida alma, e me deixava menos tenso. E foi então que o cheiro dela chegou até mim. Novamente o mundo parou, e eu a avistei saindo de uma escola, uma escola como outra qualquer, bem ali no centro da cidade. Deduzi que ela poderia trabalhar ali.

Comecei a acompanhá-la.

Saltitei a seu redor a mais bela dança que jamais dancei, soltei risos de alegria e emoção, minhas mãos suavam por dentro eu tremia compulsivamente, minhas folhas seguiam-me na valsa solitária que mostrava todo o meu amor e desejo pela moça mais bela que já vi. Eu estava feliz, realmente feliz, e de relance pude vislumbrar um sorriso.

Meu coração pulou, parecia que ia cair do peito. Ela podia me ver!

Ela sorriu pra mim. Sorriu o sorriso mais tímido e lindo que já vi em minha longa vida. Senti minha face esquentar, parecia em chamas, precisava pensar rápido, precisava dizer alguma coisa pra ela, algo mais do que dançar com minhas folhas.

- Olá. (Deus que coisa mais idiota pra se dizer.)

- Oi. – Me respondeu ela, timidamente.

Apresentei-me, e pela primeira e ultima vez disse meu nome verdadeiro a um ser na face da Terra. Arlequim é conhecidos como Arlequim, e o nosso verdadeiro nome só pode ser revelado a pessoa a que merece de fato saber, a quem o vai guardar e o honrar, bem como nosso azulado coração que escolhe por si só a quem quer pertencer.

- Posso saber o seu nome, encantadora jovem?

Entre sorrisos tímidos ela me respondeu dizendo que se chamava Taynah, e aquele momento ficou gravado em mim para sempre. Aquele nome ficou gravado em mim de uma maneira que não poderia mais ser apagado. Conversei com ela no trajeto que ela fez entre a escola que trabalhava e a estação de trem, ficamos alguns minutos conversando até a chegada da locomotiva que a levaria para longe de onde eu poderia a ver. Fiquei ali na plataforma olhando pela janela enquanto ela sumia do meu campo de visão.

Era um sonho, a metade do eu completo não apenas me viu, mais do que isso, conversou comigo, era um sonho, com certeza era, eu estava amando.

E isso era novo pra mim. Novo e estranho.

Desde então eu a encontrava praticamente todos os dias, e realmente ela era a pessoa mais encantadora que o criador já colocou para caminhar por esse plano, e eu simplesmente não conseguia demonstrar pra ela todo o sentimento que guardava dentro de mim.

É muito estranho, você ter milhares de companhias, milhares de amigos, séculos de experiência, e quando você encontra o amor, tudo isso passa a não valer de nada. Você recomeça do zero.

Aqueles dias realmente me soavam muito surreais, não sentia mais em mim aquele antigo impulso em continuar com meus antigos atos, que me acompanhavam desde a antiga Veneza. Minha vida se resumia a pensar nela, em seu sorriso e nos momentos que passávamos juntos, naqueles cabelos cor-de-girassóis, e suas roupas azuis que tanto me agradavam e que por vê-la sempre vestida com peças daquela cor, me faziam crer que seria a sua favorita, bem como a minha, o meu azul, a cor que carrego comigo desde que me dei conta que existo.

Com ela tudo funcionava diferente, eu não exercia poder algum sobre ela, não existiam táticas, porém, meu esforço maior estava em tentar ser alguém especial e presente em sua vida.

Víamo-nos todos os dias, e a cada dia nos surpreendíamos mais e mais com nossas idéias e opiniões parecidas. Taynah era inteligente, divertida e mais do que isso, era bela e isso nunca é demais afirmar, pois como já venho dizendo, entre todas as criaturas na face da terra, foi por ela que meu coração fez-se bater descompassado, por ela o nó na garganta era constante, por ela eu tremia mesmo sem saber o porquê, e cada vez que eu ouvia o nome dela, ou a via chegar, borboletas voavam dentro de mim. E assim o mês passou. Rápido. Vivido intensamente. E eu não consegui coragem suficiente para dizer a ela que a amava e que queria estar perto, perto o suficiente para me sentir inteiro.

Não possuo lembranças dos períodos em que estava longe dela, longe de mim, ou de momentos em que eu não tenha sonhado com qualquer coisa a não ser com os próximos encontros, ou mesmo, o que eu iria tentar fazer para conseguir impressioná-la e a fazer ver pelos meus atos o que minha voz não era capaz de demonstrar.

Decidi então encontrar as mais belas flores e trazer para ela, imaginando que seria uma prova do afeto que sentia por ela.

Flores no inverno são raras.

É a época onde a vida reforça suas energias para trazer todo o esplendor da primavera, a estação onde a natureza trabalha em segredo e conjura o que há de mais belo e perfeito para agradar aos nossos sentidos.

Parti então em busca das raras flores que mais poderiam mostrar a Taynah, a mais bela entre todas as criações da natureza, o quão puro era o que eu sentia por ela. E durante uma semana eu implorei a Gaia que me cedesse do seu jardim pessoal o ramalhete mais puro e perfeito, pois disso necessitava para mostrar a pessoal mais especial a meus olhos e coração que qualquer coisa eu poderia a ela trazer se isso fosse suficiente para fazê-la ver o que eu não podia em minha timidez dizer.

E Gaia me pediu em troca um favor que me custaria um mês inteiro de vida, período esse em que ela geraria a semente do meu presente. Foi um mês de ausência e principalmente, um mês sem ver meu amor. E ele se passou sem que eu pudesse a ver, sem ter noticias e sem saber o que poderia estar acontecendo em sua vida sem minha presença e isso me dava muito medo, porém, era o preço a ser pago a Gaia, e eu o aceitei sem pensar.

Eu tinha medo de perder o que de fato nunca tive, e isso era muito estranho. Eu estava me doando às cegas, não sabia se realmente tudo o que eu sentia seria correspondido e esse medo só aumentava a cada dia.

No final do trigésimo primeiro dia, eu me apresentei a Gaia pedindo-lhe a paga tão esperada por meu árduo serviço, e a deusa de toda a vida e criação me cedeu sua segunda criação mais bela, posto que para mim fosse obvio qual era a primeira. E me entregou uma semente minúscula, a qual me disse para que semeasse em meu peito, e que se o que eu sentia pela mortal fosse puro, o que nasceria dela seria tão puro quanto, mas caso meu amor fosse de alguma maneira falso ou mesquinho, o que nasceria da semente iria tomar para si a propriedade do meu coração, o que obvio, seria o fim da minha quase vida entre os seres da Terra.

Imagino que qualquer pessoa em meu lugar sentiria ao menos um pouco de receio com relação ao risco que tal ação poderia acarretar, porém para mim, o sentido de eu estar aqui era exatamente esse, logo não havia duvidas em mim nem em meu coração, que me dizia que tal preço seria o mais justo a se pagar pelo amor que até então me era desconhecido e que de forma tão intensa materializou em mim uma nova existência.

Sem pensar, abri minha camisa e inseri a semente abençoada por Gaia no buraco que se abriu na mesma noite em que conheci Taynah, e ali aos pés da Deusa da Criação, meu destino estaria selado. Mais uma vez minha visão turvou e a ultima lembrança que tive da situação foi o sorriso amável da Deusa que me amparou em seus braços floridos e longos.

Acordei Deus sabe quanto tempo depois debaixo de uma árvore incrivelmente grande e antiga, num lugar que poucos ou homem nenhum jamais pisou: A Floresta de Gaia. Não perdi tempo e com os olhos ainda incomodados com a luz que transpassava a folhagem da árvore milenar, levei a mão ao peito. Do losango aberto há meses havia florescido o símbolo mais valioso e prova mais pura do meu amor por Taynah.

Um ramo de caules azuis e prateados que culminava nas flores mais belas e perfumadas que os olhos de um mortal já viram ou terá o privilégio de ver, Tulipas que do prateado do caule se tornavam brancas, para dessa cor partir ao rosa mais belo, Lírios brancos como as nuvens, que vez por outra variavam para um tom mais parecido ao leite, e Jasmins de tonalidades variadas envolviam o ramalhete todo desde o feixe de caules até se juntarem as demais flores cobrindo cada ínfimo espaço e completando assim a perfeição do presente com seu perfume suave e delicado.

Nem em meus sonhos eu poderia imaginar que Gaia me ajudaria com um presente tão perfeito aos meus olhos de admirador incondicional de toda sua criação, mesmo depois de todo trabalho e riscos aos quais me submeti para conquistá-lo. Mas ela fez mais que isso, Gaia deixou a cabo do meu sentimento expressar em forma de criação tudo o que eu sentia por Taynah.

E eu imaginava que presente ou símbolo melhor que esse, não poderia de maneira alguma existir, ser mais perfeito ou expressar melhor meu amor.

Gaia me disse que esse ramalhete jamais pereceria enquanto meu amor fosse puro, e que a vida dele dependia intrinsecamente de tal sentimento, que quanto mais forte ele fosse, mais belas as flores se tornariam e que suas cores representariam de forma peculiar toda e qualquer variação desse intenso sentimento.

Com um beijo sincero e o maior sorriso do universo me despedi da Deusa e corri o mais rápido que pude para encontrar Taynah e mostrar a ela o quanto ela era especial pra mim. Eu estava extasiado, e toda a natureza ao meu redor sentia isso, e sim, eles estavam felizes comigo e de alguma forma compactuavam com meu sentimento. Era definitivamente o momento mais importante da minha humilde existência, era o dia em que eu iria abraçar a felicidade e minha vida mortal.

Taynah...

Cheguei ao centro da cidade, e estava impecável, pela primeira vez me importei em parecer belo e radiante, não que eu já não estivesse por dentro, mas queria que isso estivesse aparecendo à flor da pele, para que ela não tivesse duvidas quando me visse.

Foi então que um dia a vi surgir pela boulevard, carregando um sorriso no rosto enquanto falava ao telefone, e de mãos com ele vinha um rapaz de sorriso não menos luminoso.

...

Talvez a morte tivesse me doído menos do que ver aquilo.

A pessoa que mais me importava no universo, estava simplesmente se importando com alguém, e esse alguém de forma alguma era esse Arlequim que vos fala. Eu senti o cheiro do humano que a levava pelas mãos, senti as intenções dele e principalmente:

Senti que ela estava adorando tudo aquilo e que estava realmente feliz.

Não tive mais forças nos braços, e o ramalhete enegrecido pesou mais do que eu poderia suportar, enegreceu como tudo a minha volta.

No buraco aberto em meu peito uma lufada de ar frio entrou, e meu coração que já batia descompassado simplesmente parou.

Retirei-o do peito com minhas mãos ainda trêmulas e fiquei alguns minutos olhando para sua imobilidade. O som do silêncio ressoava dele, meu sangue azul já não brilhava pulsante como há alguns segundos atrás, ele enegreceu e coagulou entre meus dedos e a marca prateada que nele havia nascido, há um mês, naquela noite sem nuvens no topo mais alto da cidade, tomou tons de chumbo. A marca já não reluzia como o mercúrio, e o seu significado, Taynah, que antes me fazia suspirar a cada hora que eu passava observando com todo o amor do mundo, agora faziam com que meus olhos ficassem turvos, e com que minhas antes inexistentes lágrimas fluíssem com um rio, borrando minha pele branca e se misturando ao vermelho dos meus lábios que de antes sorridentes e encantadores, os quais levaram milhares de fêmeas ao êxtase, se tornaram naquele dia um fino risco descolorido e sem valor algum.

Por que aquilo estava acontecendo comigo? Eu costumava ser uma entidade audaz e livre de emoções humanas, eu nunca, jamais havia me sentido como estava me sentindo naquele momento. Eu estava fraco, cansado, entristecido... Tristeza não descreveria o que se passava comigo. Tristeza, apenas uma palavra, e palavras são falhas quando tentam expressar sentimentos, principalmente quando tentam retratar o que se passa dentro de uma alma, quando ela perde a capacidade de sentir-se dentro de seu coração enquanto ele sangra.

Seria isso então... Minha existência se resumiria a vagar por centenas de anos em busca do meu verdadeiro propósito e quando eu finalmente o encontro, desprendo todas as minhas energias para cumpri-lo, emprego o que eu tenho de mais importante na demanda e por fim, acabo por descobrir que tudo o que fiz foi em vão.

Eu planei acima das montanhas mais altas, contei a ela as histórias mais incríveis, os momentos mais especiais da espécie dela, sussurrei em seu ouvido as mais belas melodias, velando seu sono, sentindo me extasiado com a sua beleza mesmo em estado inerte, e realmente me senti feliz por ser parte de alguém, mesmo sem ela ao menos saber toda a amplitude do amor que eu desprendia a sua forma de vida tão frágil e curta.

E naquele dia um humano estava em meu lugar, e ela sorria para ele o sorriso que deveria estar sorrindo pra mim.

O que fazer num momento como esse?

Nada poderia ser feito, pior, eu não odiava o homem, e principalmente não a odiava, se tinha alguém a ser culpado nessa situação não era ninguém além de mim. Eu a amava tanto e ela nem ao menos soube que esse sentimento existia em mim, eu faria qualquer coisa pra ela, e o fiz, porém nunca dei a ela a oportunidade de saber que foi feito.

Fui um tolo, fui o pior que podia ser e isso estava me corroendo. Caminhei então de volta a floresta com o coração inerte em uma mão trêmula e o ramalhete da Taynah em outra, cinza, petrificado, sem sentido algum.

O inverno esfriou demais nos dias que se seguiram, e eu permaneci sentado no topo da torre, onde tudo começou, dia após dia, chorando incontáveis lágrimas, que caiam por terra e faziam brotar pequenas folhas ressecadas no chão arenoso. O antes incrivelmente belo ramalhete nascido do fundo do meu coração estava a cada dia mais ressecado e feio.

Decidi que estava cansado de sentir aquilo, que era sim amor, porém ela nem ao menos saberia, a não ser que eu a dissesse.

Tomei a ultima dose de coragem que me restava e escrevi uma carta. Um conto na verdade, contando tudo o que me aconteceu e o que senti durante esses dias, e falei sobre meus sentimentos e sobre como ela era importante pra mim, tanto a ponto de minha vida perder completamente o sentido com o simples fato de não ser eu quem está de fato ao lado dela. Cada página da extensa carta que escrevi estava respingada com minhas lagrimas azuis, e cada letra que foi escrita ali, continha o mais profundo sentimento que eu jamais havia experimentado em minha vida.

Após quatro dias seguidos escrevendo minha primeira e ultima carta a ela, minhas lagrimas secaram, estranhamente secaram, olhei para o chão e vi o ramalhete há dias esquecido ao meu lado na plataforma da torre, peguei-o na mão e assim que o toquei, todas as boas e maravilhosas cores que antes haviam sumido dele voltaram, e foi então que me dei conta de que meu coração havia voltado a bater.

De alguma forma, colocar no papel tudo aquilo que eu passei em segredo, contando apenas comigo mesmo, fez bem pro meu coração e pro ramalhete, aparentemente acalmaram a nossa dor. Então caminhamos juntos de volta a cidade com a decisão de entregar a ela tudo o que era dela por direito, desde o primeiro dia em que a vi. Desde o dia em que minha vida passou a se mover mais devagar, desde que as musicas mudaram de tom, desde que o Sol passou a reluzir com as cores dos cabelos dela, e as flores passaram a exalar o cheiro dela.

Desde o dia em que eu soube que a amava.

Chegamos cedo a casa dela, sentamo-nos na escada e ali ficamos juntos, calmos e tranqüilos com relação a nossa decisão. Minhas folhas brincavam com o vento, me convidando para nossa graciosa dança que há dias não acontecia e passaram assim o dia todo girando ao nosso redor incansavelmente. E assim chegou a noite fria, e meu amor não dava sinal de voltar para sua casa.

E o dia veio.

E a noite.

E quando o dia e a noite se revezaram novamente, eu me levantei, caminhei em direção a porta de sua casa, transpassei-a facilmente e segui para o quarto de Taynah, entrei e fiquei de frente para a porta de madeira pintada de branco; Olhei-a fixamente por minutos infindáveis, e ao final, no momento que achei o correto, fiz o que meu destino me dizia pra fazer, o que já estava escrito pra mim desde o dia em que surgi no mundo.

Retirei lentamente um dos caules de lírio do ramalhete, segurei-o firmemente entre os dedos, com a outra mão peguei meu pulsante coração com o nome dela entalhado em prata, e com um único golpe, preguei-o na porta de madeira branca.

Ele pulsou feliz, compactuando da nossa decisão. Despedi-me dele com um beijo, e então fui até a cama dela, e depositei minha carta de despedida e o presente que consegui implorando a Deusa da Criação e que estava diretamente ligado a tudo o que estava me acontecendo.

Estávamos felizes e satisfeitos com a decisão, pois ela saberia o quanto a amávamos e tudo o que fizemos por ela e para ela, e com certeza, nada foi em vão.

E com isso, dei meu trabalho por terminado, e voltei à floresta para o último ato da peça que foi minha vida. Uma grande e trágica comédia.

Cheguei à grande árvore que me acolheu outrora, durante a feitura do ramalhete, me sentei completamente sozinho, sem meu antigo coração e sem minhas folhas. Sobrou-me apenas um buraco, um buraco no meu peito, onde ela morou.

E ali fiquei esperando. Esperando por dias, imóvel, inerte.

E numa noite em que a foice estava reluzente e incrivelmente bela, a noite de primavera, com todos os seres alegres e com o cheiro intenso e adocicado de dama-da-noite impregnando o ar, deixando a noite extremamente agradável, eu tive o vislumbre dela.

Ela caminhou em direção a mim com o ramalhete da mão, com os olhos mais brilhantes que a própria lua, e aquele sorriso que me fez tremer dos pés a cabeça. Seu cheiro se misturava aos das demais flores naquela noite, mas para mim, era o único que eu poderia sentir, na verdade, era o único que eu gostaria de ter sentido minha vida inteira.

Ela parou diante de mim, olhou em meus olhos com ternura e disse:

- Olá.

- Você é especial pra mim.

Olhei em sua mão, e vi um coração muito vermelho, que se parecia muito com o meu, inclusive, tinha algo escrito nele em letras douradas. Ela me estendeu ele, e eu ainda incrédulo o segurei com todo cuidado do mundo, com o rosto corado e as mãos trêmulas. E quando li o nome nele escrito, acabei caindo sentado.

- Eu tenho dois desse... Gostaria de ficar com um pra você? – Disse ela enquanto abaixava uma parte do decote do vestido azul.

E na luz da maior e mais linda Foice que a Deusa poderia ter feito naquela noite, eu vi meu antigo coração batendo dentro do peito dela, dentro de um orifício em forma de copas, com seu nome pulsando mais prateado que a própria Lua.

Então ela me segurou pelas mãos, me ajudando a levantar e quase sem perceber seus movimentos, nossos lábios se encontraram no mesmo instante que ela inseriu seu coração em meu peito. A partir de então eles começaram a bater como um só, e em nosso abraço eles se abraçaram.

E naquela noite, sob a luz da Lua eu vi o nome dela deslizar pra dentro do meu novo coração, e o meu nome deslizar pra dentro do novo coração dela.

E naquela noite, sob a árvore mais antiga de toda a face da Terra, o nome dela ficou marcado na minha pele, com letras douradas, bem no local onde o losango azul antes existia.

E naquela noite, sob a benção de Gaia, a Deusa da Criação, meu nome surgiu em letras prateadas no peito da minha Colombina, bem no local onde antes o sinal de copas estava.

Toda a á arvore de Gaia floresceu. Flores que não eram dela. Flores que eram do Arlequim e da Colombina. Nossas flores, nosso ramalhete.

Você não pode nos ver, mas estamos sempre juntos, e é até fácil saber onde estamos. Estamos entre as folhas que giram com o vento, com os amantes sob a luz da Lua prateada, estamos com a mais bela melodia ou em um café, numa rua de paralelepípedos sentados em cadeiras na calçada. Estamos em todos os lugares, e...

...Estamos onde realmente deveríamos estar...

Juntos.

“Mas se você fechar a porta, eu nunca mais verei a luz do dia novamente”.

Thiago de Moraes
Enviado por Thiago de Moraes em 29/09/2011
Código do texto: T3248806
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