Edgarda

Não fazia muito frio, mas Edgarda vestia seu casaquinho – como todos os dias. Era algo que já fazia parte da sua imagem. Hoje, ela vestia o seu favorito, um preto com detalhes vermelhos nos ombros. Andava lentamente pelo vasto gramado da escola, sozinha. Era cedo demais. Ela já deixara suas coisas na sala e não estava com paciência para conversar com a professora.

Embaixo da sua árvore favorita – a qual ela gravara seu nome perto de uma das ramificações da raiz –, ela sentou. Não havia nada a fazer e ela odiava ter que esperar porque não conseguia parar de pensar nem por um segundo e se tivesse alguma coisa, qualquer coisa acontecendo, ela poderia se distrair. Mas como não era o caso, ela sentou e pensou.

Pensou em Diane, sua única amiga, que havia perdido a mãe uma semana atrás. Diane não entendeu a notícia na hora que falaram a ela.

- Sua mãe... está num lugar muito especial no céu... - a professora disse entre lágrimas.

Diane começou a choramingar, mas ela fazia isso sempre que via alguém chorando e Edgarda sabia que ela não tinha entendido nada.

- Vou ficar com ela um pouco, pode ser? - Edgarda perguntou já puxando a amiguinha pelo braço e saindo da sala sem esperar resposta.

Virou-se e viu a professora em choque, chorando. Havia boatos de que a professora e mãe de Edgarda eram namoradas.

- Preste atenção, querida. - disse Edgarda quando já estava longe o suficiente da sala, olhando nos olhos da outra. - Sua mãe morreu.

Diane continuou como estava, fungando de seus choramingos.

- Entendeu? É uma pena, mas ela morreu. Você é uma garota... esperta e forte, vai conseguir superar.

- Mamãe...

- Exatamente, querida.

Diane caiu em pranto.

Edgarda abraçou a amiga e sentiu as lágrimas molharem sua blusinha fina por baixo do casaco azul. Ela imaginava a dor da amiga, mas se colocava a uma certa distância porque, afinal, era impossível conseguir comparar aquilo a alguma outra coisa. Mas isso era o que ela preferia pensar, a verdade é que ela não se importava tanto assim, cumpria seu papel social porque sabia que Diane ia demorar a entender e, quando entendesse, seria um choque no meio dos outros.

Hoje, sentada e com as costas doloridas pelo tronco duro da árvore, Edgarda tentava parar de pensar em outras pessoas. Lembrou-se do gato do irmão.

- Você matou meu gato, eu vou matar você! - berrava Izac.

- Não matei. - Edgarda respondia, calmíssima.

- Matou! Sua monstra, sua estranha!

- Não. Eu estou ficando cansada de discutir isso com você, seus argumentos são fraquíssimos e você não tem provas.

- Sua assassina! - Izac pulou em direção à irmã, mas ela foi mais rápida.

Ela trancou-se no primeiro quarto que viu. Era o quarto dos pais e eles não estavam em casa. Ela sentou na cama de frente para a porta e ficou calada enquanto o irmão dava chutes e gritava para que ela abrisse. Enquanto as imagens do pequeno Noel agonizando povoavam sua cabeça.

Edgarda não gostava de mentir porque sempre achou que dava trabalho demais e dependia de outros fatores que não estavam sob seus domínios, então, ela preferia não fazer. E realmente não mentira nesse caso. Ela não havia matado Noel. O gato estava deitado em frente ao portão da casa, muito machucado e gemendo de uma maneira horrorosa, ela olhou para com nojo, não sabia o que fazer e no fundo dos seus olhos era possível ver qualquer gota de felicidade na agonia daquele infeliz que já a havia machucado tantas vezes. Edgarda pegou um graveto e mexeu no gato, tocou sua cabeça e a bariga muito de leve, depois sentou a alguns metros dele. Na verdade aqueles gemidos não incomodavam tanto assim.

Izac apareceu de repente, gritando. Edgarda jogou o graveto para o lado sem tentar disfarçar que estava com ele. Izac olhou para ela quase exalando ódio pelos poros e briga começou.

- Eu não sou uma assassina e ninguém tem provas contra mim. - disse ela para si no quarto dos pais.

Deitou na cama mesmo sabendo que seus pequenos sapatos estavam sujando o lençol da mãe e fechou os olhos.

Ainda não chegara ninguém. Ela estendeu as pernas para frente, perfeitamente retas, juntando os pés protegidos pelo sapatinhos brancos em perfeita simetria sobre o gramado. Lembrou-se do pai na noite passada.

- Hm... Garda, querida... podemos conversar?

- Claro. - Ela sentou-se em sua cadeira cor-de-rosa e ficou em silêncio.

O pai parecia não saber como começar.

- Eu estive conversando com sua mãe... na verdade já falamos sobre isso algumas vezes e nós esperamos que você concorde...

Ele não conseguia continuar, olhava para os lados, para baixo.

- Pai, por favor, seja objetivo. Por mais complicado que seja, eu sou forte.

- É isso, minha filha...

- Não estou entendendo.

- Você, meu bem, você é muito... adulta.

- Hm.

- E nós achamos que não precisa ser assim.

- Isso é tudo?

- Não, nós queremos que você veja... que você vá a um médico, não é nada demais, só para conversar, querida.

- Não quero, papai.

- Mas querida... Nós realmente achamos que seria ótimo pra você, queremos ver você bem, minha filha.

- Mas eu estou bem.

- Não é isso...

- É exatamente isso, pai. Se vocês querem que eu esteja bem, agradeço muito a preocupação, mas não é necessária. Estou muito bem.

- Você não brinca, você não tem amiguinhas...

- Eu tenho.

- Nunca trouxe nenhuma aqui.

- Não quero nenhuma amiga perto de Izac, ele é perigoso. E eu não gosto do tipo de brincadeira que os outros fazem, eu gosto de pintar e escrever.

- Eu sei, meu bem, mas você tem 8 anos!

- Eu sei, papai.

- Nós achamos que pode ser ótimos para você, achamos que você é superdotada.

- Eu sou.

- O quê?

- Eu sou.

- Eu ouvi.

- Mas perguntou “o que”. Enfim... já fiz 17 testes de QI diferentes, todos deram muito acima da média.

O pai estava completamente atônito. No manual de pais nunca ensinaram a lidar com uma menina como ela.

- Ok, querida. Boa noite.

- Boa noite, pai.

Edgarda já havia se acostumado a olhares estranhos para ela e quase não se importava mais – até porque estava 2 anos adiantada na escola.

As pessoas começavam a chegar na escola, mas ela não tinha vontade de levantar. Sabia que se se levantasse e fosse para a sala agora teria que fingir interesse para conversar com alguém e ela estava cansada disso. Só gostava mesmo de conversar com o professor de química do ensino médio, ele era inteligente e entendia o que ela queria dizer sempre, pena que só vinha à escola duas vezes por semana e hoje não era desses dias.

Deitou-se no gramado – a dor nas costas começava a incomodar de verdade. Ficou olhando para os galhos e as folhas verde-escuras. A natureza era uma coisa maravilhosa... ela teve uma ideia para um quadro nesse momento.

- GARDA!

Ela se assustou e levantou rápido. Era téo.

- Olá.

- Sozinha aqui de novo, garota...

- É tranquilo, eu gosto de ficar aqui.

Ele sentou ao lado sem perguntar se podia, mas ela se incomodou só porque era ele.

- Você chegou tão cedo. - Comentou ela quase sorrindo.

- Meu pai... teve que ir mais cedo pro trabalho, hoje.

Edgarda não sabia porquê gostava dele. Ele não era inteligente e nem era tão bonito. Tinha os cabelos castanhos cada vez maiores já caindo sobre os olhos, desgrenhados. O corpo não tão magro, de um garoto normal com 9 anos. Ela simplesmente não se entendia nesse caso.

- O que você fica fazendo quando tá aqui sozinha?

- Eu penso.

- Só pensa? O tempo todo?

- Eu não consigo fazer nada diferente.

- Nunca?! - ele virou para ela.

- Não. - Sorriu – Agora não estou só pensando... porque você está aqui.

- Então você não pensa quando tem alguém por perto.

- Não é isso. Às vezes, eu penso mesmo que esteja falando com alguém, mas com algumas pessoas é diferente. Com você, por exemplo.

Téo deu um sorriso rápido.

- Adorei aquele quadro.

- Como?

- Seu quadro. - Téo tirou a mochila das costas. - Você trouxe um quadro outro dia...

- Ah, claro. A professora de artes pediu e... Obrigada.

- Era lindo. Meu irmão também pinta, mas o seu é muito melhor que o dele.

Ela sorriu, envergonhada.

Os dois ficaram em silêncios por segundos que pareceram eternos. Edgarda pensava desesperadamente em algum assunto para dizer a ele, mas só conseguia pensar no filme de Almodóvar que assistira ontem a tarde, agora, e provavelmente ele não saberia do que ela estava falando.

- Posso pedir uma coisa? - Téo perguntou, de repente.

- Sim.

- Feche os olhos.

Edgarda odiava a ideia de não saber o que estava acontecendo. Fechou, porque era ele quem pedia.

Foram segundos torturantes os que ela passou de olhos fechados e nada aconteceu. Até que, finalmente, ela não aguentou mais esperar e foi abrindo os olhos disfarçadamente no momento exato em que Téo encostou os seus lábios nos dela. Durou um instante, mas nesse instante ela não pensou em nada. Absolutamente nada.

Olavo Ataide
Enviado por Olavo Ataide em 09/09/2011
Código do texto: T3210087
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