Ninguém Manda Nos Sentimentos
(Continuação de Na Longa Caminhada Da Vida - Visão do outro lada da história. Vitória, namorada de Edson)
“Querido diário, talvez eu tenha sido dura demais. Ter feito o que fiz com o Gabriel foi um erro. Ninguém manda nos sentimentos e, se eu mandasse nos meus, preferiria não sentir o que estou sentindo.”
00h. Minha cabeça não parava de girar, como se eu fosse a maior culpada de toda essa história, a história em que, na realidade, fui a maior vítima. Pois é Deus, a cruz da vida de todos nós está aí exposta aos quatro cantos. Mundo infeliz! Ou se é a maior megera ou você, literalmente, é a coitadinha. Ninguém escolhe o resumo de sua própria obra, de seus próprios passos. E se eu pudesse... O que eu faria? Desde domingo não ouvia a voz de Edson e não sentia o cheiro do D&G que dei de presente a ele. Como isso me fazia falta. Cansei!
O EcoSport do meu pai estava na garagem. Definitivamente, ficar em casa não me ajudaria, então, tomei a iniciativa de ir até Edson. Liguei a chave e fui. Poucos quarteirões e lá me vi parada e preocupada. “Querido, estou de frente à sua casa”, foi o conteúdo do SMS que enviei a ele.
Senti os passos do meu noivo ecoarem como pessoas desesperadas dentro de mim.
- Está frio, entra! – sua voz tênue me acalentou. Seu beijo afagou minha alma.
O cheiro daquele homem estava espalhado por todo o espaço do quarto. A cama tinha seu cheiro, os lençóis, os travesseiros e a minha pele estava envolta pelo cheiro da pessoa mais importante na minha vida àquele momento.
- Vim aqui porque eu precisava pedir perdão pelo que fiz com Gabriel. Ele não tem culpa de ser o que é! Ninguém escolhe ser gay – refleti por um instante e notei que o semblante de Edson estava rude. Da mesma forma que eu quero amar você, eu não sei explicar o que me fez agir daquela forma... – e era verdade, tão verdade que foi a atitude mais infantil que tive em toda a minha vida. Implantar uma folha de um arquivo pessoal de uma pessoa dentro de uma assembléia e ver todos rirem da sua cara? Não faz sentido.
- Perdão você deve a ele e não a mim. Eu estou aqui, e ele? – seco. Difícil seria conter as lágrimas que teimavam em deter minha coragem de expor os meus sentimentos.
- Você está certo.
Fui me aproximando na tentativa de receber aqueles ternos abraços de antigamente. O ontem àquelas alturas já era o ‘antigamente’. Ele me abraçou. Uau! Meu homem me abraçou!
- Vitória, eu amo você, mas nós precisamos de um tempo – Que tapa na cara! Me desvencilhei dos braços dele e o fitei amargamente.
- Como assim Edson? Não existe razão pra nos separarmos! Foi tudo um grande mal entendido e o Gabriel que é o homossexual e não você! – meus olhos fervilhavam.
- Só estou pedindo um tempo pra refletir, somente isso Vitória! Até quando você vai ser egoísta e pensar somente nos seus interesses? – me largou de vez e se afastou.
- Você disse meus interesses? – indignada. Eu luto pelos nossos interesses! Nosso interesse em ter um casamento duradouro, nosso interesse em ter um filho, nosso interesse na nossa felicidade. Eu sou a egoísta? A que pensa em ter uma família com você? – as palavras saíam como tempestade de dentro de mim e, a raiva me tomava vagarosamente em seu calor. Amanhã teremos o jantar do feriado às oito horas, não esquece!
Não esperei que ele continuasse com delongas e explicações. Peguei minha bolsa e saí de lá de dentro com passos firmes.
Aquela noite durou duas primaveras. Não fosse pelo som de Adele repetido um trilhão de vezes teria durado uma eternidade. Não grudei os olhos.
12h. Sem cabeça para o trabalho. Sem cabeça para nada. Calada em pensamentos que se voltavam ao homem que eu mais amei e, sem dúvida, dediquei amor por duas vidas. Recebi um SMS. “Amor, reserva às 12h30 no Outback Steakhouse do Shop. Eldorado.”
E lá estava a tonta, a desalmada e a ordinária, humilhando amor. O vi sentado, como sempre, bem vestido à moda dos homens cultos: camisa social branca com riscas azuis claras, colete preto e jeans estreito.
- Fiquei aflito, pensei que não viria! – soltou um sorrido tímido. Como estava frio naquela tarde. Apesar do verão, o frio era de dar horror.
- Você me conhece, não conhece? – joguei. Qual a sua intenção? Dizer que está tudo bem e que tudo o que aconteceu hoje não passou de um erro? Porque se for, eu juro que esqueço tudo. Eu juro! – fingi um sorriso esperançoso.
- Eu amo o Gabriel. Eu amo você, mas não dá pra continuar do jeito que está. Eu nunca estivesse tão de frente com a verdade como estou agora... – os olhos dele estavam trêmulos e a voz saía fraca. Era verdade! Saquei tudo.
- Você é gay! Você é gay! Eu não acredito! Estava sendo enganada todo esse tempo? – me senti a mulher mais ridícula da face da terra. Você me enganou! Você me usou pra não assumir um sentimento dentro de você, seu medíocre! – me excedi.
- Vitória! – ele abafou o grito. Nunca enganei você, eu nunca enganei você! – levantei. Estava sendo insuportável toda aquela cena. Eu não nasci pra ser atriz, não ia fingir que nada estava acontecendo. Percebi que ele também havia se levantado. Espera! – pediu. Eu sempre amei você, nunca menti pra você – olhei fixamente nos olhos dele e, sem demora, dei um tapa no rosto de Edson Crespi. Ele ficou me encarando abobado com o que acontecera. E saí pisando firme e derramando lágrimas por todo o meu rosto.
Peguei o celular e fiz uma breve ligação. “Oi Suzana, não volto pro trabalho, não estou bem... Sim... Conversamos depois...”. A ligação ficou muda.
Nossa! Nossa! Geralmente somos traídas com outras mulheres, mulheres! Mas eu fui traída com outro homem! Desgraçado, filho de uma puta! Que inferno eu estava vivendo.
Deitei na maior 'depre' no sofá dentro do meu quarto. Graças a Deus era grande, confortável e muito bem mobiliado. O meu refugio. Passei a tarde aos prantos e olhando slides de como eu havia sido feliz com o único homem que amei. Um namoro que começou aos quinze anos e teve fim aos dezenove. Quase cinco anos de história de amor e de luta. E de máscaras.
A porta se abriu.
- Filha, posso entrar? – assenti. Meu pai, um homem grisalho, alto, branco e simpático. Meu herói. Se aproximou de mim, estendeu a mão e limpou uma lágrima que caía.
- Como sabe? – como ele soube do que havia acontecido com o Edson?
- Eu não sei – refletiu por um breve instante. Eu sempre percebi! Mas você não pode culpar ninguém pelos sentimentos que saem de dentro da gente, querida – engasguei.
- Pai, ele me usou pra esconder um sentimento homossexual! – indignada.
- Não filha! Ele nunca viveu um sentimento homossexual até falar com você. Ninguém controla esse tipo de sentimento – ele me abraçou e deu um beijo na minha testa. Fiquei imaginando como ele poderia entender sobre esses assuntos? Meu pai nunca foi muito ligado em assuntos gays. Levantei e fui até o espelho. Encarar frente a frente a minha essência e notei que meus cabelos estavam horríveis. Bagunçados e castanhos, meus olhos azuis claros estavam sem cor e minha pele de branca estava pálida.
Ouvi duas batidas na porta e se abriu novamente. Olhei cuidadosa e vi quem não queria ver.
- O que está fazendo aqui? – limpei a garganta e não mostrei expressão. Ele pegou em minhas mãos – ai que saudade! – e me levou para o sofá maior.
- Você tem que entender que não quero magoar você Vitória, o que sinto por você é perfeito. Não posso, agora, guardar nada de você, mas também não posso mentir pra mim – olhou bem dentro dos meus olhos. Eu te amo Vi... Entende isso? – assenti com a cabeça e, ainda sem expressão, o soltei.
- Preciso me arrumar, pode sair? – sussurrou um sim e sumiu.
20h15. Eu me recompus. Me maquiei, vesti o meu melhor vestido e me arrumei. Lá estavam as pessoas importantes da assembléia em um jantar comemorando um feriado, uma desculpa para discutirem assuntos internos relacionados à igreja.
O jantar estava perfeito. Mesa grande e cheia, fartura e sorrisos. E no meu dedo uma aliança que simbolizava, além de tudo, um compromisso com uma pessoa que eu amava. Levei a taça de água à mão e um talher e chamei atenção.
- Um minuto. Quero falar algumas palavras – todos me olharam com atenção e suspense. Eu quero fazer um brinde – me levantei e falei devagar cada palavra. Quero fazer um brinde a todos que amam, a todos que tem um amor correspondido. Um brinde aos erros e acertos da nossa vida, às falhas e às fraquezas. Um brinde ao amadurecimento e à felicidade. Agradeço a todos por estarem aqui, principalmente ao Edson e, quero brindá-lo porque hoje tomei a decisão de excluí-lo da minha vida. Um brinde! – todos os sorrisos foram desfeitos. Ninguém acreditara naquilo. Nem mesmo eu.
“Querido diário, é insuportável amar. É insuportável lidar com tanto amor. Com tanto amor jogado fora. Fui enganada, enganada! Se eu pudesse mudaria essa história.”
Dedico esse conto a uma amiga recantista, Luciana Vettorazzo Cappelli. Ao incentivo e carinho. Um brinde a você!