As próximas 24 horas
Abriu o álbum de fotografias e uma sensação ruim começou a percorrer seu estômago. Guardou-o no bolso da mochila, esse mais novo companheiro inseparável desde ontem. Era a foto dela que aparecia. Sólo tú sabes bien quien soy, sussurrou à foto. Há dias não estavam mais juntos e isso lhe doía. Como dói qualquer ferida recém feita, ainda muito longe de cicatrizar, ainda muito longe de participar do mundo do esquecimento. A sua volta via o rosto dela nos rostos de outras garotas. Bastava ter o sorriso parecido, o cabelo que a lembrasse, qualquer coisa que retomasse a ideia de ser ela a sua frente.
Sonhara no ônibus enquanto retornava da faculdade para casa. E fora com ela. Acordou e não entendeu o que se passara. Estava entrando numa festa. Logo viu que era uma festa dela. E ela estava lá. E o vira. E conversara com ela. Mas dera alguma desculpa e fora embora. O que dissera esvaíra-se no mundo dos sonhos. Desejava retornar à festa. Retornar a ela. À festa ou à garota? Aos dois. Mas o seu sonho não obedecera seus desejos. E não voltara nem para um nem para outro. Um solavanco do coletivo acordou-lhe e o mundo de fantasia dissipou-se.
Uma vontade louca de abraçar alguém se apoderou dele. Mudou o caminho e não foi para casa. Fez uma surpresa à mãe. Ela mal abriu a porta, ele correu abraçá-la. Voltava aos seus 16 anos, a sua primeira decepção amorosa, ao seu primeiro amor rompido. Mesmo que houvesse durado simplórios dois dias e um selinho. Comeu com seus pais. A que devemos esta maravilhosa surpresa, Diego? Deu vontade, mãe. Só isso, não falou mais nada. E ela calou-se. Sorriu por vê-lo perto, mas o coração apertou por saber que algo de nada agradável motivara a aparição. Intuição de mãe. E não tem erro.
Acabou o almoço, beijou o pai e disse-lhe que amava os dois. Pediu desculpas por demorar a aparecer e por ter chegado sem avisar. Desculpou-se novamente pela pressa e saiu quase correndo. Senão atrasaria pra aula da tarde.
Dessa vez não sonhou no ônibus. Sua mente ficara lenta pelo almoço, mas sofria demais pensar no dia anterior e nenhuma posição acomodava-lhe para cochilar. Desceu e correu à sala de aula.
Estava vazia. No quadro-negro, o aviso aula cancelada. Retornou para casa. Foi a pé, chutando as pedras no caminho. Não tinha nada para fazer em casa e não se incomodaria em caminhar a distância de quase uma hora. Tinha louça suja na pia, a cama por arrumar, a resistência do chuveiro continuava estragada. Sua plantinha agonizava de sede e o chão carecia de uma varrida. Mas e cadê a vontade prá tudo isso?
Entrou em casa. A pasta com os cadernos já pesava muito mais que na faculdade. Largou o material em cima da estante e deitou na cama. O cansaço da noite anterior não dormida e o seu estresse pelo término do relacionamento pesaram sobre o corpo. Dobrou-se na cama, encolheu as pernas e ficou assim, estático e sonâmbulo. Em concha. A cama estava maior. Vazia. Só ele. A falta dela acusava um espaço muito maior que supunha um dia sentir. Puxou um travesseiro e abraçou-o. Apertou-lhe forte contra o peito como se fosse a amada. Como se fosse a sua garota que não era mais sua agora. Beijou o travesseiro. Molhou-o com lágrimas. Depois conversou com ele. Pediu desculpas. Reconciliou-se. Pediu um tempo novamente.
Um misto de suor, cansaço e tristeza dominou o corpo exausto. Ele sonhou. Eram delírios com imagens estranhas. Abstratas, escuras, sons incompreensíveis. Algumas vozes de choro. Um sussurrar suave. Parecido com o dela. Dizia-lhe tchau. Esticou-se para pegar na sua mão. Os dedos quase se tocaram. Então acordou.
Já escurecera. Virou para o lado e viu um retrato dela. Ainda não tivera coragem de trocar as fotos.
Nunca escrevera nada para ela. Em seus apontamentos discorria sobre os outros, seu dia-a-dia, mas não a incluía nesses textos. Culpava-se por isso. E agora ainda mais. Pegou um caderno, buscou as folhas em branco e iniciou a escrita. Fez sua catarse em algumas horas.
A noite avançava e ele lá, deitado. Caderno e caneta nas mãos e a noite livre para não fazer nada. Justo agora que eram férias. Precisava trabalhar, ocupar a mente. Mas não tinha escapatória. Fadava-se a pensar nela. Remoer cada momento maravilhoso que passaram juntos e todos os dramas vivenciados. Os gritos dela no telefone. Seu rosto choroso ao ouvir-lhe falar na manhã anterior. A cara de decepção da menina. Ela não merecia aquilo. Ele não a merecia.
Correu ao banheiro para vomitar.
Sentiu o corpo fraco. Tomou um leite quente. Passou uma geleia no pão. Comeu. Escovou o dentes. Deitou-se novamente. Sentia as bochechas arderem-lhe e a cabeça doer. Não quis pegar o termômetro. Preferiu dormir e tentar esquecer tudo aquilo.
Acordou no outro dia com o barulho forte do vento. Pensou que chovera. Ledo engano. As árvores rechicoteavam o furor da ventania e seus galhos faziam um escândalo sonoro.
Foram essas as suas primeiras 24 horas. Como seriam as próximas 24?