Desencontro

Sei que nem te lembras dos pormenores mas, para mim, é inesquecível o momento em que te vi, de bandeja na mão, caminhando para a única mesa livre que havia na esplanada, justamente aquela para a qual também eu me dirigia. Vi a mesa primeiro, disseste, ainda não sei se por puro egoísmo se, apenas, para tomares o teu café sozinha ou, mais simplesmente, por não me queres à tua frente. Azar o seu, respondi-te puxando a cadeira para te sentares também. Só venci daquela vez porque, sem outra hipótese, ou aproveitavas a mesa e a minha companhia ou ficavas, de pé, às voltas com uma bica a ficar fria e um pastel de nata a enrugar-se de descontente. Sentaste-te mas nunca olhaste para mim, não respondeste a nenhuma das minhas perguntas e retiraste-te para o Auditório com ares de rainha ofendida. Por mero acaso e para grande desconforto de ambos, ficaste na poltrona ao lado da minha e, também ali, não tinhas muitas hipóteses para alterar a circunstância. Ainda te perguntei se estavas a gostar do concerto e o que recebi como resposta foi um franzir de testa e um trejeito de desprezo. No final, corri atrás de ti para te entregar o catálogo e o casaco de malha que, na pressa de te afastares dali, deixaras esquecidos sob o assento. Recuperaste-os com brusquidão, não agradeceste e conseguiste, enfim, irritar-me. Foi por isso que te agarrei com firmeza pelo braço, te olhei bem no rosto e te chamei presunçosa e antipática. Misturaste o espanto, um esgar de dor e a raiva e correste para a saída sem dizer nada. Eu fiquei atrás das portadas de vidro para saber em que autocarro irias. Decidi tomar-te como desafio e, para me organizar, precisava de todas as tuas coordenadas. A ideia era vingar-me, pensava com os meus botões, embora a parte mais íntima de mim afirmasse que não, que estava a gostar das vistas, do teu modo agreste, dos olhos em fúria. E recolhi a casa revoltado por te ter dado tanta atenção. Nunca mais te vi e também não voltei a pensar no assunto. O teu autocarro tinha pontos de paragem nos percursos do 35 e, assim, talvez um dia nos voltássemos a cruzar. Haveria, então, de te ignorar com toda a soberba de que fosse capaz.

Uma vez vi-te acompanhada de um homem jovem. Discutiam e ele não reagia. Pensei que devias ser mimada e conflituosa e tive pena do rapaz. No seu lugar deixar-te-ia a falar sozinha mas ele encolhia os ombros e deixava-te gesticular para o mundo. Quando me viste a seguir a cena e me reconheceste ficaste, de repente, com ar de estátua de mármore e eu ri-me da situação na tua cara. Ousei mesmo afrontar-te com um gesto infantil, rodando os dedos na cara e deitando a língua de fora. Senti que ficaste furiosa e que me odiavas. Matar-me-ias, se pudesses. Nesse dia arrependi-me de ter ficado tão mal no teu conceito mas alguém tem de te mostrar como és petulante com os que tocam o teu caminho. Na verdade teria gostado de me sentar no mesmo banco e de ter fingido que não te reconhecia. Seria um novo começo, com um sorriso e algumas palavras amáveis. Assim, com tudo torcido e certo de que jamais esquecerias a minha irreverência trocista, conformei-me e procurei não voltar a pensar em ti. A verdade é que estava condenado a ver-te mais vezes e, até, a viajar com frequência na mesma carreira, em hora de ponta, com espaço a menos e gente apinhada. Foi assim que ficamos muito juntos, encostados, a sentir o calor um do outro. Foi bom ver-te corar de raiva e a fazer esforços para sair da fronteira dos meus braços, daquele aperto. À tarde, aproximei-me de ti na paragem, olhei-te acintosamente e disse que, depois da nossa promiscuidade da manhã, quase dispensávamos apresentação. Em todo o caso eu sou o Paulo, sussurrei, e tu sorriste mas não disseste mais nada. Eras bem bonita quando te rias! Estava longe de saber que o teu nome era Juliana mas foi como ouvi uma senhora de idade chamar-te, numa tarde de chuva, no meio do café. Só não se repetiu a cena da disputa pela única mesa livre à vista porque a dita senhora te ofereceu lugar e eu pude, mesmo ao vosso lado, acompanhar a conversa. Soube coisas de ti, dos teus pais, do bairro onde moravas e, até do curso de enfermagem que fazias. Pareceu-me que, daquela vez, não te incomodavas com a conversa e dir-se-ia até que achavas bem que a velha senhora dissesse o que tu, só por orgulho, calavas. Pensei que, depois daquilo, já éramos suficientemente íntimos para não ser abusivo sonhar contigo e passei a incluir-te nos meus devaneios oníricos. Aparecias de bata, em “topless”, muitas vezes nua. Vinhas sempre amável, tanto que eu duvidava que fosses mesmo tu ao acordar…

Reencontrámo-nos nas aulas de Medicina Legal numa necrópsia a que, ambos, estávamos obrigados a assistir. Tu como futura enfermeira e eu como virtual advogado. Dei-te a cheirar o meu lenço encharcado de perfume para disfarçar o cheiro do cadáver, esventrado sobre a mesa e, uma hora depois, falávamos do assunto com animação. A vida, mesmo a mais mansa, tem pedaços menos bons para que possamos valorizar o que nos agrada. Ambos gostávamos do nosso curso mas detestávamos algumas obrigações e matérias. Para mim era fastidiosa a análise dos códices recomendados e tu, disseste não suportar o sofrimento nos outros, os gritos de dor dos doentes, os olhos tristes das crianças da Oncologia. Estudavas pouco, confessaste-me, por te ser fácil fixar bem quando estavas atenta. Só lias nas vésperas dos exames e estavas contente com as notas que tinhas, bem abaixo das que a tua vivacidade mental poderia alcançar. Para ti o importante era o sentido pragmático das coisas. Eras pouco subtil, disseste, quando entendias que a situação exigia acção. Falavas e eu rememorava o que me havias feito e ria-me por dentro das tuas confidências. Pouco subtil, dizias? Nada subtil era como eu achava que deverias ter dito e alarguei o meu sorriso até me perguntares onde estava a graça. Tive de inventar uma história capaz de anular a tua desconfiança. Se dependesse de mim, nunca mais teríamos brigas por coisas pequenas.

Senti que mudavas os horários para me encontrar e eu passei a esperar-te. Conversas banais, comentários sem muita inventiva e, depois, aquele convite para almoçarmos juntos, na tua cantina. Agradou-me logo a ideia e faltei ao último tempo com alegria. Apresentaste-me como amigo mas reparei que as tuas colegas me observavam com excessiva atenção. Inferi que eu já devia ter sido motivo das tuas conversas, um caso mais sério do que a tua apresentação, intencionalmente ligeira, deixava prever. Há quanto tempo namoram? Perguntou uma delas desejosa de pôr-te em cheque. Há cerca de um mês respondi eu correndo o risco de te desagradar. Por que pergunta? Acrescentei para desviar as atenções de ti que havias ficado vermelha e tensa, prestes a explodir com uma das tuas proverbiais cenas. Porque, respondeu a tua amiga, alimentei a esperança de ainda nada haver de muito sério entre vocês. Você parece ser um homem interessante, Paulo. Pois…obrigado… gaguejei, mas acontece que gostamos muito um do outro e que estamos dispostos a levar o nosso namoro a bom porto, acrescentei o mais convictamente que pude. Despedimo-nos cerca de meia hora depois e, logo que saímos do edifício, ias dar início a uma das tuas brigas quando te disse que, à janela, alguém nos seguia com atenção. Eu não namoro contigo! Retorquíste. Agora namoras, respondi puxando-te para mim, impedindo-te a fuga ou qualquer movimento de braços e beijando-te como se fosse a coisa mais vulgar entre nós. Depois, antes de te soltar, avisei-te de que se reagisses com violência, nunca mais me verias. Não reagiste. As lágrimas corriam pela tua face como se tudo o que disse e fiz te tivesse ofendido e humilhado. Correste para fugir de mim, logo que dobrámos a esquina e não apareceste nas semanas seguintes. Ainda te procurei pelo bairro, nos cafés da zona, nos quiosques onde sabia que compravas o jornal. Castigavas-me pela ousadia e talvez te preparasses para aparecer com vontade de domínio esperando ter em mim alguém passivo, como sempre. Enganaste-te. Eu também tenho ideias feitas sobre relações humanas e decidi que, depois de apareceres sem uma boa justificação, desapareceria eu. E, uma bela tarde de Dezembro, tal como previ, retomaste o curso da vida usual sem dizeres nada sobre a tua ausência. Ficaste no meu banco, conversaste sobre trivialidades e tomaste o café comigo. Também nada te perguntei e, no dia seguinte, vi-te de longe a olhar repetidamente para o relógio e para todos os lados, manifestamente inquieta com a minha ausência, mas não apareci. Na semana seguinte começaram as férias de Natal e eu fui para o Norte. Quando regressei, no dia de Reis, saudoso e a pensar que éramos tolos por desperdiçar tantas oportunidades para estarmos juntos, uma das tuas colegas informou que tinhas pedido a transferência para outra Escola mas não sabia qual. Ninguém sabia o teu novo endereço. Fiquei decepcionado contigo, comigo, com o mundo agora bruscamente cinzento, hostil e feio. Poderia ter perguntado, na Secretaria da tua Escola, para onde te mudaras mas preferi agir sob um estúpido orgulho, em tudo igual ao teu. O ano lectivo chegou ao fim, a minha licenciatura estava próxima e o estágio seria onde me fosse possível evitar-te. Concluí que não estávamos destinados a ser um do outro e desisti de sofrer com o teu feitio. Fui para o Porto e por lá iniciei a carreira, fiz amigos, arranjei emprego. Muita gente pressionava mas não arranjei casamento nem companhia estável. Dir-se-ia que o meu coração não desistira de ti e que recusava as conclusões, muito racionais do meu cérebro. Sentia-me como um barco sem porto definido. Sair, chegar, ver, procurar, fugir e a vida a rolar entre casos inconsequentes, paixões pouco saudáveis e uma necessidade intrínseca de te ser fiel mesmo gastando-me em festas e folias sexuais. A minha alma continuava pura, virgem de afectos, reservada. Vinhas todas as noites aos meus sonhos e gritavas, expulsavas-me ou, sem palavras, surgias nua sorrindo como dantes. Nunca ficavas muito tempo nem te entregavas. O enlevo terminava sempre quando te ia agarrar, beijar, abraçar. Tudo muito parecido com os sonhos da minha infância quando frutas ou bolos nunca podiam ser comidos e a beleza do desejo acabava num despertar frustrante. E fui amadurecendo sem “assentar” no dizer da minha família que ia perdendo a esperança de me ver com descendentes. Se aparecesses agora, pensava muitas vezes, serias também uma mulher madura e, provavelmente, nem o sorriso te restava. Outras vezes achava que me seria fácil amar-te como dantes porque haverias de estar linda na mesma e, quem sabe, mais apta a fazer felizes os outros arrependida de teres recusado todas as oportunidades da tua vida… Algo me dizia que também não casaras, não tinhas companheiro fixo e não tinhas filhos. Algo de intenso me dizia sempre que, um dia, nos encontraríamos e resolvíamos a vida de vez.

Quando acordei no hospital, imobilizado, após uma semana em estado de coma, não reconheci ninguém. Também não conseguia falar mas começava a poder raciocinar com lógica e percebia o que me diziam. Soube, consequentemente, que a memória poderia aparecer mais ou menos depressa mas sabia, também, que o tempo do coma, ou parte daquele que precedeu e se sucedeu ao acidente, esse hiato de alguns dias, nunca seria recuperado. O passado, porém, embora só parcialmente recordado incluía uma Juliana conflituosa e bonita cuja imagem se sobrepunha a tudo. Foi então que te vi chegar, fardada, verificar a papelada aos pés da cama, acertar o débito do soro, verificar o saco da urina e os drenos e só depois, concentrares no meu rosto o teu olhar. A avaliar pela tua surpresa, ninguém te informara sobre a minha recuperação e a papelada ainda não referia todo o quadro clínico já em franca alteração para melhor. As palavras ainda não soavam na minha boca mas já aconteciam na cabeça e já se expressavam nos meus olhos. Emocionei-me e chorei. Talvez por outra qualquer razão, também os teus olhos tinham lágrimas e os gestos descoordenados acusavam o teu nervosismo. Saíste da sala e, quando retomaste o serviço, cirandavas longe de mim, impessoalmente. Foi então que reparei nas tuas mãos quando tiravas as luvas de borracha e vi que, na esquerda, havia duas alianças! Eras viúva. Afinal, casaras-te e isso era a grande decepção que me atingiu como um soco. Só faltava agora teres meia dúzia de filhos ou os que fossem já nem me importava a quantidade. Sentia nessa tua prole hipotética a prova de uma traição e não queria admitir que o tempo em que estivemos separados tivesse sido de liberdade para ambos. Afinal, só eu acreditava que tinhas parte na minha vida e só eu assumi que queria namorar contigo. Pela tua reacção naquele dia, tu não querias ou não podias namorar comigo, ser publicamente algo mais que uma colega ou uma amiga. Não devo, ao tempo, ter conseguido perceber a tua mensagem e nada fiz para corrigir o destino. Senti a mesma necessidade de vingança, experimentei todos os sentimentos mesquinhos de que, durante muito tempo, te acusei. Mas… quem poderia ter sido o teu marido? Aquele que te acompanhava e com quem discutias em público? Há gente que, apostando numa solução, se fixa nela e tolera tudo, dos insultos ao desprezo, das desconsiderações à prepotência. Desde que haja um pedaço de paz, entrega e amor as guerras são irrelevantes e, nalguns casos, exacerbam a atracção entre os contendores. Serias tu deste género também? Nada tinha a ver com o teu passado mas queria saber. Curiosidade? Talvez não. Era mais uma necessidade, como se uma dor interior me forçasse a reconhecer tudo o que se lhe associava antes de a expulsar de mim recusando-te ou recuperando o teu fascínio para os meus sonhos. Teria gostado de te gritar mas só as lágrimas traduziam a minha revolta já que as palavras, presas numa espécie de ferida cerebral morriam logo na formulação. Poderias, portanto, se quisesses, dizer-me tudo sem que pudesse responder-te ou, sequer, fazer um gesto de repúdio. Poderia, como daquela vez, deitar-te a língua de fora mas agora que o meu coração envelhecera de repente e que o menino que morava comigo também estava doente, já não faria sentido e tomar-me-ias por louco ou cultor do ridículo. Deixei que só os meus olhos te seguissem, vissem, analisassem e respondessem à tua perplexidade e confusão. Adormeci exausto.

Ainda um tempo mais e o corpo curava-se para a vida em plenitude de funções. Tu não voltaste a aparecer e eu apostava que te ausentaras para longe, como das outras vezes. Mas…havia uma carta que deixaste com a recomendação de me ser entregue apenas quando eu tivesse alta. Nela recuperavas os seis últimos anos como um tempo doloroso de renúncias, trabalhos, agravos e morte. Já moravas com o Hugo quando me conheceste e nenhuma forma havia de te descartares dele por ser de carácter violento e tu apenas uma mulher insegura e medrosa. Não te desculpavas pelo silêncio, pela fuga, mas reconhecias-te culpada por não teres tido a coragem de acabar com a relação e de teres contribuído grandemente para a infelicidade de ambos. Quando percebeste que era de mim que gostavas prometeste a ti própria só voltar a abordar o nosso afecto quando tudo estivesse esclarecido entre ti e ele, como se impunha. Só não cumpriste isso porque tiveste saudades, porque te fazia falta a minha presença e só não tocaste nos pontos delicados porque o problema persistia. Sofreste muito quando eu deixei de aparecer e o teu companheiro, acabado o serviço militar, voltava a Coimbra de vez e tu deverias segui-lo. Querias encerrar o nosso assunto e pretendias tentar amar aquele homem por muito difícil que fosse. Conseguiste respeitá-lo e dar-lhe um filho mas foram amargos todos dias com ele sobretudo no período da sua arrastada doença. Estavas livre agora mas sabias que muitas coisas se transformaram na nossa realidade e temias que eu não te quisesse ver mais. Se, depois de ler a tua carta e de meditar sobre os meus sentimentos a teu respeito ainda houvesse em mim um pouco de esperança num futuro comum, só então eu deveria dar-te resposta. Este escrito, Juliana, é a resposta, a ponte entre o que vivemos antes e o que talvez possamos ainda partilhar. Mas no momento, sou eu quem ainda tem medo de retomar o teu amor. Sinto que irei procurar-te só não sei se será já hoje ou amanhã.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 11/08/2011
Reeditado em 12/08/2011
Código do texto: T3154373
Classificação de conteúdo: seguro
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