Sra. Xavier - Segunda Carta – Março de 1945
Nota: Ha um tempinho postei a primeira parte dessa história agora postando a segunda parte.
Aqui estou novamente, querida Ana, escrevendo outra carta.
Dois meses se passaram e aconteceram surpresas por aqui.
Enquanto a guerra do outro lado continua em São José a vida segue.
Você está reclamando de mim, que devo estar cega. Não, amiga, não estive tão lúcida, amo meu marido.
Ó, que destino cruel sua vida após a escola, se precisar de ajuda falarei com George e eu enviarei.
Como disse, aconteceram novidades em minha casa.
No mês passado George contou de um rapaz que apareceu no escritório pedindo emprego. George ficou com pena e disse que ia pensar.
Em casa ele disse que não saberia o que fazer para ajudar o rapaz e eu aconselhei que devesse seguir seu coração.
Aceitando meu conselho George tomou a iniciativa de chamá-lo para jantar em nossa casa. Concordei, percebi que George tinha gostado do rapaz, que tinha vinte anos. Senti que meu marido queria ajudar o jovem.
Combinado. George trouxe o rapaz de noite em casa.
Preparei um delicioso jantar na qual o rapaz devorou com tamanha ansiedade, parecia que não comia há dias.
Júlio. Era o nome dele, louro, estatura média, os olhos eram claros, corpo magro, sobrancelhas grossas, rosto perfeito sem nenhum defeito. Dava uma tristeza vê-lo...
Usava roupas em maltrapilhos, velhas que quando o vi tive dó. Os sapatos usados e gastos, uma lástima.
Júlio falou que se formou em direito, mas não teve oportunidade de exercer a profissão e aí contou sua história.
Vive na área rural com a tia que tem deficiência na perna. Sua mãe morreu de tuberculose e vive fazendo picos pela cidade. Cresceu querendo ser alguém, a oportunidade não o deixou. Formou em direito com muito esforço, quase desistiu, porém persistiu e conseguiu.
Eu e George nos emocionamos com a história de Júlio e ele também.
Estava a algum tempo observando o escritório, tinha medo de entrar, até que George o viu e o chamou e ele contou que tinha se formado em direito, mas o destino não o permitiu exercer.
George o tocou no ombro, falou que o ajudaria, que não precisaria se preocupar.
Declarei que George encontraria um meio que agora não estaria mais sozinho.
Julio se envergonhou e comentou que não precisava, que poderia resolver sozinho. George queria ajudar e não aceitaria um Não como resposta.
Ah, Ana, que gesto bonito que meu marido fez!
Entrou outra semana e George me informou que Júlio foi empregado como ajudante.
E no começo deste mês mandei George convidar Júlio para jantar.
Quanta diferença do rapaz que veio pela primeira vez e do rapaz que apareceu depois disso.
Júlio estava bem arrumado. George disse que Júlio precisava de roupas adequadas para o trabalho, meu marido levou Júlio numa loja e comprou o que necessitava. E na noite que visitou vestia calça preta, camisa azul-claro, sapato preto, o cabelo penteado e bem cuidado, era um novo homem.
Jantarmos agradavelmente e depois sentamos na sala para bebermos taça de vinho. Eu encontrei alguns poema e sonetos da escola católica e declamei. Lembro que você adorava escutar meus poemas, até pediu que eu publicasse. Sabe que a idéia me tentou, George e Júlio tiveram a mesma opinião que você teve. Aplaudiram-me de pé.
Ficamos conversando sobre vários assuntos, a guerra do outro lado e sobre roubos, pequenos furtos pra dizer a verdade, mas não é o caso para se assustar. George prefere que coloquem o vigilante para cuidar do bairro. Eu disse que não era tão alarmante e ele respondeu que não devemos bobear. E nisso mudei o rumo da conversa dizendo que estava lendo uma coleção do Stendhal e perguntei a Júlio:
- E você Júlio, já leu Stendhal?
- Não tive esse prazer e tempo de ler este tipo de leitura. – Respondeu ele.
- Stendhal é romancista e francês, não é? – Perguntou George.
- É sim. – Respondi.
- Nunca tive tempo para este tipo de divertimento. – Disse Júlio. Posso ver que nem vou apreciar.
- Stendhal parece-me ser sensível. Tem aquele livro o do Amor, deve ser esse o nome não me recordo. Teve a oportunidade de ler este livro, amor? – George me perguntou.
- Tive. E na escola.
- Na escola! Era aceitável ler este tipo de leitura na escola de freiras?
Respondi que era proibido e contei como nós duas líamos os romances atrás da capela, revezando para ver se a madre Justina estava vindo, me sentia nervosa, medrosa, adorava a aventura.
- Eu gosto de Goethe. – Comentou George. Já leu aquela história Afinidades Seletivas ou algo assim?
- Goethe escreveu um livro bem sensível. Werther. – Falei.
Se meu marido quer saber, li toda a obra de Goethe.
- E todos na escola? – Perguntou Júlio.
- Isso.
- Mas estamos falando de romances europeus. – Continuou George. Não devemos esquecer dos nossos autores brasileiros, temos gente de valor. Machado, Aluíso de Azevedo, Raul Pompéia, Lima Barreto, os poetas Olavo Bilac, Cruz e Sousa. Uma infinidade de autores excelentes. E seus poemas Letícia, são repletos de imagens reais e vivas.
- Obrigada. Não devemos desvalorizar o que é nosso. E não esquecermos de autores bons de fora.
- Provavelmente.
- Muitos comentam do movimento de 22. Foi um marco na vida cultural do Brasil. – Disse Júlio.
E assim nossa conversa continuou, Júlio saiu de casa às onze e meia da noite e eu fiquei com a idéia de montar meus poemas e enviar para algum jornal da capital e hoje antes de escrever a carta, George falou-me da competência de Júlio, de sua total vontade e capacidade de ajudar. George está orgulhoso e contente.
Termino por aqui a carta e espero que me traga boas noticias na próxima vez.
Até mais.
(Letícia)