O SEGEDO DOS GIRASÓIS

Prólogo

Espanha dezesseis de março de 1822.

Estou com vinte e dois anos e vejo que minha vida acabou-se. Vivi nesta curta jornada terrena tudo o que uma pessoa com seus sessenta anos viveu ao longo de sua existência. Mas é claro que, em questão de sofrimentos, fui uma expert. Envelheci muito em três anos e meio aqui, enclausurada neste calabouço frio e escuro, onde fico relembrando os fatos e as situações vividas desde a minha mais tenra infância. Outro dia, pude ver meu reflexo em uma poça d’água que se acumulou no chão, causada pelas diversas goteiras que caem do teto. Quase não me reconheci. A maioria dos meus dentes caiu. Estou tão maltrapilha e suja! Eles quase conseguiram sujar, também, minha alma. Mas consegui separá-la do meu corpo, para que não fosse maculada pela perversidade humana.

Sinto tanto frio; estou tão cansada e enfraquecida! As dores, antes insuportáveis, agora já parecem mais brandas. Já quase não sinto mais a minha perna. O cilício preso à minha coxa já parou a circulação, e a sensibilidade não é mais a mesma. Estou presa a este objeto há tanto tempo! Não me lembro exatamente de quanto tempo estou aqui. A princípio, para evitar a loucura e a perda de memória, fiz tracinhos nas paredes. Mas, com o tempo, fui me esquecendo até de me levantar para comer o pão e a água que me trazem.

Temo não conseguir colocar neste diário tudo o que me ocorreu durante toda a minha existência. Tenho a esperança de um dia alguém me achar ou se lembrar de mim. Caso isso não venha a ocorrer, sei que minha amiga Juanita encontrará um meio deste diário chegar até às mãos de Maria. Quero que meus irmãos de alma saibam o que passei por amar e por não negar minhas origens. Deixo aqui registrados os horrores e as injustiças que aconteceram em minha vida, envolvendo pessoas consideradas acima do bem e do mal. Não aumentei e nem inventei absolutamente nada.

As pessoas do tempo em que eu vivi se diziam com o poder de direcionar o destino de outras, só pelo simples fato de terem nas mãos um documento chamado Bula Papal, elas tornaram a minha vida e a de outras mulheres a mais miserável possível. Homens que se julgavam Deus ou mensageiros Dele. Seres humanos como eu, mas que pareciam viver em um mundo mental paralelo ao nosso. Parecia que, ao olharem uma mulher, viam nela outra forma de vida aparente. Suas formas de manipular a população eram tão convictas que causavam cegueira e histeria em massa – e, logo, uma espécie de aliança cega entre a população e os inquisidores se confirmou. Na verdade, a voz do povo não era a voz de Deus, mas sim a voz de um povo manipulado pela Santa Madre Igreja.

Minha história é muito complexa. Se algum dia esse diário for encontrado e lido por outras pessoas, elas poderão ficar atordoadas e confusas com os relatos registrados aqui. Mas que fique bem claro que este é o meu diário. O diário da minha vida terrena, onde conto a minha trajetória como mortal, mulher, bruxa e como um ser humano esquecido pelo mundo contraditório. Nesta história de vida passada, faço aqui duas regressões e mostro o lado obscuro real da Inquisição. Conto como o preconceito contra as mulheres era superior ao sentimento maior: o amor verdadeiro. A religiosidade era usada para encobrir o lado negro dos sacerdotes. O dinheiro comprava e vendia tudo, até a alma humana. Os sacerdotes e seus monarcas seguidores fanáticos tinham uma única vontade: manter as mulheres submissas e a população humilde e sem cultura sob os seus pés. Mas, na verdade, os monarcas também eram marionetes destes discípulos do diabo. Pessoas que se mascaravam com uma bondade hipócrita, para não mostrarem a verdadeira face escondida debaixo de peles de cordeiros.

Espero, em nome de Deus, que a humanidade um dia possa evoluir para o seu próprio bem. E que estas almas, ao encarnarem, também possam redimir-se destes pecados que cometeram contra a humanidade. Vivi em um tempo muito desequilibrado e hostil, em que mesmo os que tinham certo estudo viviam na ignorância e no flagelo espiritual. As pessoas não tinham o direito de ir e vir. As palavras, nem em pensamentos poderiam permanecer. Se eu pudesse, aconselharia todos a refletirem sobre seus atos e as consequências que podem advir deles. Amem como se hoje fosse a primeira vez. Esqueçam o passado, deixem as mágoas e quem os magoou para trás. Porque a única coisa que realmente importa é o amor e o perdão.

Espero, minha querida Maria, que encontre este diário e que esta história da qual fez parte seja contada para todos os nossos irmãos e irmãs, de geração em geração. Tenho certeza de que não passei por todas estas coisas em vão. Aprendi muito com a senhora. Sua sabedoria, bondade e benevolência foram minha fonte de inspiração para eu estar aqui, hoje, lutando em registrar estas palavras.

Lembra-se, Maria, de quando mais atrás me ensinou a agradecer a Deus por todos os segundos de nossas vidas, mesmo que eles fossem os últimos? Agradeço, sim, a Ele, mas nunca me esqueço da senhora. Minhas orações são para você, bem como meu amor e gratidão, minha amiga, minha mãe. Sim, pois a senhora foi a única mãe que conheci.

Embora minha vida tenha sido tão curta, pude refletir e compreender que nunca devemos parar de lutar pelo que sonhamos e acreditamos. Sempre lutei e nunca temi ou me arrependo de ter chegado às últimas consequências. Nunca desisti do meu único e verdadeiro amor, embora ele tenha me traído e me abandonado. Nunca desejei mal a ele, mesmo sabendo que pode estar nos braços de outra mulher. Não odeio nem mesmo meus algozes, pois fazem parte da construção da minha história. Aceitei o dom da mediunidade graças à senhora, Maria, pois aprendi a ser responsável e mais humana. Sei que são curtos os meus dias aqui, minha cara amiga. Mas morro com dignidade e orgulho em saber que me assumo como sou: uma bruxa.

A senhora ensinou-me que a responsabilidade de um médium dobra quando ele ensina alguma coisa a outra pessoa. Espero estar sendo coerente com as palavras aqui. Pois, assim como fui sua discípula, terei discípulos que ouvirão minha história e far-me-ão de exemplo. Sei desta responsabilidade e não quero ser uma lenda e nem um exemplo, pois também falhei. Apenas quero contar como tudo aconteceu comigo. Achei que, por amor, poderia superar os sofrimentos que me seriam impostos. Aprendi, com certeza o quanto o ser humano pode ser cruel em arquitetar uma forma de torturar o outro. A maldade do ser humano é infinita e sem igual. Guarde-me em seu coração minha amiga, pois estou levando-a em minhas lembranças.

Seguindo com a minha história...

ADRIANA MATHEUS
Enviado por ADRIANA MATHEUS em 14/09/2011
Código do texto: T3219197
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