Monossílabo

Tudo o que fazia tinha para ela um significado especial. Era grande e valoroso. Sempre o enaltecia pelo simples gosto de vê-lo sentir-se importante. Amava-o sem reservas. Incondicionalmente. Cada gesto esboçado, cada atitude tomada, era pensando no seu bem estar. Sentia isso na forma como ela passava suas camisas, preparava o seu café da manhã ou seu jantar, quando lhe repreendia ao sair do banheiro sem camisa: “Assim você vai se resfriar.” Quantas vezes a surpreendera falando para as amigas de suas qualidades que, honestamente, nem concordava que possuísse.

Era bom voltar do trabalho para a casinha modesta, pintada de verde, com o pequeno jardim na frente, e encontrar os chinelos e a toalha em seus lugares, o cheiro da comida enchendo a atmosfera daquele aconchego doméstico tão seu conhecido. O sorriso. O beijo na face. Sentar-se na espreguiçadeira do alpendre lendo José Mauro de Vasconcelos, tomar o café fumegante que ela lhe trazia na velha xícara esmaltada. Os casos corriqueiros dos pobres acontecimentos da pequena rua: “o marido de Dona Lourdes conseguiu um trabalho lá pros lados da Fartura.” Às vezes cansado demais e com a cabeça fervendo de problemas do seu mundinho particular, ele nem ouvia o que ela estava dizendo. “Você viu como as roseiras de Dona Gertrudes estão floridas? Ela tem mesmo uma mão abençoada. Benza Deus!” Ela nem esperava resposta. Não tinha importância. Só queria falar um pouco, deixá-lo a par dos acontecimentos ao seu redor. Coitado! Trabalhava tanto! Não estava com disposição para conversa. Sabia entender seu silêncio.

Às vezes saía, deixando-a sozinha. Descuidava-se da hora. Chegava de madrugada, ela estava sentada, invariavelmente, aos pés da imagem da Imaculada Conceição, cochilando com o rosário na mão. “Tem café fresco. Quer que eu esquente o leite?”

Um belo dia, início de primavera, caiu nas graças de uma outra mulher. Jovem e bonita, ela o transportou para um outro mundo. Coloriu seu caminho, perfumou sua vida. Tornou-se outro homem, alegre e falante. Percebeu de repente o quanto sua vida era vazia antes dela. Cresceu em entusiasmo. Mudou seus hábitos, quebrou velhos paradigmas e esqueceu valores que arrastava desde a infância e que tolhiam seus movimentos. Sentia-se livre agora. Aquela mulher maravilhosa arrancou-o de sua vidinha monótona e o levou consigo, para construírem juntos seu novo mundo.

Inebriado com os novos gostos. Quase não se lembrava da vida antiga ao lado daquela que velava seu sono. Que compreendia seus deslizes. Que alteava suas pequenas e escassas virtudes. E o tempo passou numa velocidade vertiginosa até que acordou numa madrugada e percebeu que estava vivendo no inferno. Sua companheira agora lhe lembrava a todo o instante que ele tinha todos os defeitos. Ela os ia enumerando no dia-a-dia num rosário infindável. Ele ia calando-se cada vez mais a ponto de tornar-se taciturno, o que ela classificava como mais um defeito. O Amor tinha morrido. O encanto se quebrado. Percebeu de repente que sentia uma profunda saudade...

A vida na casinha modesta, pintada de verde, havia continuado sem ele. O pequeno jardim continuava viçoso, anunciando já a chegada de outra primavera. Girou a chave na porta e entrou meio apreensivo. Ela estava sentada aos pés da Imaculada. Olhou-o com seus olhos mansos, brilhantes de alegria e transbordantes de piedade. Recebeu, meio constrangido, o sorriso e o beijo na face.

_Tem café fresco. Quer que eu esquente o leite?

Para ela nada tinha mudado. Para ele infelizmente nunca mais seria a mesma coisa. Certas atitudes na vida são como quebrar um prato. Não tem conserto. Mas estava de volta. Iria aprender a conviver com aquilo e ser feliz novamente. Sufocado pela pungente comoção, mal conseguiu balbuciar o doce monossílabo:

_ Mãe.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 26/09/2011
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